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BOLETIM DO NCH
Nº 15, 2006
Dedicado a Pedro da Silveira

Francisco Cota Fagundes:
Da migração e do exílio na poesia de Pedro da Silveira
Fagundes, F. C. (2006), Da migração e do exílio na poesia de Pedro da Silveira. Boletim do Núcleo Cultural da Horta , 15: 77-104.
Fagundes, F. C. (2006), On migration and exile in the poetry of Pedro da Silveira. Boletim do Núcleo Cultural da Horta , 15: 77-104.
 

INDEX

Sumário

Summary

Introdução

A partida

O retorno

Exílio insular e extra-insular

Considerações finais

Bibliografia

O retorno

São vários os poemas de retorno na poesia de Pedro da Silveira, sendo o primeiro, na sequência cronológica da sua poesia, o número 1 da secção «Quatro Poemas da Antemanhã», do volume A Ilha e o Mundo, ao qual dediquei alguns comentários no ensaio referido no início do presente trabalho (Fagundes, 2003). O poema tem como um dos seus textos palimpsésticos a «Ode Marítima» de Álvaro de Campos. Trata-se, no contexto da temática da migração e exílio em geral, e da fase de retorno em particular, dum texto extremamente significativo. O poema número 1 não tem data, mas integra-se num volume editado em 1953. É, portanto, lícito pensar que se trata dum poema sobre o primeiro regresso do poeta à sua terra – regresso imaginário, claro –, depois da sua fixação em Lisboa cerca de dois anos antes. As semelhanças mais óbvias com a «Ode Marítima» são a situação do sujeito poético silveiriano num café de Lisboa (num cais de Lisboa, na «Ode Marítima») e o uso do “paquete” (tanto no poema de Pedro da Silveira como no de Pessoa) como veículo imaginário para a viagem a encetar:

Aqui,

longe,

num café de Lisboa,

quase à beira do Tejo turvo das fragatas,

a olhar um paquete que vai na direcção da barra,

subitamente é como se eu também partisse.

 

E só de pensar-me partindo

embarco e, deslumbrado,

imagino-me chegado às ilhas. (Laranjas: 87).

No fim do poema – esgotada a viagem imaginária e depois da noção de “realidade” ser novamente restabelecida – o ser silveiriano, tal como o pessoano, regressa ao momento de partida. Álvaro de Campos está novamente sozinho no cais de Lisboa. O ser silveiriano, presumivelmente sentado à sua mesa de café, confessa a sua distância da pátria açoriana a que voltara apenas na imaginação e na saudade.

O recurso palimpséstico à «Ode Marítima» é utilizado para acentuar as marcantes diferenças entre os dois poetas no que concerne a respectiva viagem empreendida por eles, a sua orientação ideológico-temática, inclusive as radicais diferenças, nos dois textos, no que a algumas das suas respectivas evocações intertextuais diz respeito. Álvaro de Campos transita, imaginariamente, para e por épocas pretéritas e espaços e cenas que compreendem, entre outras, reminiscências de carácter metafísico, épocas associadas aos Decobrimentos portugueses, à literatura de aventuras marítimas de língua inglesa do séc. XIX (sendo Treasure Island, de Robert Louis Stenvenson, uma das obras mais ostensivamente evocadas), à própria infância de Fernando Pessoa. Quebrado o transe quase-místico que susteve o poeta pessoano pelo espaço de centenas de versos («Ode Marítima» contém mais de 900 versos) Álvaro de Campos, o exilado de outras épocas e outras personalidades, vê-se e revê-se novamente só no cais de Lisboa, o cais-de-ser-o-mesmo-com-vontade-de-ser-outro. Conquanto partilhe com o ser pessoano uma condição de exilado e nostálgico por outros espaços e tempos, o sujeito poético silveiriano, em oposição ao pessoano, não encetará, neste poema, uma viagem susceptível de quaisquer implicações metafísicas, decandentistas, escapistas ou anti-sociais (cf. as batalhas navais e as conhecidas cenas violentíssimas, inspiradas, em parte, nas aventuras dos piratas stevensonianos mas ultrapassando-as de todo na sua ostensiva expressividade homoerótica). A silveiriana é uma viagem hu manista de regresso imaginário à terra de origem, uma viagem de afirmação identitária, a expressão duma poesia partidária da poesia social, uma expressão ideologicamente solidária com os povos das então colónias africanas, sendo, neste particular, o uso recorrente de «Mãe Terra» o elo mais ostensivo desse parentesco. Para quem conheça não só a poesia do autor de A Ilha e o Mundo, mas ainda pensamentos seus emitidos extrapoeticamente, esta aproximação da experiência açoriana e africana não deve constituir nenhuma surpresa (cf. Silveira, 1977: 1-4).

Outro paralelo estrutural, com marcante diferença de conteúdo temático, com a «Ode Marítima» são os momenos ou sequências por que os dois sujeitos poéticos vão passando no percurso parabólico que traçam desde o café (cais, em Álvaro de Campos), depois pelas várias sequências de locais por onde a imaginação os transporta, até regressarem, por fim, ao ponto de partida. As sequências que enformam o poema de Pedro da Silveira são, até mesmo na sua ordem e distribuição através do poema, tematicamente expressivas. A primeira sequência (coincidente com a segunda das dez estrofes deste poema de 50 versos) evoca o “mundo familiar” do arquipélago como se ele estivesse a ser visto do ar. Neste particular, o poema 1 de «Quatro Poemas da Antemanhã» não deixa de estabelecer uma relação intertextual com o poema, referido e comentado em relação com a série de poemas de partida, «Improviso Aéreo». As imagens com que, nesta primeira sequência da viagem, os Açores são evocados são imagens duma perspectiva não só aérea mas genérica; mas que, aos poucos, se vão convertendo em imagens de progressiva proximidade, numa sugestão visual de câmara cinematográfica que lentamente se acercasse; e, num plano sensorial, da substituição, progressiva também, das sensações perceptíveis ao sentido da visão pelas imagens, denotando planos cada vez mais próximos, enformadas por sensações olfactivas e auditivas:

E vejo-te, Mãe Terra; és tu,

de nuvens e de aves marítimas coroada,

no meio desse Atlântico – bravio

abraço de águas salgadas que nos atira

para o mundo,

nos separa do mundo. Sinto

o cheiro saboroso do teu chão de lavas verdes;

ouço mesmo o rumor surdo das ribeiras

caindo das rochas abaixo

(ou será talvez o mar batendo nos baixios

da costa?)...

O segundo momento ou sequência de poema 1 é uma evocação, reflectindo uma vista já de terra, das cidades do arquipélago e das “vilas mortas” e de pois, “mais sobre oeste, / tanto que ali a Europa acaba, / [a] freguesia onde eu nasci” (Laranjas: 88), nota bairrista, em oposição a pan-açorianista, a que mais tarde voltaremos. No terceiro e quarto momentos ou sequências coincidentes com a quinta e sexta estrofes do poema é desferida a nota paisagística denotante da beleza das ilhas (as hortênsias) e conotante do atraso económico e do esforço humano pela sobrevivência (a rapariga com um molho de lenha à cabeça; um menino levando vacas para a relva). Como que a compensar a nota bairrista de particularização do torrão florentino, o sujeito poético, na quinta estrofe, levado pelo veículo da imaginação e da memória, percorre “todos / os lugares de cada uma das nove ilhas”, o que lhe permite tornar possível o impossível: a recuperação do tempo perdido, momentaneamente conseguindo-se, mediante um esforço da memória criativa a la Proust, agora com semelhanças com os «Lisbon Revisited» e, inclusivamente, «Aniversário», de Álvaro de Campos, rever e reaver a família perdida. Note-se, porém, que, ao contrário do Campos do «Aniversário», a família que evoca o sujeito poético silveiriano não é a família nuclear mas a família fraternal, diaspórica, acentuando-se assim o carácter social, histórico e colectivamente identitário do poema 1 de «Quatro Poemas da Antemanhã»:

Os meus antigos companheiros,

tantos deles por aí dispersos,

outros, como eu, perdidos ao longe

– na Europa, em África, nas Américas –,

estão agora todos presentes. Penso

que alguma cousa diferente vai passar-se,

algum acontecimento extraordinário.

(Laranjas: 88).

Antes, porém, desse “acontecimento extraordinário” ter lugar, o poeta sofre o rompimento desse elo de magia que lhe permitiu a viagem no espaço e no tempo – e a realidade da sua condição de ausente e nostálgico exilado impõe-se-lhe e traduz-se-lhe numa imagem prenhe de sugestividade e ambiguidade: “um muro hostil de braços estendidos cor de azebre”, impeditivo da concretização real do que permanecerá uma visão de sonho que permitiu a momentânea viagem espácio-temporal encetada no poema 1 e que teria sido, poeticamente, mais viável se as barreiras que separam o desejo e a concretização da viagem tivessem permanecido mais subtis e sugestivas em vez de descambarem no voluntarioso artificialismo imposto pelo “embarco e, deslumbrado, / imagino-me chegado às ilhas”, da segunda estrofe, e pelos versos “é só de imaginar-te que te vejo. / É só saudade a tua presença em mim”, da sétima estrofe. Como poema de regresso, este primeiro texto de «Quatro Poemas da Antemanhã» funciona ainda, veremos mais tarde, como introdução de temas e situações dramáticas associadas com os vários poemas de retorno no corpus silveiriano mas que serão tratados, como seria de esperar, de maneira diferente e com graus de êxito também distintos. Sinais de Oeste (1962) é um título que não pode deixar de evocar o nemesiano Eu, Comovido a Oeste (1940), o qual, juntamente com os também nemesianos O Bicho Harmonioso (1938) e Festa Redonda (1950), para mencionar apenas trabalhos poéticos, traduzem aquilo que Pedro da Silveira extrapoeticamente denominou “o selo da modernidade e [...] sinal de descoberta, em qualquer sentido, da realidade geográfica e humana das Ilhas.” (S ilveira , 1977: 32). Muito significativamente, Sinais de Oeste é encabeçado por duas epígrafes relacionadas com a temática geral em foco neste trabalho e com o tema do retorno em particular. A primeira epígrafe consiste de dois versos extraídos de Parva Naturalia, de José Blanc de Portugal (“Pássaro triste das ilhas derradeiras / a terra velha ainda te sorri”); a segunda é tirada de Do Sono e da Esfinge, de Afonso Félix de Sousa. Apesar de ser um texto longo, a sua relação íntima com a temática deste ensaio justifica a sua citação na íntegra:

Agora voltas – de onde? Agora sabes que é

preciso silêncio

para que mais te

sintas o exilado. Praia espessa do espanto.

Ilhas, ó ilhas longes, impalpáveis!

Quereis corrê-lo, o verde país de ontem, onde

a criança que foste ainda brinca.

E é tarde para o retorno. Força é acordares no

estrangeiro que, pálido, acorda no

teu íntimo. (Apud, Laranjas: 97).

É de notar que a primeira secção da colectânea Sinais de Oeste é intitulada «Arte Poética» e que consiste de um só poema do mesmo nome, no qual se contrasta o desejo, da parte do sujeito poético, de ilhas (“O meu desejo abarca as ilhas todas do Mar”, Laranjas: 101) com o fastio dos continentes – denominados pelo sujeito poético “desertos povoados!” (Laranjas: 101). A secção que se segue a «Arte Poética», intitulada «Pouco Mais que Paisagem», é por sua vez epigrafada por um breve texto extraído de O Vigia de Baleias, de José de Bellegarde, que reza assim: “Minha vida é olhar, olhar!...” (Laranjas: 103). O poema «Volto. Até quando?...» que compreende o primeiro dessa secção «Pouco Mais que Paisagem», é também, porquanto eu saiba, o primeiro poema de retorno de Pedro da Silveira, pelo menos na ordem em que os poemas estão dispostos na colectânea (este, como tantos outros poemas do Autor, não tem data). Condicionado pelos textos, incluindo os epigráficos, que o precedem, o poema constitui uma das expressões mais subtis de expressão de retorno migra tório/exílico. Três ideias principais o regem: a permanência do mar e das cores da paisagem vis-à-vis a não explícita mas pressentida transitoriedade de tudo mais que ganha não pouca expressividade por ser calada; a sensação, não original na sua essência, mas atingindo não pouca dramaticidade e novidade na compressão possibilitada pela catadupa de gerúndios e pela reiteração dos advérbios “aqui” e “longe” e pelas imagens quinestésicas denotativas e conotativas da permanente viagem, da condição da judeu-errância, do retornado, recuperando-se neste poema, como se recuperam, reminiscências de carácter autobiográfico que, no entanto, são transcendidas pela distância lírica atingida neste texto e que, como vimos, faltava ao poema 1 de «Quatro Poemas de Antemanhã»:

Desde menino vagabundo,

desde menino indo e tornando...

Longe,

aqui me desejando;

aqui,

longe e mais longe

o pensamento navegando.

A indeterminação das “vagas” da quarta estrofe – vagas do mar? Vagas do mar dos pensamentos e dos desejos do migrante/exilado? – preparam o terreno para o desfecho, compensadoramente enigmático também, como pede esta perolazinha lírica, “Querer ficar e nem poder pensá-lo!...” (Laranjas: 105). Não poder pensá-lo por incapacidade de realizá-lo? Não poder pensá-lo porque as vagas do mar dos pensamentos se sobrepõem e se cancelam umas às outras num turbilhão emotivo de desejos contraditórios que definem, sem a definir, a condição do migrante/exilado, do retornado à sua terra que já não é? À realização dum desejo que outro, contrário a esse, já cancelou? Dessa, e doutras subtilezas, se alimenta e vive «Volto. Até quando?...» A subtileza que enforma o poema «Volto. Até quando?...» é totalmente posta de parte num dos mais ostensivos e dramáticos poemas de retorno do corpus silveiriano: «Os Ritos (Segundo Nicanor Parra)», poema integrado na colectânea Poemas Ausentes, título plurissignificativo, sobretudo no contexto duma discussão de poemas de retorno. Poemas ausentes de outras colectâcteas? Poemas sobre a temática da ausência? Ambas as coisas? Os “ritos” titulares, enumerados num discurso mantido ao longo dos 47 versos essencialmente despidos de tropos deste poema dividido em 7 estrofes, alimentam-se, em parte, da intertextualidade com outros momentos expressos nos poemas já discutidos nesta secção dedicada ao regresso. Na realidade, este poema – que constitui a evocação de experiência repetidas em cada regresso de verdade e não apenas de deva neio , como é o caso do poema 1 de «Quatro Poemas da Antemanhã» – pode ser lido como uma antítese do poema 1. Lembramo-nos que esse poema, concebido como uma visão de sonho, traduz, enquanto dura o devaneio, na realização dum desejo de recuperação de momentos pretéritos: um mundo que ressurge; uns campos que nitidamente se vêem; antigos companheiros que estão agora todos presentes. O poema «Ritos», pelo contrário, consiste, em primeiro lugar, não dum mero retorno dum migrado ou exilado, mas sim dum retorno “depois duma grande ausência”. Essa grande ausência traduz-se, primeiro e como seria de esperar, na constatação de mortes (de familiares e conhecidos) e de ausências (de amigos e conhecidos levados pela (e)migração). Em segundo lugar – e eis a sua parte mais dramática – o poema encena uma série de ritos ou papéis, associados com momentos pretéritos, incluindo a infância, e presentes que exigem um desdobrar ontológico, da parte do sujeito poético, em vários entes – incluindo a própria mãe – e papéis que pertenceram e teriam sido assumidos por outras entidades agora mortas e ausentes. É mediante este teatro patético de mortos-vivos e vivos-mortos que o retornado, depois de criar um palco reminiscente duma tumba, encena uma recuperação do tempo perdido narrando-se estórias e cantando-se canções a si mesmo, tornando-se actor e espectador da sua própria solidão de exilado. Note-se que, apesar duma dramatização patética da solidão que tão frequentemente preside aos retornos ao vazio da condição (e)migrante e exílica – este poema também acentua os extremos de recursos a que tem acesso aquele que alguma vez passou pela aprendizagem de (e)migrante e exilado: a de tornar-se a sua própria família. Tantas vezes poetizada e ficcionalizada, raras vezes esta fase da emigração exílio terá atingido um grau de expressividade tão veemente, à qual nem falta um grau de ironia – e auto-ironia, como enfatiza a referência, onomasticamente transcendente, a Pedro Malas-Artes (sublinhado meu):

E assim abro a porta de minha casa,

entro e fecho-a à chave atrás de mim

como quem se defende dos ladrões nocturnos,

cerro as cortinas todas, encosto

as portadas de madeira das janelas

e sento-me na cadeira-de-embalar,

a mesma que meu avô trouxe de Boston

quando voltou de vez e se casou.

 

Fecho então os olhos (para ver melhor)

e a mim mesmo conto contos que ainda sei,

os de Pedro Malas-Artes primeiro

e em seguida quantos mais me vão lembrando

como aqueles, de subtilezas e enganos.

E com isto pouco a pouco adormeço

e quando acordo, descansado

e achando natural estar de novo onde estou,

ponho-me a cantar todas as canções

levianas e até obscenas

que anos a fio aprendi por esse mundo.

(Poemas Ausentes: 17).

Na secção, significativamente intitulada «Passos do Desterro», de Sinais de Oeste, deparamo-nos com um poema breve reveladoramente intitulado «O Mar, Sempre», epigrafado pela afirmação extraída de Atlante, de João Gouveia, afirmação essa de longo alcance na poesia profundamente insulada de Pedro da Silveira: «Eu sou do mar»:

Água: mar: lonjura...

Sangue e força

da vida!

Meu caminho às avessas,

Desaguado na terra.

 

Não reneguei.

Hei-de tornar! (Laranjas: 198).

Para além de apontar para uma das constantes da poesia silveiriana, este breve poema prenuncia outro poema desta mesma secção «Passos do Desterro», que vem quase concluir a colectânea Sinais de Oeste, sendo, como é, o penúltimo dos seus poemas: «Última Vontade» (Laranjas: 208-209). Poema tecido de sentimentos exílicos é, na sua riqueza intertextual, não excluindo a homo-autoral, também uma homenagem aos dois maiores poetas açorianos de sempre. Antero de Quental e Vitorino Nemésio. De Antero, «Última Vontade» ecoa o soneto «Sepultura romântica», sobretudo o seu último terceto: “Com suas lutas, seu cansado anseio, / Seu louco amor, dissolva-se no seio / Desse infecundo, desse amargo mar!” (Antologia: 153), soneto esse que, sem surpresa, Pedro da Silveira inclui na sua Antologia de Poesia Açoriana. Ecos, também, do «Desabafo», de Nemésio – “Terei vestido e pão no mar e nos seus fundos / E nos peixes de cor as flâmulas de guerra” (Antologia: 250). Para além destes ecos de exilados, cada qual a seu modo, da pátria açoriana, o poema «Última Vontade» reporta-se, completando-os, a outros poemas do Autor, nomeadamente ao poema «Ritos», de que seria uma continuação-conclusão, como seria ainda, sem deixar de ser todas essas outras coisas, como que a súmula do itinerário humano, poético e exílico silveiriano – até porque, na poesia em epígrafe, que dir-se-ia viver do exílio de que é sósia, itinerário poético e exílico são quase uma e a mesma coisa. «Última Vontade» é, pois, a expressão do desejo de regresso definitivo à pátria definitiva que, para este poeta que se definiu como “Ilhéu / da casca até ao cerne” («Soneto da Identidade», Poemas Ausentes: 14), não poderia deixar de ser o mar, que o sujeito poético associa com a infância (“Trago do berço esta canção de embalo, / e já nem distingo se é do mar”); com a figura materna que, no poema «Ritos», o próprio sujeito poético assumiu nos vazios do exílio, e das figuras paternas que, neste arrecadar de memórias da família, integram o drama diaspórico de que o sujeito poético é o continuador (“Mar! [...] canta e adormece-me, / conta-me histórias de meu avô baleeiro, / quando uma barca o levou, ainda menino, / até um porto da outra margem do Mundo”. «Última Vontade» é ainda, para além dum repositório de memórias exílicas e um auto-retrato de exilado, uma expressão conseguida do anelo da arquetípica Ilha do Descanso.

 

Palavras-chave : emigração, migração, exílio, partida, chegada, regresso, viagem, exílio interno, exílio externo, poesia de temática corográfica, açorianidade.
Key-words : emigration, migration, exile, departure, arrival, re-entry, voyage, internal exile, external exile, poetry based on chorographic themes, ‘azoreanity’ .

 
Francisco Cota Fagundes – Department of Spanish and Portuguese. University of Massachusetts Amherst. Amherst MA01003 U.S.A.