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2. O CONCÍLIO:
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Algumas décadas antes do Concílio começa a fazer ouvir-se, na Igreja, e com cada vez maior insistência, o desejo de uma séria renovação da teologia moral. As críticas formuladas à teologia moral “dos manuais” incidem principalmente no seu carácter legalista, na dependência do direito canónico, de que resultam posições quase exclusivamente negativas, ou mesmo repressivas, o seu afastamento relativamente a todo o dado bíblico e particularmente à novidade evangélica, a sua incapacidade de esclarecer tantos problemas, novos que a actualidade apresenta à consciência dos cristãos. Essas e outras críticas são acompanhadas, como é natural, de algum esboço do que se deseja para a moral do futuro, mas a sua elaboração efectiva não é realmente tentada. Como seria de esperar, estas vozes críticas não constituem a opinião dominante entre teólogos e pastores e muita gente na Igreja continua a não ver a necessidade de rever drasticamente a maneira de fazer Teologia Moral; nem o argumento de maior fidelidade à verdade revelada e de retorno às fontes bíblicas e patrísticas faz considerar desejável e oportuno interromper a continuidade vinda dos séculos da casuística. Coube ao Concílio tomar posição sobre o fundo desta questão e fê-lo de forma inequívoca. Na histórica sessão de 20 de Novembro de 1962, o Concílio, inaugurado a 11 de Outubro, assume-se como soberano e define incoativamente a sua própria orientação ao rejeitar um dos projectos preparatórios, elaborados de antemão pela Cúria Romana. Esse facto e a correspondente tomada de consciência da existência de uma maioria favorável à renovação e à abertura da Igreja levaram no resto da 1ª sessão e, ainda mais, na primeira inter-sessão, a afastar a quase totalidade dos textos preparados pelos órgãos centrais da Igreja, nomeadamente pelo Santo Ofício. Foram assim postos de lado dois projectos de Constituição dogmática que interessavam directamente a Teologia moral, um sobre a “ordem moral cristã” e o outro sobre a “castidade, o casamento, a família e a virgindade” (1). A rejeição destes textos exprimiu o descontentamento para com a Teologia moral “oficial” e representa mais do que o seu repúdio, o desejo da sua substituição por outra coisa. Aquilo que mais terá contribuído para a decisão conciliar no que diz respeito aos textos preparatórios em matéria moral teria sido a sua abordagem e tratamento das questões de forma jusnaturalista, isto é, à base da lei natural entendida de forma essencialista e fixista. Houve inclusivamente um certo cuidado nos posteriores documentos conciliares em evitar a utilização dessa noção de lei natural e de lhe preferir uma argumentação de conteúdo personalista (2). O voto do Concílio em favor da renovação da Teologia Moral é muito explícito. “Ponha-se especial cuidado em aperfeiçoar a teologia moral, cuja exposição científica, mais alimentada pela Sagrada Escritura, deve revelar a grandeza da vocação dos fiéis em Cristo e a sua obrigação de dar frutos na caridade para a vida do mundo” (3). Assim se postula- a reintrodução da moral no contexto da mensagem cristã, em dependência directa da Escritura, mas também, em consequência, num relacionamento vivo, com o dogma: apontando para uma teologia moral que se elabore em fidelidade às categorias essenciais da salvação, da bondade intrínseca da criação, do desígnio salvífico, da graça, etc. Reassume-se expressamente a dimensão subjectiva e personalista, ao visar “a grandeza da vocação dos fiéis em Cristo”. Sublinhe-se ainda a nota positiva, enquanto não se concentra apenas no pecado a evitar, mas sugere todo um programa de acção e de realização, e a abordagem dinâmica, ao superar simultaneamente; os aspectos individualista e angelista, quando menciona como objectivo desse programa de acção o “dar frutos, na caridade, para a vida do mundo”. O propósito conciliar de uma profunda renovação da teologia moral, que aqui encontra as suas linhas mestras, veio a ser reafirmado e explicitado mais tarde, quando algumas destas evidências já pareciam a muitos pouco claras. “A renovação da teologia moral, querida pelo Concílio Vaticano II, insere-se nos esforços que a Igreja está a realizar para compreender. o homem de hoje e para ir ao encontro das suas necessidades num mundo que está em profundas transformações”(4). Desta forma, claramente se enquadra a vontade de renovar a teologia moral num dos propósitos essenciais do próprio Concílio, o da solicitude e abertura para com o mundo contemporâneo; pelo mesmo motivo se impõe uma atenção muito especial à Constituição Pastoral A Igreja no mundo actual Gaudium et Spes (GS), visto que é sobretudo aí que se exprime, e de forma constitutiva para a Igreja, a atitude pastoral de identificação e diálogo. No interior de uma atitude global de solidariedade para com toda a família humana, afirmada desde as primeiras palavras -“as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”- a Igreja adopta o método do diálogo, em vista da salvação do género humano e da renovação social (5). É esse, com efeito, o objectivo visado e a ele se deve submeter toda a actividade humana: o bem da humanidade e a plena realização das pessoas (6). A atitude de diálogo em que a Igreja assim se empenha, significa, por um lado, que, não sabendo tudo e não tendo todas as respostas (7), os cristãos desejam contribuir para a solução de tantos problemas e questões em aberto no mundo contemporâneo com a luz da Revelação em que acreditam, de cuja fecundidade histórica não duvidam. Mas a Igreja também reconhece receber muito do mundo moderno (8). Na base deste intercâmbio, possibilitando-o, dando-lhe fundamento, encontra-se, por parte da Igreja, uma leitura, em última análise positiva, tanto da pessoa humana como da própria sociedade. Respeitando-as, como interlocutores válidos, a Igreja mais não faz do que reconhecer nelas a acção de Deus criador e providente. Na pessoa humana, de cuja dignidade como imagem de Deus se ocupa no primeiro capítulo, a Constituição Pastoral reconhece, da forma mais inequívoca, a soberania da consciência (9). Na sociedade em geral, reconhece a legítima autonomia das realidades terrestres (10). O Concílio vai mais longe ao reconhecer que um novo humanismo se afirma cada vez mais, que cresce no mundo o sentido de autonomia e responsabilidade (11). É este, ou deveria ser, o terreno próprio do diálogo Igreja-mundo e, em consequência, este novo humanismo constitui uma das coordenadas essenciais à renovação da teologia moral, desejada pelo Concílio. As duas perspectivas, a do Decreto Optatam Totius e a da Constituição Gaudium et Spes, não são, porém, idênticas. Na primeira, dá-se voz ao propósito de recuperação do específico cristão, à própria identidade; na segunda, acentua-se a solidariedade dialogante com o mundo contemporâneo, no respeito pela sua dignidade e autonomia. Não sendo inconciliáveis, as duas posições ficaram por conciliar. A renovação da teologia moral, apesar do voto do Concílio, ficou, em larga medida por fazer, ou. com mais exactidão, está longe de estar concluída. De facto, a integração das duas perspectivas numa única metodologia parece não só possível como ainda hoje desejável, e atendendo à autoridade própria do Concílio e dos seus textos, um imperativo. O seu contexto seria o de relação aberta e verdadeiramente dialogante com o ethos dos nossos dias, o qual na sua leitura mais favorável, provavelmente com muita verdade, é visto como um “humanismo de responsabilidade e autonomia”. Nesse quadro, os cristãos, que têm muito a receber e a aprender com os demais, aos quais estão “unidos no dever de buscar a verdade e de nela resolver”(GS 16), os problemas morais que surgem, deveriam contribuir com as luzes da sua fé e a partir dela. Não se fechando sobre a sua própria tradição –infelizmente tão deficiente em tantos aspectos-, deveriam, no entanto, poder introduzir no diálogo valores e objectivos a acautelar em todas as circunstâncias, como a dignidade da vocação de todo o ser humano, numa antropologia de realização e felicidade, a perspectiva de uma história colectiva com sentido, a meta da libertação e da comunhão. Visto a esta distância, é forçoso reconhecer que este ensino do Vat. II está marcado por uma grande dose de ambiguidade. Fica-se, em particular sem ver como se irá harmonizar a orientação confessional da OT e a orientação de identificação com a cultura “deste tempo” e de diálogo aberto, de contribuição e acolhimento, na GS. De certo modo, é normal que os textos de um Concílio ganhem vida e se venham a “definir” melhor com a prática, com o uso que se lhes dá, com o que vem depois. Mas o que veio depois foi a Encíclica Humanae Vitae (1968). De facto, as orientações fundamentais do Concílio para a renovação da teologia moral acabaram por ser limitadas no seu alcance pela projecção das posições relativas a um problema específico, o da regulação dos nascimentos. Neste campo, não só há quem detecte uma certa incoerência entre dois números da GS. Num deles afirma-se expressamente serem “os próprios esposos que, em última instância, devem diante de Deus tomar esta decisão”, apelando-se para a sua responsabilidade humana e cristã (GS 50, §2º). No outro, insiste-se em que “a moralidade dos comportamentos…deve determinar-se por critérios objectivos, tomados da natureza da pessoa e dos seus actos” (GS 51, § 3º). Também aqui se poderia tentar estabelecer numa verdade mais profunda e englobante a harmonia da responsabilidade derradeira da consciência dos esposos com os critérios objectivos. Acontece, porém, que o Concílio não se foi mais longe neste domínio porque toda a questão foi confiada “por mandado do Sumo Pontífice a uma comissão” (12). O resultado dos trabalhos dessa comissão foi a Encíclica Humanae Vitae (HV), de 25 de Julho de 1968. Ora, em alguns aspectos, os mais significativos do seu conteúdo, a Encíclica aproxima-se muito mais das perspectivas dos textos preparatórios rejeitados pelo Concílio (13) do que das orientações deste consignadas na GS e no OT. |
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(1) Schema constitutionis dogmaticae de Ordine morali christiano e Schema constitutionis dogmaticae De castitate, matrimonio, familia et virginitate, in Acta Synodalia Sacrosancti Concilii Oecumenici Vaticani II, vol. I, Periodus prima, Ed. Polyglotta Vaticana, 1970 sq, pp 695-717 e 718-775, respectivamente. Cf. Philippe Delhaye, in L’Église dans le Monde de ce temps, t. II, Coll. Unam Sanctam 65b, pp. 387-395, Paris, Cerf e Carlos-Josaphat Pinto de Oliveira, Éthique chrétienne et dignité de l’homme, Fribourg, Cerf, pp. 131-157. Partes desses textos foram, porém, consideradas na redacção da Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Cfr. History of Vatican II, por Giuseppe Alberigo/Joseph Komonchak, 363 ff, n.16. (2) Cfr. Carlos-Josaphat Pinto de Oliveira, loc. cit., pp 148-152. (3) Decreto sobre A Formação Sacerdotal Optatam Totius 16, 4º§. (4) Sagrada Congregação para a Educação católica, A Formação Teológica dos Futuros Sacerdotes, Roma, 1976, nn. 95-101. (5) GS 3, § 2º. (6) GS 35, § 2º. (7) GS 33, §2º e 43, §2º. (8) GS 44 (9) GS 16. (10) GS 36 (11) GS 55 (12) GS, II Parte, I, nota 14. (13) Cfr. Pinto de Oliveira, op. cit., p.151. |
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