Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

40 Anos de Impasses em Teologia Moral
MATEUS CARDOSO PERES

 

1. Nota Prévia
2. O Concílio
3. O Pós-Concílio: Uma História Atribulada
3.2. A Razões
4. Balanço provisório
4.1. Da parte do magistério
4.2. Da parte dos autores de teologia moral
5. O que se fazia entretanto no ISTA

3.2. A Razões: busca de uma fundamentação, endurecimento contra
o “relativismo moral”. Deontologismo. A Veritatis Splendor e o Catecismo

Estas divergências em torno da moral sexual e da regulação dos nascimentos em particular levantaram algumas questões de fundo em metodologia ética, e ética teológica. A polémica, por isso, veio a centrar-se nos últimos 15 anos mais ou menos na moral fundamental; e, por isso também, se afirmou a “necessidade” de uma intervenção magisterial nessa matéria, afirmação que criou de novo as esperanças de que a HV viesse a ser declarada infalível. A intervenção, anunciada já em 1987, veio a ser a Encíclica de João Paulo II de 06/08/1993, Veritatis Splendor [VS], que acabou por transmitir para o Catecismo da Igreja Católica grande parte do encargo de solucionar as questões em aberto (1).

As posições de que se fala têm como uma das características, segundo creio, o horror à incerteza e buscam acima de tudo a segurança ideológica. Por isso se situam tão espontaneamente no plano dos princípios, e não no do agir. Tem-se frequentemente a impressão que aqueles que eles chamam “revisionistas”, entre outras cosas, conscientes da singularidade e da contingência do agir moral, buscam soluções correctas e viáveis para problemas concretos, enquanto os integristas que os combatem se situam no plano dos princípios genéricos, entendidos como absolutos. Estes últimos denunciam constantemente o relativismo moral (2) dos primeiros e exaltam a abordagem deontológica da moral, denunciando o teleologismo (3). Daí todo o relevo que se tem dado à questão das normas que obrigam “semper et ad semper”, dos princípios sem excepção alguma, do “intrinsice inhonestum”. Esta busca e defesa de certezas permite dizer que há como que um esforço para “dogmatizar” a moral, o que evidentemente seria contra a mais autêntica tradição. Para tal, mantém-se o jusnaturalismo, como nos manuais pré-conciliares, isto é, pretende-se deduzir da “natureza humana”, entendida de maneira essencialista, como a essência do humano, as normas que transmitirão a mesma imutabilidade das essências, ou pelo menos, a mesma rigidez, à apreciação ética do agir. No mesmo sentido rigorista, a interpretação restritiva da consciência face à lei, da liberdade face à verdade. Não é por acaso que, consciência e liberdade apelando à dimensão subjectiva da vida moral, se nota um certo mal-estar com toda essa dimensão, nomeadamente com a noção teológica chave de opção fundamental, de que se receiam de tal forma as consequências e as aplicações, que se prefere pô-la de lado a, usando-a, contribuir para diminuir, nos fiéis, a aceitação da categoria do pecado, e do pecado grave, com a amplidão e a inevitabilidade a que o rigorismo nos habituou (4).

Esta preocupação não só com a indeterminação do singular do agir, mas até com a perturbação ocasionada pelo debate sobre ética dentro da Igreja e a impossibilidade de o eliminar, levam a postular o auxílio do magistério e a consegui-lo em especialíssimas intervenções. Nem sempre com grande sucesso. O magistério seria assim solicitado para colmatar as “inseguranças” doutrinais. Para tanto, contribui largamente um pessimismo teológico de raiz agostiniana, segundo o qual as possibilidades da razão humana em descobrir, por si mesma, a verdade são muito diminutas. [Este pessimismo é particularmente sensível em tudo que vimos do que o Cardeal Ratzinger tem escrito ultimamente sobre ética].

De tudo isto resulta aquilo que nos parece ser um enorme contra-senso: apelar para a Igreja, para a autoridade especial e única do seu magistério, nestas matérias. É que essa autoridade, e a assistência de que está assegurada, têm a ver com a fiel transmissão da mensagem revelada. Ora, a revelação, de facto, nada diz em quase todas estas matérias em debate. A este respeito, há um enorme consenso. Toda essa matéria tem a ver com os dados de uma busca racional, todo esse debate tem sido sempre feito no plano do que se chama a lei natural. Por um lado, reconhece-se, portanto, pelo menos implicitamente, que a mensagem revelada nada nos diz directamente sobre estas questões, por outro invoca-se, de forma muito pouco clara é certo, uma autoridade, reconhecidamente constituída para se exercer em outros domínios. A questão da competência da Igreja em matéria de lei natural tem sido pouco debatida e não está muito esclarecida; no entanto, para muitos tudo funciona como se a Igreja por ter sido mandatada para transmitir ao mundo a mensagem sobrenatural da salvação ficasse automaticamente competente, e de uma competência superior, em todos os domínios, cuja especificidade e metodologia, cuja autonomia se ignoram.

Dentro da mesma preocupação, do mesmo medo de consentir no incerto e de reduzir o inseguro ao mínimo, dá-se uma verdadeira inflação do valor tradição, se não com graves atropelos à verdade histórica, pelo menos com acentuado exagero. Na VS (4), João Paulo II escreve: “Sempre, mas sobretudo ao longo dois últimos séculos, os Sumos Pontífices, quer pessoalmente quer em conjunto com o Colégio Episcopal, desenvolveram e propuseram um ensinamento moral relativo aos múltiplos e diferentes âmbitos da vida humana. Em nome e com a autoridade de Jesus Cristo, eles exortaram, denunciaram, ampararam, explicaram; fiéis à sua missão, nas lutas a favor do homem, confirmaram, ampararam, consolaram; com a garantia da assistência do Espírito da verdade, contribuíram para uma melhor compreensão das exigências morais nos capítulos da sexualidade humana, da família, da vida social, económica e política. O seu ensinamento constituiu um contínuo aprofundamento do conhecimento moral, dentro da tradição da Igreja e da história da humanidade.” E em nota (n. 8) cita em apoio destas extraordinárias afirmações dois textos, um de Pio XII, em 1941 e outro de João XXIII em 1961, textos que uma vez consultados se revelam algo insuficientes para a magnitude da afirmação.

A nível de debate teológico, há que mencionar a utilização do ensino de Tomás de Aquino, no mesmo intuito de assegurar uma maior garantia de verdade e de certeza. O mínimo que se poderá dizer é que a escolha dos textos é parcial, que não se entra nas perspectivas da suas grandes intuições, mas que apenas se servem dalgumas passagens soltas dos seus escritos seleccionadas e fora do contexto, e que se ignoram bastantes outras que lhes poderiam causar problema.

Mas, no fundo, a questão parece ser essencialmente eclesiológica, porque todo o esforço destes teólogos se nos afigura ser dirigido para não ter que admitir, nem sequer por hipótese de trabalho, que um ensinamento eclesiástico reformável seja precisamente reformado ou reformulado. Admitir que a Igreja, peregrina e em busca da verdade (e não proprietária da verdade) possa progredir, tacteando e aprendendo, parece ser demasiado difícil de aceitar para quem se situa nestes parâmetros. Há aqui, segundo julgo, duas coisas: por um lado, uma concepção da Igreja de tipo monofisita: o repúdio do monofisismo cristológico parece não ter sido aplicado à realidade Igreja, como “a fortiori” devia ter sido; e, por outro lado, nestas atitudes transparece uma angústia neurótica perante a mera possibilidade de mudança na Igreja. Não será isto fazer da Igreja um ídolo?

Em termos concretos, a tantas vezes anunciada (e adiada) Encíclica sobre os fundamentos do ensino moral da Igreja, que veio a ser a VS, acabou por apenas tocar algumas questões fundamentais, remetendo, como já disse, para o Catecismo da Igreja Católica (5) desse ano de 1993. Além disso, apenas denuncia abstractamente alguns «erros», mas fá-lo de tal forma que, nas muitas (e talvez exageradas) críticas que, da parte dos teólogos-moralistas se formularam, a mais insistentemente repetida foi a de que aquilo que é criticado não é defendido por ninguém. Acrescente-se que, ao endereçar a Encíclica aos bispos, constitui-os responsáveis pela sua aplicação, como se dissesse «estas são as coisas que não se devem defender em teologia moral, vede bem se não anda por aí gente a dizê-las, e, se for caso disso, agi..» (6). Poderá bem haver nesta tomada de posição uma espécie de recuo, de reinterpretação do papel do magistério ordinário, menos militante de uma facção, mais árbitro entre todas elas. Como se, evitando, por um lado, o criticado pela VS, e enquadrando-se nos parâmetros do Catecismo, por outro, os fiéis tivessem a base segura do ensino moral da Igreja, o que ainda lhes deixaria uma grande margem de liberdade. Infelizmente, porém, o Catecismo, está muito mais perto da reafirmação do pré-Concílio do que da renovação proposta.

Como conclusão, diríamos que o fio condutor de muitas destas posições, tomadas tantas vezes com o aval e por vezes com a cumplicidade da Santa Sede, é o da recusa do Vaticano II; na imagem da Igreja implicada, na abertura ao mundo e na leitura positiva da criação, no propósito de renovação da Teologia moral, o que os Padres conciliares disseram foi diametralmente oposto.

 

(1) Cfr. VS 5.

(2) Recorde-se a insistência de São Tomás sobre a contingência do agir e do saber moral. Cfr. O Sujeito Moral, Ensaio e Síntese Tomista, Porto 1992, pp. 141ss.

(3) Cfr. VS, c. II, IV.

(4) VS 65- 70. A noção de opção fundamental está ausente do Catecismo da Igreja Católica.

(5) A III Parte, A Vida em Cristo

(6) Ib., 114-117.

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