Ao mostrar a consciência como resultado de um longo processo, não podemos esquecer a sua dimensão social, o papel que os outros jogam neste processo e no seu resultado final. Desde esta perspectiva falaremos de uma sociogénese da consciência. E isso apesar de uma tradição filosófica que sobrestima de tal maneira a importância do “eu interno” que o apresenta com o autónomo relativamente ao exterior. A interacção entre o eu e os outros, no caso de existir, é considerada subsidiária e de escassa relevância.
Aquela é a tradição de Leibniz e das suas mónadas. Segundo este pensador do século XVII, todas as partes do universo, e, entre outras, o eu interno ou alma, estão predeterminadas pelo seu dinamismo interno. Não interactuam nem se influenciam umas às outras. Nem sequer a alma é afectada pelo que sucede ao corpo ou a qualquer uma das suas partes.
Muito próximo das velhas mónadas leibnizianas “que não têm janelas”, encontram-se os novos sistemas autopoiéticos de que nos falam Maturana (1980, 1984) e Luhmann (1984, 1990). Para o heideggeriano – e, portanto, fenomenólogo – Maturana, promotor da “cibernética de segunda ordem”, o mundo pessoal do homem reduz-se ao mundo da consciência, e só podemos dizer que existe o que lhe está presente; os estados mentais do sujeito não são dependentes do contexto mas da estrutura do sistema nervoso, são autónomos – se não independentes - do mundo social. Também para Luhmann o mundo subjectivo da consciência é independente do mundo social ou da comunicação, sendo, um e outro, sistemas fechados autopoiéticos. Para ambos os pensadores, a única relação que mantêm o mundo da consciência e o mundo exterior é a de estarem acoplados, o que significa, somente, que o primeiro não foi destruído pelo segundo. Os processos e os elementos de cada sistema estão enclausurados organizativamente e realimentam-se a si mesmos.
Frente àquela, encontramos a tradição da interacção ou da interdependência entre o interno e o externo, o subjectivo e o objectivo, a qual permite abordar as privilegiadas interacções entre o eu e os outros. É a tradição de Hegel, para quem a autoconsciência é “em si” e “para si”, na medida em que é “em si” e “para si” para outra autoconsciência, isto é, na medida em que é reconhecida. É conhecida como a teoria do espelho; conhecemo-nos e valoramo-nos em função de como os demais nos vêm e nos valoram.
James (1890) considerou o “mim social” como uma das principais dimensões do self, tendo em conta que “um sujeito tem tantos mins sociais como pessoas há com as que interactua e que reagem ante ele”. Depois dele, Cooley (1902) considerou o aspecto social e especular como o nosso construtor da nossa auto-imagem. Na mesma tradição, o criador do Interaccionismo Simbólico, G.H. Mead (1934), considerava que o nosso self é consequência do reflexo que nos lançam os “outros significativos”.
A maioria das aportações actuais provenientes do construtivismo social, podemos incluí-las dentro desta tradição. Por exemplo, as teorias do eu saturado de Gergen, que segue James ao sustentar que cada uma das relações que cada um mantém com os demais produz um novo e diferente aspecto do eu. Caracteriza, ainda, a época actual, pela multitude de relações que estabelecemos ao longo do dia ou pelo número de outros com quem comunicamos. De aí a origem de uma fragmentação do eu, que pode originar personalidades em permanente mudança e pouco estruturadas.
A tese central do construtivismo afirma que a nossa percepção do mundo, quer dizer, a realidade tal como é “para nós mesmos” não é um reflexo fiel de uma “realidade objectiva”, captada passivamente por um sujeito, mas que é, antes, uma construção activa desse mesmo sujeito. Não só construímos a nossa realidade transformando-a manual e tecnicamente, senão que o fazemos, em primeiro lugar, seleccionando e dando sentido àquilo que afecta os nossos órgãos sensoriais e, em geral, todas as nossas experiências. Quando esta tese se aplica ao conceito de si mesmo, chegamos à conclusão de que o nosso self também é uma construção que nós mesmos fabricamos.
Assim, o self e os demais constructos que fabricamos sobre a realidade exterior não são obra de indivíduos isolados mas algo que é produzido colectivamente. É a colectividade que condiciona o sentido que damos às nossas experiências.
Por tudo isto, os construtivistas sociais, provenientes do campo da Sociologia do Conhecimento, da Crítica Literária, da História, etc., fizeram ressaltar o papel da linguagem nesta construção colectiva da realidade. Assinalaram que cada grupo social tem a sua maneira peculiar de falar, a qual constitui uma forma de descrever e valorar a experiência. Cada casal tem a sua linguagem específica, como a tem uma família, um grupo de amigos, uma empresa, os membros de um clube, uma comunidade, uma nação, uma cultura, etc.. Graças ao vocabulário etiquetamos os fenómenos do mundo e descrevemo-los aos demais; ao mesmo tempo, cada grupo social, desde os mais pequenos aos de dimensão global, têm as suas próprias descrições e as suas próprias histórias, narrações e mitos, os seus próprios códigos, escritos ou não, que assentam em princípios, assinalam papeis, classificam comportamentos e constituem a base da identidade colectiva e individual.
Na medida em que construímos e valoramos o nosso eu a partir da forma como os outros reagem ante nós, com ou sem palavras, o papel da linguagem é proeminente; o que os outros dizem de nós e a forma como os demais nos descrevem, nos qualificam e nos valoram, fica fixado nas nossas mentes; durante muito tempo ouvimos as suas vozes no nosso interior, os seus conselhos, os seus comentários, as suas advertências, as suas explicações, até que tanto se entrelaçam umas com as outras que acabamos por esquecer a sua procedência.
O prestígio do construtivismo social, com o seu interesse pela linguagem e pelas narrações, forçou o mesmo Maturana a matizar o individualismo extremo das suas primeiras teorias, incorporando uma referencia social ao considerar o homem como ser “linguajante”. Muito representativos do construtivismo social aplicado ao estudo da consciência resultam os artigos de Burns (1998a e b) sobre “A Construção Social da Consciência”, tanto colectiva como individual. Donnya Wheelwell (1977) deu conta do influxo destas correntes no considerar da consciência como “fragmentos da histórias e pensamentos verbalizados”. Todas estas teorias, que apresentam o “eu” como produto de narrações a auto-narrações, são complementares com as de Gazzaniga ou Dennett, que o apresentam como um narrador e um fabulador nato. |