|
||||||||
3. O Pós-Concílio: Uma História Atribulada
|
||||||||
Na apresentação da encíclica, Paulo VI, depois de fazer referência à constituição e história da Comissão de Estudo, nascida dos trabalhos do Concílio, já em Março de 1963, por mão do Papa João XXIII e aos seus resultados, afirma: “…depois de termos examinado atentamente a documentação que nos foi preparada, depois de aturada reflexão e de insistentes orações, é nossa intenção agora, em virtude do mandato que nos foi confiado por Cristo, dar a nossa resposta a estes graves problemas”(1). Essa resposta é bem conhecida: Baseando-se na «natureza do homem, bem como da mulher e da sua relação mais íntima», afirmando a inseparabilidade dos aspectos unitivo e procriativo da sexualidade humana, e que cada acto matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida, a encíclica recusa todos os métodos ditos «artificiais» de regulação de nascimentos. Não se deve invocar o argumento do mal menor, nem se deve dizer que o conjunto de uma vida conjugal fecunda pode legitimar um acto infecundo. A recepção eclesial da Encíclica teve alguns aspectos inéditos. Rapidamente se soube, no meio de uma polémica sem precedentes, das divisões internas da Comissão e os textos da maioria como o da minoria foras publicados Para muitos casais cristãos, ela representou uma enorme dificuldade e, mesmo nos casos em que isso não se traduziu em afastamento prático da Igreja, levou a um certo desencanto e a posições de independência face ao magistério eclesial. Poderá ter contribuído para isso a rejeição aberta de muitos teólogos moralistas e pastores. É de mencionar também o facto de que vários episcopados nacionais, motivados pela perturbação de leigos e sacerdotes, em cartas colectivas, nalguns casos verdadeiramente notáveis, situaram as posições da HV no conjunto mais vasto e menos polémico das verdades consensuais, particularmente das que tinham sido recentemente reformuladas pelo Concílio, nomeadamente sobre o primado da consciência. Deverá reconhecer-se que o facto da HV e da polémica por ela desencadeada, e que se manteve durante décadas, com um acentuado extremar de campos, marcaram decisivamente o período pós-conciliar e determinaram toda a evolução da teologia moral católica. Não existe , portanto, na Igreja, unanimidade, nem sequer grande entendimento sobre problemas éticos. Tudo isto é, no entanto, perfeitamente normal. Sempre assim foi, sempre se admitiu pluralismo de opiniões em matéria moral: os séculos da casuística foram de frequentes polémicas, que atingiram por vezes formas muito duras. Aliás, não há, nos símbolos e credos, nenhum artigo de fé de conteúdo directamente ético. Até aqui, portanto, a moral é amplamente discutida e as intervenções do magistério são raras e pontuais. Que há de novo? Apontem-se apenas alguns aspectos: a) Recorre-se, com frequência, no discurso intraeclesial, ao tema da crise moral, da desmoralização, agravada e progressiva, àquilo a que M. Vidal chama “el falso camino de la ‘patética moral”; b) Nos últimos 30 anos, multiplicam-se as intervenções magisteriais; c) Uma das facções em campo, uma das posições em discussão parece dotada de organização e militância, por exemplo, em torno de instituições como o Instituto João Paulo II para a Família (Roma, Washington, Valência), de colecções como “Ética y Sociedad” das Ediciones Internacionales Universitarias, Eiunsa (Barcelona), etc. As mesmas obras e publicações são traduzidas em várias línguas; os mesmos autores citam-se uns aos outros constantemente. Quando se começa a ver não só a repetição dos mesmos temas e dos mesmos argumentos, mas o recurso às mesma “auctoritates” (pessoas, obras) não se pode deixar de suspeitar uma frente comum, organizada e militante, numa ofensiva (ou numa cruzada?), tanto mais que nas posições opostas se nota muito menos unanimidade de interesses, de argumentações, etc. A nível dos factos lembremos o choque perante a encíclica, a recepção negativa de inúmeros leigos directamente interessados, as declarações de Episcopados nacionais, procurando dar contexto e equilíbrio ao negativo da HV, a rejeição por parte de uma grande parte de teológos-moralistas, numa generalizada atitude de contestação e dissentimento, não só da proibição da “contracepção”, como dos fundamentos teóricos dessa posição; entretanto vinda de outros quadrantes, nasce a pressão para que a HV seja declarada se não doutrina infalível, pelo menos irreformável. Lembremos ainda a firme determinação que com Paulo VI a isso se opôs, resistindo a essa manobra, como também a notável abertura com que acolheu a situação inédita de uma tão partilhada discussão de uma posição do seu magistério, fazendo inclusivamente votos de que esse mesmo debate encaminhasse todos para a verdade (2). Em 26-04-71, uma Comunicação Oficial da Congregação do Clero reconhece que as particulares circunstâncias que intervêm num acto humano objectivamente mau, embora não possam transformá-lo em objectivamente virtuoso, podem fazê-lo “não culpado, menos culpado ou subjectivamente defensável”. A mesma entidade retomou o assunto numa Nota (30-05-72) em que as palavras “subjectivamente defensável” desaparecem. Parece poder afirmar-se que à enorme perturbação provocada pela HV, aliás sem que as questões abertas sejam minimamente resolvidas, sucede uma acalmia, uma aceitação da situação em termos práticos. Mas as coisas mudam com João Paulo II. Sem a pretensão de ser exaustivo, lembro apenas alguns factos. Podem, por exemplo, notar-se diferenças bastante claras, no sentido do endurecimento, entre as propostas do Sínodo sobre a Família e a exortação Familiaris Consortio (1981), que lhe serviu de conclusão. Não é possível no quadro desta perspectiva histórica documentar inteiramente esta afirmação, mas que se leia a proposta do Sínodo sobre a gradualidade do processo dinâmico da conversão [proposta 7] e se confronte com o que, sobre o mesmo tema, é dito na Exortação Apostólica [FC 34] e, salvo melhor opinião, elimina inteiramente a contribuição original do Sínodo. A mesma orientação correctiva se depreende do confronto da proposta 23, em que depois de se citar o papa Paulo VI afirmando que o magistério poderá ainda e deverá sem dúvida intervir de novo de maneira mais vasta, de forma orgânica e sintética se dirige um apelo aos teólogos para colaborarem com o magistério nessa tarefa, por um lado, e, por outro, a passagem da Exortação que lhe corresponde e que segue muito de perto [FC 31]: aqui, desaparece a citação de Paulo VI, não se faz menção da possibilidade de a doutrina poder ser formulada de forma mais vasta, mais orgânica e sintética. O apelo aos teólogos, que é retomado, resulta obviamente confinado às tarefas da explicação e fundamentação da doutrina, sem se tocar na sua formulação (3). A propósito das declarações episcopais feitas em torno da HV, declarou aos Bispos austríacos (19-06-87) que elas reflectiam uma certa perplexidade compreensível pouco depois da publicação da Encíclica, mas que à luz da confirmação que o seu ensinamento veio a receber do magistério posterior, deveriam ser revistas. Recebendo os participantes do Congresso que o Instituto João Paulo II e a Universidade romana do Opus Dei organizaram para comemorar os 20 anos da HV [Congresso Internacional pela Família na Europa e em África, sob o tema «Para uma Transmissão Responsável da Vida Humana»] aproximou, ou mesmo identificou, a verdade moral da Encíclica com a verdade dogmática da existência e da sabedoria de Deus, ou, mais exactamente afirmou, expressamente a propósito da raiz da «mentalidade anticoncepcionista»: «É a revolta contra Deus criador, único Senhor da vida e da morte das pessoas humanas; é o não-reconhecimento de Deus como Deus; é a tentativa, intrinsecamente absurda, de construir um mundo ao qual Deus seja totalmente estrangeiro» (4). Não se pense que esta ofensiva é meramente pessoal, por muito que tenha havido de pessoal, por parte de João Paulo II, neste empreendimento. É algo de institucional. Que se pense nos [relativamente numerosos] documentos vindos dos organismos do magistério romano em matéria de moral sexual, primeiro, e depois, como os argumentos não convencem e continua a haver forte contestação, sobre os deveres dos teólogos. A título de exemplo, saliento dos primeiros a «Declaração sobre alguns pontos de ética sexual», Personna Humana, Doutrina da Fé, 29/12/1975, e a «Instrução sobre o respeito à vida humana nascente e a dignidade da procriação», Doutrina da Fé, 22/02/1987, em que se condenam todas e cada uma das formas de procriação medicamente assistida [PMA]. Das segundas, destaco a «Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo», 24/05/1990, em que, entre muitas outras coisas discutíveis, se nega a possibilidade de dissentir das posições do magistério em termos tais que acabam por se opor à própria doutrina do Vat. II sobre a consciência (5) e aquela que é, para mim, a pérola desta literatura, a Carta Apostólica de João Paulo II sob forma de «Motu Proprio» Ad Tuendam Fidem, e em que se afirma como «absolutamente necessário», para defender a fé dos cristãos contra os erros introduzidos pelos teólogos, acrescentar, nos Códigos de Direito canónico, sanções, aliás formuladas de forma muito genérica e muito vaga. Um dos dados essenciais de toda esta situação, aquele que lhe confere o seu verdadeiro contexto embora seja tantas vezes escamoteado, rarissimamente assumido, e no entanto perfeitamente indiscutível, é o facto de que não se tratar nem de matérias reveladas nem de pontos de doutrina definidos por um magistério infalível. A nota mais característica do período em questão parece ser a da controvérsia: foram, de facto, anos de muita polémica. Em termos práticos, para muitos, funcionou o esquema de uma certa ambiguidade, de manter, na teoria, a dureza dos princípios, a par de, na prática, de não os respeitar, em nome do realismo “pastoral”, o que, manifestamente não é uma solução satisfatória. Em conclusão poderia dizer-se que todo este desenvolvimento parece ser apenas a teimosa defesa de uma posição infeliz, a da HV. Mas a HV , na sua opção pela minoria da Comissão, é já a expressão de uma teologia, a dos textos apresentados ao Concílio pelo Santo Ofício, aquela que o Vat. II recusou. |
||||||||
(1) HV, 5-6. (2) Paulo VI, em atitude de grande abertura, manifestou se esperançado de que a polémica, provocada em torno da HV, contribuísse para que a Igreja se aproximasse de um melhor conhecimento da vontade de Deus, em Mensagem ao 82º Katholikentag (8-9- 1968), publicada por Franz Boeckle e Carl Hollenstein, em Die Enzyklika in der Discussion, Benziger Verlag, 1968, p. 38. (3) Para a propostas do Sínodo, v. La Documentation Catholique 1981, pp 537-550. (4) Cfr. DC, 1988, 440. Faz pensar na frase atribuída ao Papa Leão XII (1829): «Todo aquele que se faz vacinar deixa de ser filho de Deus. A varíola é um julgamento de Deus, (e) a vacina é um desafio para com o céu», citada por Andrew Lustig, in The Lessons of Frankenstein, Commonweal, August 13, 2004, p.8 (5) cfr. n. 38. |
||||||||
ISTA, Página principal - Cadernos do ISTA - TriploV |
||||||||
ISTA CONVENTO E CENTRO CULTURAL DOMINICANO R. JOÃO DE FREITAS BRANCO, 12 1500-359 LISBOA CONTACTOS: GERAL: ista@triplov.com |