CIÊNCIAS
Cognitivas e Identidade pessoal
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Alberto Carreras

IDENTIDADE PESSOAL:
Caminhos e Perspectivas
Francisco Teixeira (coordenação)
Coimbra, Editora Quarteto, 2004
INDEX

1. Consciência e Identidade Pessoal: um problema tradicional
2. O “hard problem”, hoje

3. Melodias neuronais e génese da consciência
4. Neurogénese da subjectividade
5. Narrações e sociogénese do self
6. Identidade plural e função unificadora da consciência
BIBLIOGRAFIA

2. O “hard problem”, hoje

Como já assinalamos, explicar a consciência, a sua natureza e as suas funções, converteu-se, hoje, no objectivo das ciências da mente. Como amostra do actual interesse pelo tema, consideremos que desde 1994 se realiza anualmente, em Tucson (Arizona), uma importante Conferência Internacional sob o título “Toward a Science of Consciousness”. Este ano (2002) teve lugar a sua quinta edição. Neste mesmo ano, em Junho, organizada pela Scientific and Medical Network e patrocinada pela Jonh Templeton Foundation (USA) teve lugar uma outra conferência sobre “Science,Consciousness and Ultimate Reality” no King’s College, em Londres, e, um mês antes, outra conferência teve lugar sobre “Consciousnessand Language”, na Universidade de Barcelona.

Há, na actualidade, pelo menos duas grandes publicações periódicas internacionais dedicadas à abordagem da consciência: Consciousness and Cognition, editada por Bernard J. Baars e Journal ofConsciousness Studies. Também duas revistas electrónicas estão dedicadas monograficamente à exploração da consciência: Psyche, an Interdisciplinary Journal of Researche on Consciousness, que vai no seu número 7 e Consciousness & Emotion, que introduziu na rede dois volumes.

Citemos, finalmente, como mostra do recente interesse pelo tema, a existência de uma importante associação, a ASSC (Association for the Scientific Study of Consciousness), de que fazem parte notáveis protagonistas dos actuais debates, que edita seminários electrónicos e que organizou a Conferência de Barcelona, como vem fazendo com muitas outras desde 1977.

Várias teorias e modelos têm sido propostas nestes últimos anos para dar conta da consciência ou de alguns dos seus aspectos. Podemos citar, entre outras, a conhecida como “Multiple Drafts” (“Versões Múltiplas”) de D. Dennett; a “Global Workspace” (“Teoria do Espaço de Trabalho Global”), de B.J. Baars; a conhecida como “High-frequency Oscillation” ou “Coherent 40-Hz Oscillation”, proposta, entre outros, pelo Prémio Nobel, codescobridor da dupla hélice, Francis Krick; a definida como “Maps of Maps” (“Mapas de Mapas” ou “Mapas de informação Reentrante”) e, ainda, a “Global Maps”, que é defendida pelo também Prémio Nobel G. Edelman, famoso também, nas ciências cognitivas, pela sua teoria do Darwinismo Neuronal, etc. ...

Todos estes modelos foram, como é lógico, criticados pelas suas limitações científicas. Porém, também receberam criticas filosóficas a priori, pelo simples facto de se proporem explicar a produção da consciência a partir de fenómenos não conscientes, isto é, de procurarem dar conta “objectivamente” da subjectividade e privacidade das nossas sensações.

Os autores de tais criticas são os que defendem a irredutibilidade da consciência, os que crêem que nunca poderemos explicar o modo como se produz a consciência porque esta não é o resultado de outros fenómenos mais elementares. Isto é o que proclama D. Chalmers (1996, 1997), que se tornou famoso distinguindo entre os problemas “fáceis” (em geral todos aqueles que dizem respeito ao funcionamento computacional da mente) e o “Hard Problem” das ciências cognitivas, constituído pela consciência e pela subjectividade.

Em concreto, este filósofo considera relativamente fáceis de explicar cientificamente problemas de tal magnitude como:

  • a habilidade para discriminar, categorizar e reagir ante os estímulos ambientais;
  • a integração de informações variadas que chegam por caminhos distintos;
  • a descrição verbal dos estados mentais;
  • a habilidade de um sistema para aceder aos seus próprios estados mentais;
  • o foco da atenção;
  • o controlo deliberado da conduta;
  • a diferença entre sono e vigília.

Nenhum destes itens, no entanto, tem uma dificuldade comparável ao do problema da consciência mesma.

Este campo antirreducionista conta com diversos pensadores e perspectivas. Por exemplo, o mencionado por Sir Jonh Eccles, outro Prémio Nobel da Medicina, que defendeu, até à sua morte, um dualismo substancial de tipo platónico, cartesiano ou escolástico, em que a alma, agora sob a forma da autoconsciência, era imortal e não dependente do corpo, ainda que o dirigisse.

Porém, a tradição filosófica mais prestigiada e influente deste lado do terreno, é constituída pelos fenomenólogos, que não podem renunciar à prioridade da consciência, que para eles é fundadora de qualquer suposta objectividade. A teoria anti-reducionista mais comum é aquela que considera a consciência como uma propriedade original, diferente de todas as propriedades conhecidas da matéria e não gerada a partir delas. É o caso do conhecido “dualismo de propriedades”, amiúde assimilado às teorias de “duplo aspecto”. D. Chalmers é, quiçá, o mais conhecido defensor deste dualismo, postulando uma correlação (informacional ou estrutural) entre os aspectos objectivos (neuronais), descritíveis em terceira pessoa, e os subjectivos (conscientes), somente descritíveis em primeira pessoa. Porém, proíbe, justamente, que consideremos tal relação como uma relação de causa a efeito.

Ainda que menos frequentes, também podemos encontrar entre os anti-reducionistas alguns filósofos materialistas. Assim, Jonh Searl (1984, 1992, 1997) não duvida que a consciência seja um fenómeno biológico, porém, encontra-se insatisfeito com as actuais explicações que dela se dão. Coincide com Chalmers e outros ao defender que a experiência pessoal, subjectiva, só descritível em primeira pessoa, é um fenómeno privado e original, distinto de todos os mecanismos que a originam.

No campo de jogo oposto, no qual me encontro, ao lado da maioria dos cientistas cognitivos, podemos apreciar também distintas correntes de pensamento. Alguns cientistas cognitivos consideram a consciência como um fenómeno pouco importante e deixam-no de lado, como, por exemplo, Minsky e os cognitivistas do anos 60 e 70. Foi o que fez o conductismo epistemológico, que considera a consciência como um epifenómeno ou um subproduto mental sem consequências práticas. Porém, são cada vez mais numerosos os cientistas e filósofos cognitivos interessados em explicar a natureza, origem e funções da consciência. Estes são etiquetados ou como “reducionistas” (porque explicam a consciência em função de fenómenos mais simples) ou como “emergentistas”. Debaixo desta última etiqueta reconhecem-se todos aqueles que, como eu, consideram que a consciência é um fenómeno organizativo novo que, porém, brota ou emerge a partir de outros processos mais elementares, do mesmo modo que uma harmonia não se encontra em nenhum dos sons elementares que a produz.

Na realidade “emergentismo” e “reducionismo” constituem conceitos polissémicos. Robert van Gulik (2001) chega a classificar 10 versões de emergentismo (6 ontológicas e 4 epistemológicas) e outras 10 de reducionismo (5 ontológicas e outras 5 epistemológicas), apresentando umas e outras como opostas.

Para aclarar a utilização destas etiquetas, considerarei, pelo meu lado, ao contrário de van Gulik e outros, que a oposição entre reducionistas e emergentistas não consegue eclipsar as suas afinidades. Uns (os reducionistas) fazem finca-pé em que a consciência é resultado de fenómenos mais simples, enquanto que os outros ressaltam a novidade do produto ou a originalidade das suas propriedades. Porém, ambos coincidem no pensar que se pode explicar cientificamente a produção da consciência, enquanto os anti-reducionistas se oporiam a ambos ao negar que a consciência seja um produto de outros fenómenos mais conhecidos. O critério de demarcação entre ambos os grupos é estabelecido pelo conceito de “produto”: é a consciência algo de original, que não deriva de nada distinto de si mesma? E se a resposta for no sentido do primeiro grupo, poderemos descrever como se chega a produzir a subjectividade?

Os argumentos do grupo anti-reducionista resumem-se a argumentos fenomenológicos ou a petições de princípio, que ressaltam a originalidade da consciência mas que, porém, não justificam nunca a sua suposta irredutibilidade. Limitam-se a afirmar reiteradamente a privacidade da experiência subjectiva (a que se descreve em primeira pessoa) ou dos “qualia” (1). Frequentemente, os seus argumentos consistem em “experimentos” ou simulações mentais, com as quais encenam os seus preconceitos: para além do “quarto chinês”, que Searle imaginou para superar o carácter computacional da mente, Nagel (1974) falou da impossibilidade de conhecer a subjectividade dos morcegos e Frank Jackson (1986), logo acolhido por Chalmers, criou a figura literária de Maria, uma neurobióloga do futuro que conhece todos os processos neuronais que produzem a visão da cor, mas que não tem experiência dela na primeira pessoa, porque é cega (ou, noutras versões, porque vive numa casa sem cores). De tudo isso deduzem que não explicamos realmente a experiência subjectiva mas antes nos limitamos a dar conta dos processos neurológicos que a sustentam, pois aquela provê-nos de uma experiência nova. Não faltam, ainda, argumentos com zombies ou homens privados de consciência, embora com uma mente operativa semelhante à nossa. Em todos os casos se confunde a originalidade da consciência com a sua irredutibilidade.

Há uma segunda série de argumentos, que não considerarei aqui, que são de tipo ético ou religioso. Se os anteriores propunham o que intentavam demonstrar, isto é, a originalidade e a irredutibilidade da consciência, estes pressupõem que se a nossa subjectividade ou consciência tivesse uma natureza material seria impossível sustentar valores éticos ou se acabaria com a religião.

O grave problema argumentativo de quem defende a irredutibilidade da consciência é que, se querem ser consequentes, devem optar por duas alternativas difíceis de aceitar no campo da ciência:

a) ou a consciência surge misteriosa e repentinamente num momento dado da evolução, quer dizer, é criada ex nihilo por alguma divindade (o que nos leva, como Eccles, ao criacionismo ortodoxo);

b) ou a consciência está presente nos níveis mais primitivos da matéria, isto é, constitui uma propriedade primária ou fundamental da matéria e existe desde que esta existe. Tal tese, defendida por Chalmers, Hameroff e outros cientistas cognitivos, conduz à aceitação do panpsiquismo, que é a atribuição de consciência, mente ou alma, a todas as coisas materiais, ainda que em graus diferentes. Ora, isto quereria dizer que nos níveis mais elementares da matéria existiria um proto-psiquismo, ou psiquismo elementar, sendo a consciência uma qualidade primária como o são a força electromagnética ou a gravitacional, ainda que só atingisse maturidade e consistência nos níveis superiores. Como disse Herms Romijn (2002), “a mente dorme no reino mineral, respira no reino vegetal, sonha no reino animal e é consciente no homem”.

No terreno contrário, quem pretende explicar a consciência como produto de fenómenos mais elementares apela às lições da história, pois o tempo tem demonstrado repetidamente que a ciência pode alcançar metas que pareciam impossíveis. O que numa época se cria inexplicável pode ser compreendido posteriormente. Em concreto, como contraponto ao argumento do “quarto chinês” de Searle, Paul e Patrícia Churchland falam da “sala luminosa”, ou da produção de luz a partir de forças electromagnéticas oscilantes, ainda que um íman agitado por uma pessoa não pareça que possa produzir luz em absoluto, devido à imensamente pequena frequência de tais oscilações. Do mesmo modo que a luz, também a consciência poderá ser explicada como um produto de fenómenos mais elementares e universais.

Junto à sua profissão de fé nos progressos da razão, os cientistas tornam a recordar a necessidade de aplicar a clássica navalha de Occam: “entities should not be multiplied unnecessarily”. Ter-se-ia que desfazer do conceito consciência, do mesmo modo que, no momento próprio, a ciência se desfez de outras entidades misteriosas postuladas para dar conta da inércia (teoria do impetus) ou para dar conta da vida (teoria da alma). Parece, pois, mais razoável, tentar explicar a consciência como produto de forças e fenómenos conhecidos, antes de a apresentar, a priori, como uma entidade misteriosa.

 

(1) Como já comentei noutra ocasião, os filósofos chamam “qualia” ou “qualidades” à nossa experiência (subjectiva) do que antigamente se consideravam as qualidades das coisas mesmas. Por exemplo, cores como a brancura, sons, odores, formas, etc.. Dado que a ciência reduziu, desde há tempo, estas ditas “qualidades” a “quantidades” (movimentos de átomos, diferentes longitudes de onda, de concentração de moléculas, etc.), agora só se reconhece como irredutível a experiência subjectiva da dita “qualidade”, assimilando-a a outras experiências internas como as dores ou outros tipos de sentimentos. Para os mentalistas (incluindo a maior parte dos fenomenólogos) a experiência subjectiva e intransferível dos qualia supõe um fenómeno novo e distinto, não redutível à actividade computacional dos neurónios, pois a nossa actividade cognitiva e conductual poderia ter lugar no cérebro sem estar acompanhada de consciência ou experiência subjectiva. Como defensor da irredutibilidade dos qualia podemos referir David Chalmers (1995): “Absent qualia, fading qualia, dancing qualia”, in MTZINGER, Thomas, Conscious Experience, Ed. Ferdinant Schoningh. O mesmo Chalmers, em http://www.u.arizona.edu/~chalmers/biblio/1.htm#1.7, recolhe uma ampla bibliografia sobre os qualia.