A
primeira vez que a vi escondia-se por entre rodos, escovões e o balde da
limpeza. Um grupo de estudantes seguia as explicações do professor.
Passava e tremeu emocionada quando ouviu que a moça da pintura, mulher
cheia de vergonha, pudesse também ela ter sido empregada, uma criada do
pintor.
A
segunda vez que vi Lúcia, nunca soube seu verdadeiro nome, lustrava o
espelho do banheiro masculino. Já passava das nove da noite, e por
alguns momentos interrompia-se, quando seus ombros dorso e braços
pareciam refluir à posição da figura feminina da tela de Almeida Júnior.
Eu, importuno, percorria cuidadoso a pose de Lúcia. O artificioso
recato, a silenciosa pureza fingida sob a licenciosidade palpitante e
colhida pelo mestre dA Pintura. Embevecido, percorria-lhe então suas
formas sedutoras entrevendo não mais a tela, mas um determinismo
obscuro.
Inquieto e exaltado, uma obsessão roía-me dias e noites. Pouco saía de
casa. Os poucos amigos estranhavam. Uma perversão sem dúvida, que muito
mais omito por brevidade, sovava-me a alma. Perdendo a paciência com o
presente, freqüentava antiquários e brechós. Buscava corseletes, anáguas
e calçolas, toda sorte de roupas íntimas femininas antigas. Depois, a
custo, retomava as lições de desenho e pintura da faculdade. O cavalete
e a paleta moviam-se sem possibilidade nenhuma de evasão.
Em
razão do ardor cego, voltei decidido ao trabalho. Difícil era
controlar-me ante a presença muda de Lúcia. No dia anterior às curvas
cicloidais da verdade, já tinha preparado tudo. Na valise, as peças
íntimas que conseguira, mais um substitutivo para o cavalete e a paleta.
No dia mesmo em que talvez vivêssemos a experiência dos grandes mestres,
ela esbarrara na valise. Olhou-a restituindo-se de palavra. Bela maleta,
como a de meu finado pai.
À
noite, museu fechado, deixei sobre a pia do banheiro a valise
semi-aberta. Ela, curiosa, olhou insegura ao redor e passou a retirar
timidamente peça por peça. Examinava cada uma não sem se perturbar.
Ataviava o belo tronco com o corselete quando a surpreendi. Vendo-me,
mostrou-se pouco surpresa. Ganhei coragem, propus-lhe reproduzir a cena
da tela. Seus olhos derramavam uma branda ondulação entre inocência e
vaidade. Diz que sempre sonhou ser estrela de cinema.
Sem
nenhum outro artifício, defini-lhe a identidade fictícia e o jogo.
Passou a ser Messalina e Cleópatra, Morgana e Lou Salome, Marlene
Dietrich e Claudia Cardinale, a Garota de Ipanema, Madona, a Garota
Melancia, e apenas Lúcia, semanalmente nas telas de um despretencioso
pintor da Praça da República. |