CIÊNCIAS
Cognitivas e Identidade pessoal
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Alberto Carreras

IDENTIDADE PESSOAL:
Caminhos e Perspectivas
Francisco Teixeira (coordenação)
Coimbra, Editora Quarteto, 2004
INDEX

1. Consciência e Identidade Pessoal: um problema tradicional
2. O “hard problem”, hoje

3. Melodias neuronais e génese da consciência
4. Neurogénese da subjectividade
5. Narrações e sociogénese do self
6. Identidade plural e função unificadora da consciência
BIBLIOGRAFIA

1. Consciência e Identidade Pessoal: um problema tradicional

Desde há muito tempo que a consciência está ligada ao debates sobre a identidade pessoal. Quando as Ciências Cognitivas se interessam por este assunto colocam-se na situação de herdeiras das muito antigas reflexões platónicas e cristãs sobre a relação entre a alma e o corpo. Posteriormente, quando a biologia moderna explicou cabalmente o fenómeno vital, o enfrentamento entre espiritualistas e materialistas deixou nas mãos da ciência a explicação da vida, pelo que o debate sobre a alma ficou circunscrito aos temas das relações mente-cérebro. Nos últimos decénios, e à medida que as Ciências Cognitivas foram proporcionando modelos para explicar os processo mentais (diferenciar formas, comparar, classificar, abstrair, realizar operações lógicas e matemáticas ...), estes foram perdendo o seu mistério e o dualismo refugiou-se no reduto da consciência. Para Eccles, por exemplo, esta representaria a parte espiritual do homem.

Ao longo deste caminho o problema foi-se deslocando, porém, manteve em todas as suas etapas enfrentamentos com dois tipos de teóricos: aqueles que, como Descartes, se sentem identificados primeiramente com a sua mente, os seus pensamentos, as suas recordações e projectos, percebendo-se a si mesmos como uma “mente dentro de um corpo” (embodied mind), e aqueles outros que, pelo contrário, se sentem a si mesmos como um corpo com mente.

Ainda que ambos os partidos tenham mantido as suas posições durante a época Moderna, as ideias sobre a consciência foram mudando. Se antes se dava por suposta a transparência da mente para si mesma (nisso consistia a consciência), agora, porém, são muitos os que admitem sem dúvida a supremacia do inconsciente.

Com efeito, a Filosofia Moderna, com Descartes à cabeça, herdou da Filosofia Medieval a tese de que a mente era (ou podia ser) inteiramente consciente de si mesma e das suas operações. O “consciente” tornava-se sinónimo do “mental”, pois todo o mental era consciente. Esta hipótese da transparência era também a da equivalência entre psique e consciência, o que significava que ambas tinham o mesmo conhecimento ou a mesma quantidade e qualidade de “informação”. É o que Santo Agostinho queria dizer ao falar da “trindade” pessoal, uma trindade à imagem do seu análogo divino. “É, pois, certa imagem da Trindade, e mente, a sua notícia, filho e verbo de si mesma, e em terceiro lugar o amor; e estas três coisas são uma só substância” (1). Para Agostinho, o espírito (fosse divino ou humano) tinha uma “notícia” ou conhecimento de si mesmo tão totais, que um e outro eram equivalentes. Somava, para além disso, uma dimensão algo esquecida nos actuais estudos cognitivos, o amor recíproco que sentimos pelo nosso eu interno e que este sente por nós mesmo. Ao ser total, este amor viria a corresponder-se ponto por ponto com as partes amantes, tornando mais viva cada uma das suas características. Como mais tarde diria Santo Tomás, a mente, ao menos em “potência”, conhece-se ou está presente inteiramente e a si mesma. Bastante mais tarde, no século XIX, Hegel retomaria esta tese da equivalência entre o espírito e a autoconsciência, ainda que como uma etapa de um longo processo de auto-descobrimento.

Porém, antes que Hegel voltasse a falar da inteira correspondência entre espírito subjectivo e consciência, tinham tido lugar na Europa os primeiros debates sobre a identidade pessoal protagonizados por Locke e os seus críticos (Leibniz, Berkeley, Hume, Butler ou Reid (2). Estas controvérsias surgiram ao tomar-se seriamente em consideração a diferença entre mente e consciência, já que o homem realiza actos, que normalmente implicam operações mentais, dos quais não está consciente. Locke foi o primeiro a tratar o tema com atenção, preocupado com a questão da responsabilidade ética e jurídica. Fê-lo no Ensaio Sobre o Entendimento Humano, distinguindo entre a substância, o homem e a pessoa; em concreto, distinguindo a identidade como homem e a identidade como pessoa e limitando a esta última a consciência. Segundo ele, não teríamos responsabilidade pessoal dos actos dos quais não tivéssemos consciência, como os que os sonâmbulos realizam em sonhos e os que se praticam em estado de embriaguês.

Ainda que em desacordo com esta tese de Lock, Leibniz introduziu no debate os actos de que não guardamos memória (amnésia). Poderia alguém ser responsável daqueles actos de que não tem consciência actualmente sendo que, portanto, não pode arrepender-se ou emendar-se?

O problema jurídico e moral que os primeiros filósofos da modernidade se puseram continua hoje presente. Judicialmente continua-se a considerar um claro atenuante – se não integralmente irresponsabilizante – a ausência de uma ponderação consciente dos actos. Porém, também estamos em presença de um problema psicológico ou, inclusive, psicoterapeutico, pois se retiramos ao homem a responsabilidade da sua componente inconsciente retiramo-lhe algo de si mesmo, alienamo-lo dessa parte e impedimo-lo que encontre modos de assumi-la e controlá-la.

A atenção que Locke e os seus críticos começaram a prestar ao inconsciente alcançou o seu clímax em princípios do século XX, com o apogeu da Psicanálise. Com Freud o inconsciente converteu-se no protagonista da psique, enquanto a consciência aparecia como a ponta de um icebergue cujas profundidades são ocultadas pelas águas. Mas a Psicanálise não só reduziu o papel da consciência como também modificou as suas qualidades: em lugar de ser vista como um espelho fiel e transparente, foi representada como uma instância enganosa, que ocultava, mediante a repressão, os verdadeiros desejos e problemas do homem.

Desde as ciências cognitivas, Daniel Dennett é, hoje, um exemplo de desconfiança para com a consciência, ainda que tal desconfiança seja amplamente partilhada pela sua comunidade científica. Do mesmo modo que a memória, a consciência é, para Dennett (1991, 1996), criadora de montagens contínuas, mutáveis de um momento para o outro, ressaltando umas ou outras sensações actuais e mesclando-as entre si e com outras, passadas ou imaginadas.

A desconfiança para com a consciência cresce à medida que as ciências cognitivas se vão interessando cada vez mais pelos fenómenos inconscientes. Para além dos clássicos automatismos ou do inconsciente emocional (LeDoux, Goleman, etc.), estudam-se hoje com interesse os fenómenos da percepção inconsciente, como a percepção subliminar, a visão cega (Weiskrantz), a que tem lugar depois de uma excisão cirúrgica dos dois hemisférios cerebrais (Gazzaniga, Sperry) ou, inclusive, durante o sono ou a anestesia. Também se estudam com especial interesse os fenómenos contrários, como a inconsciência de que não percebemos algo que deveríamos perceber ou que não somos conscientes das nossas deficiências (heminegligencia, ponto cego,...), mas também, ainda, as deformações perceptivas ou alucinatórias, produto de drogas ou doenças, assim como todo o tipo de patologias psiquiátricas que consistem em alterações da consciência.

Para grande parte das ciências cognitivas os processos inconscientes já não constituem uma excepção mas o normal funcionamento da mente. O estranho, o que devemos explicar, é a aparição da consciência, tendo-nos afastado muito do contexto em que viveu Freud, quando ele mesmo pensava (1932) que “nos faz falta explicar o que se entende por consciente”.

(1) Santo Agostinho, De Trinitate, IX, 12,18. Dois livros fundamentais sobre a consciência na Filosofia Medieval são De Trinitate, de Agostinho de Hipona, e a Summa Theologiae, de Tomás de Aquino. Recentemente, a Revista Española de Filosofia Medieval dedicou um número monográfico (nº8, 2000) ao tema da “A autoconsciência na Filosofia Medieval”. Nele, o artigo de Eudaldo Forment, “Autoconsciência e Ser em Santo Tomás de Aquino”, faz referência tanto às teorias deste autor como às de Santo Agostinho.

(2) As disputas filosóficas sobre as teses de Locke acerca da Identidade Pessoal foram muito famosas por serem as primeiras que discutiram seriamente o tema. São clássicos os artigos de FLEW (1951) e ALLISON (1966). Numa extensíssima página bibliográfica (http://www2.canisius.edu/~gallaghr/pia.html) sobre os temas que se ocupam do self, a pessoa, a identidade pessoal, a autoconsciência e o autoconhecimento, podem encontrar-se estudos tanto históricos como contemporâneos.