Devemos considerar que o “Hard Problem” não está de todo explicado ainda que demos conta da aparição do mental. Para compreender a consciência não basta explicar a emergência do psíquico, senão que, para além disso, devemos dar conta da sua subjectividade, isto é, da razão pela qual os fenómenos psíquicos são unicamente percebidos pelo próprio sujeito, cujas sensações não podem ser sentidas e descritas por alguém desde o exterior, ao contrário do que sucede com uma melodia musical que pode ser ouvida e descrita por muitas pessoas.
O outro aspecto do “Hard Problem” é o da natureza do eu interno, desse sujeito consciente do que percebe ou decide fazer; um sujeito que, aparentemente, se conhece a si mesmo. A este respeito, considero que o problema da subjectividade tem sido, até agora, pouco e mal abordado pelas Ciências Cognitivas. Tal deficiência deriva, em grande medida, de certos preconceitos, como o de considerar que esse sujeito pré-existe às experiências concretas em lugar de ser um produto das mesmas, ou que está presente nas crianças da mesmas maneira que nos adultos, ou de imaginar a consciência como uma função autónoma, vinculada a qualquer lugar concreto do cérebro.
A maioria das teorias esquece que não nascemos com subjectividade, senão que esta é também um produto, fruto de um largo processo de unificação de muitos outros fenómenos, já que a subjectividade tem uma ontogénese em cada indivíduo, para além de ter uma história filogenética. O seu desenvolvimento em cada um de nós requer o trabalho de distintos módulos e redes neuronais, podendo-se falar de uma neurogénese e uma psicogénese da subjectividade.
O ponto de partida para quem aborda o problema desde uma perspectiva genética será a ausência de subjectividade ou a indiferenciação entre o objectivo e o subjectivo. Antes de poder falar de um “eu vejo” ou “eu penso” devemos falar de que “se produz” ou “tem lugar” uma imagem ou pensamento no cérebro, quiçá como uma melodia neuronal. A primeira pessoa surgirá depois, após um processo neuro e psico-lógico, que passa pela percepção dos objectos ou a consciência do meio espacial e temporal, por um conhecimento do próprio corpo (consciência corporal), das nossas acções, pela posterior capacidade – graças à linguagem – de objectivar as nossas operações mentais e reflectir sobre elas, até chegar à construção de um eu que reflecte sobre a sua própria capacidade de reflectir e que se percebe como algo distinto do corpo ou do cérebro, dos quais, sem embargo, é uma criação.
Este processo neurológico de formação do sujeito requer a participação conjunta de muitos módulos ao longo do tempo, começando pelo primitivo cérebro interno, com os reguladores automáticos da funções vitais, com o analisador rítmico, os sistemas de propriocepção e estereocepcão, a memória emocional (com sede na amígdala) e objectual (no hipocampo), que proporcionam as bases para estabelecer uma diferença entre o próprio corpo, o da mãe e outros objectos do mundo, depois de o organismo se tornar independente fisicamente da mãe, com o nascimento.
Por sua vez, o desenvolvimento do tálamo facilitará rapidamente a atenção selectiva, enquanto que o diálogo tálamo-cortical permitirá a realização simultânea de acções, umas automáticas e outras atencionais, fazendo emergir o eu como agente intencional. Posteriormente, o desenvolvimento dos sistemas corticais tornará possível a representação, a simbolização, a linguagem e, com ela, a reflexão sobre si mesmo. A consciência corporal e a consciência dos objectos e do espaço circundante serão possíveis graças ao desenvolvimento do córtex parietal, occipital e temporal, enquanto que o córtex frontal permitirá, para além da linguagem, a planificação das operações mentais e o aparecimento do eu reflexivo. Finalmente, a conexão inter-hemisférica culminará na criação de um eu capaz de reflectir sobre a sua própria existência reflexiva, responsável fazedor de si mesmo, com os consequentes problemas psicológicos que se originam durante a adolescência.
Esta perspectiva ontogenética da consciência permite-nos pensar que não há um sujeito interno que preexista às experiências pessoais, nem sequer um mecanismo especializado na introspecção ou na auto-reflexão, senão que aquilo que consideramos como um sujeito pessoal é, na realidade, o produto da organização da nossa experiência psíquica. |