Isabel Serra
Entre chuva e rosas

ENTRE CHUVA E ROSAS - INDEX

Rosas de um jardim
Fotografia de um bar
Um amor de croissant
Copos de cristal
Velhas fotografias
Amor pedagógico
Piqueniques na cidade
Um olhar diferente
Perfeição
Rompendo à chuva

COPOS DE CRISTAL

Hoje não há aulas porque é dia 1 de Dezembro, sexta-feira. É feriado mas, talvez porque tem um namorado novo, Susana acorda muito cedo. Fica na cama muito quieta, a pensar. Mas ao fim de duas horas levanta-se. Já são nove horas, as lojas estão abertas e é preciso fazer compras. Entretanto os filhos acordam, Susana dá-lhes o pequeno-almoço, deixa-os mais ou menos entretidos e sai. Vai fazer as compras da semana, um ritual obrigatório para uma mãe de família que vive sozinha com os filhos. No supermercado pára diante de uma exposição de copos de cristal de segunda categoria – uma montra de Natal. Mas não é no Natal que Susana pensa. Compra um conjunto de dois copos numa embalagem de cartão. Foi decisivo que os copos viessem dentro dessa tal embalagem pois Susana estava a reservá-los para uma situação em que era importante mantê-los protegidos. Ela e o seu novo namorado tinham combinado acampar uns dias no próximo Verão e Susana pensou que seria agradável ter uns copos de pé que pudessem ser usados no campismo. Isso permitia-lhe conjugar três circunstâncias que lhe dão prazer – acampar, passar uns dias de férias com o namorado e beber vinho em copos de pé. Beber em copos de pé muito fininhos é, para pessoas como a Susana, um prazer que reúne um certo sentido estético ligado aos objectos do dia a dia com o gosto de beber vinho, a sós ou em boa companhia.

O namoro sobreviveu até ao Verão e, quando estava a arrumar os seus pertences para ir acampar, Susana lembrou-se dos copos, guardados numa prateleira da despensa.

A primeira noite dessas férias foi passada numa das muitas falésias que existem espalhadas por este país. Quando se preparavam para jantar, um daqueles jantares simples de acampamento, Susana foi buscar os copos. Pousou-os em cima da mesa desdobrável, serviu o vinho, e preparou-se para gozar esse momento que lhe dá sempre prazer. Mesmo quando não é Verão, não há falésia nem pôr-do-sol, é mágico o instante em que se serve o vinho em copos muito fininhos. Mas nem toda a gente sente assim.
O Luís, quando se aproximou da mesa e viu os copos, perguntou “Que copos são estes?”. Susana contou-lhe então a história da sua compra do dia 1 de Dezembro.

Durante muitos anos Susana não pôde esquecer a irritação do Luís causada pela presença daqueles copos numa mesa desdobrável, própria para jantares de campismo.
A essa irritação, Susana começou por reagir com um sentimento de culpa. Guardou os copos na caixa e a escondeu-os da vista do Luís durante o resto da semana. Mas, à medida que as férias se esgotavam, a culpa foi sendo substituída por outros sentimentos O que é que tinha irritado tanto o Luís? O ter achado que era completamente inadequado usar copos de pé quando se acampa? As férias em si, a sós com Susana, materializadas subitamente pela presença de tais copos? O facto de estar a acampar e, ainda por cima, ter que suportar esse gosto do qual ele troçava, até aí de forma benevolente?

Durante as férias Susana foi, em pensamento, dando voltas à questão. Não valia a pena tentar falar com o Luís, porque ele continuava muito mal disposto e tinha um bom pretexto para isso – a presença de copos de pé numa mesa de campismo. Ele nem sabia que eram de cristal, e Susana nunca lho disse. Esse pormenor ainda a diverte, agora que passaram alguns anos. Mas durante esses dias a acampar, e no período que se seguiu, Susana penou bastante, a dar voltas aos episódios daquela relação sem saída. Os copos de cristal foram o último. Depois das férias cada um foi para seu lado.

Professora da Faculdade de Ciências de Lisboa. Membro do CICTSUL.