A série de poemas sobre a partida na poesia de Pedro da Silveira compreende dois textos inéditos, «Saudade» e «Cantar de Amigo», hoje incluídos na secção Primeira Voz, de Fui ao Mar Buscar Laranjas. «Saudade», cronologicamente o primeiro poema silveiriano de partida, é datado de Lisboa, 19-III-1944, portanto do local de acolhimento e “desterro” da poesia de Pedro da Silveira, mas 8 anos antes da sua fixação definitiva na capital portuguesa, o que vem a ocorrer em 1951. O segundo poema nessa série de inéditos é datado de Ponta Delgada, 8-III-1945, e é o número 4 da pequena série intitulada «Quatro dos Poemetos de Chá de Margaça» (sendo a parte italicizada deste título jocoso originalmente título de livro de Pedro da Silveira que não chegou a ser editado). «Saudade» (Primeira Voz, Laranjas: 25-26) é um poema de partida dada em retrospectiva e investida de certa sentimentalidade. O mobiliário regional aqui está: os garajaus, os seus pios (leitmotiven da açorianidade, esta e outras aves de nome açoriano, na poesia de Pedro da Silveira). Uma despedida no cais. Uma jovem de lenço a acenar. Cena um tanto romântica, melancólica. O vapor a largar o cais, a sensação da terra a fugir, como se alguém lha roubasse, em vez de ser o navio a ausentar-se. O navio é outro signo da temática, da díade temática ilha-mar, presente em muitos poemas do Autor. Algumas imagens deste poema – pois no todo estes poemas de partida constituem uma série temática imagisticamente integrada – repercutir-se-ão em outros textos subordinados ao temário da partida. «Cantar de Amigo» (Laranjas: 37-38): a partida, neste caso, projectada para o futuro. Glosas dos dois primeiros versos “Quando me eu for daqui / quem se lembrará de mim?” (Laranjas: 37). A cor local açorianizante está dada nos versos “os canários fritos / e o sumo da uva” (Laranjas: 38). O poema «Improviso Aéreo (A bordo de um ‘Dakota’, rumo à ilha de Santa Maria» (Sinais de Oeste, Laranjas: 123-124) foca uma partida, mas não uma partida (ostensivamente) para fora do arquipélago. Não há, portanto, sensação de drama de quem abandona a pátria açoriana. Este poema serve, portanto, para aferir a dramaticidade da partida para fora, em oposição a partida para dentro ou não para fora do arquipélago. A paisagem é das ilhas, identitária: as pedras do mar vistas do avião; os milharais; a forma dos cerrados; os incensos.
E chegamos a uma das séries mais significativas não só no que respeita à temática da partida, mas da expressão da açorianidade (1) na poesia de Pedro da Silveira: «Diário de Bordo» (Sinais de Oeste, Laranjas: 161-179) – uma série de 21 poemas, documentando a sua viagem, de Março a Abril de 1951, como consta da datação do poema, da ilha das Flores ao Continente português onde Pedro da Silveira ia estabelecer residência. É significativo, para a temática migratória (e seus paralelos, já apontados, com a experiência emigratória do povo açoriano) o facto de esta série poemática ser dedicada a dois amigos do Poeta, ambos açorianos e emigrantes: Alberto Machado da Rosa e Eduardo Vasconcelos Moniz, o primeiro ausente em Madison, Wisconsin, e o segundo, no Rio Grande do Sul, Brasil. A dedicatória leva a legenda, também significativa, “– companheiros ausentes / amigos sempre presentes na lembrança do que não pôde continuar a viagem”. A migração é, assim, dada como uma (involuntária?) impossibilidade de continuação de viagem que teria, supõe-se, descambado numa emigração, o que não obvia, claro está, a que essa migração seja encarada, poeticamente, como uma emigração. «Diário de Bordo» é formalmente dos documentos poéticos mais originais de Pedro da Silveira, mediando entre a regularidade métrica e a liberdade estrófica, passando pelo poema em prosa e pelo texto poemático em cena dramática dialogada, a dimensão conteudística deste poema-em-21-textos é a mais significativa representação, na poesia silveiriana, da componente da partida no total da experiência migratória na poesia do Autor. Mas constitui também um esboço de poética de alcance mais abrangente no que diz respeito ao compromisso, da parte do Poeta, para com a açorianidade, relevando-se desse compromisso a temática identitária, primeiro com a ilha de origem em relação às outras ilhas dos Açores e, em segundo lugar, com respeito aos Açores versus a metrópole. O poema-em-poemas que agora nos ocupa constitui um Diário que vai acompanhando as escalas do barco de ilha em ilha (todas as ilhas do Grupo Central, as duas do Grupo Oriental, depois seguindo para o arquipélago da Madeira, com escala na ilha da Madeira e em Porto Santo) e finalmente rumo à terra do destino e do desterro – a capital portuguesa. À medida que prossegue a viagem do navio ao longo dos vários canais e nos seus meandros de porto em porto, o poeta sobrepõem-lhe outras três viagens: a primeira viagem de reminiscências pessoais associadas com a sua estadia (Angra) ou passagem anterior por aquelas paragens (Faial, Pico, S. Jorge, Graciosa, São Miguel, Santa Maria). Só Angra se aproxima, em termos afectivos, da patria chica que, no entanto, ocupa, e continuará a ocupar no corpus poético silveiriano, um lugar único de singularidade afectiva. «(Angra revisitada)» reza, em parte:
De cada vez que volto
não volto: re-vivo,
tenho doze anos,
Maravilhado, recresço.
Angra:
foste a segunda pátria
onde botei raíz,
o meu primeiro
(adolescente)
País de Encantamento (Laranjas: 171).
A segunda viagem, dada contrapontisticamente com as outras duas, é a viagem de registos que vão salientando a singularidade histórica, étnica e literária do arquipélago açoriano (relativamente à Horta, os Dabney; a S. Jorge, “Nesta ilha, sobre a ponta extrema / onde o sol acorda, / habitou Willem van der Haaghe”, Laranjas: 169; em Ponta Delgada, S. Miguel, cumpre o poeta a obrigação de evocar “a âncora de pedra, / onde Antero se matou”, Laranjas: 172). De igual importância para o drama ensaiado neste poema-de-21-textos, e retomado em outros poemas ao longo do corpus inteiro, é a terceira viagem, uma viagem sentimental e identitária que representa este percurso entre a «Pedra da Vida» – nome poético-afectivo para a ilha das Flores (poema 1) –, a passagem pelas outras ilhas, incluindo a Madeira, e a chegada à terra do desterro. A este nível da viagem estão associados vários registos de patente açorianidade – com particular relevo para a violenta geologia, a acidentada topografia, o paisagismo deslumbrante de terra e mar, a flora e a fauna, a gastronomia, os regionalismos linguísticos que, mais tarde, nos textos 20 e 21 do Diário, são brutalmente contrastados com uma imagética marcadamente disfórica, tendo sido estes mesmos textos 20 e 21 antecipados por duas experiências particularmente negativas para o sujeito poético: o protesto gastronómico, do texto 15 do mesmo nome, em que se contrasta os açorianos “‘lapas d’afonço’ / vinho de cheiro / e pão de milho” (Laranjas: 173) com “esta comida à francesa / e este pão que sabe a giz!” (Laranjas: 173), emblematizando-se, assim, mediante imagética gastronómica, a aproximação da terra do desterro. A segunda experiência negativa e antecipatória da imagética disfórica dos textos 20 e 21 é o diálogo (texto 19) entre duas turistas continentais regressadas das ilhas que emitem opiniões esteriotipadamente metropolitanas em relação aos açorianos que o sujeito poético, outrando-se na figura do “Passageiro Insulano”, uma das personagens do diálogo mas que só intervém perante o leitor, escuta sem ser notado e às quais faz comentários que patenteiam, em palavras e desejos de violência, toda a sua mágoa e fúria de ilhéu atingido no seu orgulho e integridade identitária. O poema 20 é uma aproximação de terra (o Continente), disforizado em assinaláveis contrastes (o “azul” do mar dos Açores com a “cor-de-cinza” que se aproxima; os “garajaus” e “passaroucos” dos Açores versus “as aves” que, conquanto sejam “bons sinais / de terra perto”, surgem, significativamente, apenas com nome genérico: cf. as aves de nome particularizado do texto 7, em pleno mar dos Açores: “Garajau? / Passarouco? / – Sabe nadar.” [Laranjas: 169]). Eis o texto 20, penúltimo da série, intitulado «(Último amanhecer no mar)» (Laranjas: 179), que reza assim:
É cor-de-cinza o céu.
Triste Abril português
Mascarado de inverno
No oceano verdoso.
Aves, oh bons sinais
De terra perto,
Desenhai-vos no vento!
Tudo se veste
de ausência.
O último poema do Diário, o número 21, não deixa qualquer lugar a dúvidas de que o sujeito poético se aproxima da terra do desterro: na imagética contrastante da cor do mar dos Açores e Continente (o azul vs. o verde); o barro que, na ilha de Santa Maria, se aproximara da sacralização (“Era de barro e cal a tua história / e inviolada, virgem, te guardava / o mar nas suas águas sem memória” [texto 14, Laranjas: 173]), agora, no poema 21, metaforiza um país e um destino (o dos Descobrimentos) a que o sujeito poético parece permanecer friamente indiferente; e, finalmente, a imagem dum lenço a acenar no cais e que, ao contrário da sua contrapartida, no poema «Saudade», anteriormente comentado, agora metaforiza um cais afectivamente vazio: o cais da chegada do (e)migrante que partiu só e chega só – o cais da solidão. Eis o texto 21, intitulado «(Duas da tarde: Lisboa à vista)», com que se conclui «Diário de Bordo»:
Primeiro, a água era azul:
puro espelho celeste.
Depois, tornou-se verde:
Opaco verde de desgosto.
Agora é barro dissolvido:
Terra
de Portugal que o Tejo incita
a descobrir as Índias
e Américas ainda
por encanto encobertas.
– De quem o lenço que acena,
acolá,
do cais? (Laranjas: 179).
Dessa chegada disfórica à metrópole do desterro, o Poeta ilhéu guarda a promessa a si mesmo – que a sua poesia vai cumprir e que fora expressa no texto 1 do Diário: uma promessa de “regresso a tempo certo” e de identitária fidelidade – fidelidade essa que, no degredo, constituirá, em parte, o combustível do drama a viver:
Abandono-te, Pedra!
E no entanto é aqui,
com nuvens sobre os ombros
e encovado no vento
e nas vagas do cerco;
é aqui,
aqui somente que os meus pés
sabem que assentam e caminham
na terra do seu molde.
(O resto, amor
ou desamor,
é passagem.) (Laranjas: 163).
Outra evocação de uma das partidas da terra do exílio insular e de uma das chegadas à terra do exílio extra-insular, o poema «Memento», de Sinais de Oeste, constitui uma ars poetica, a (re)encenação de um dos momentos mais dramáticos da poesia de Pedro da Silveira: a partida da ilha que fora de exílio e que doravante constituirá a terra prometida; e a chegada à terra que será de exílio porque a outra, a deixada/prometida, simplesmente passará a existir como objecto de desejo. Entre esses dois extremos – a perda e a resultante busca da ilha perdida, por um lado, e a alienação da condição presente na terra do desterro – se move, tematicamente, grande parte do corpus poético de Pedro da Silveira, facto de que este poema é a autoconsciente confirmação. Ao evocar a ilha, o sujeito poético nem deixa de subtilmente acusar a presença de Roberto de Mesquita, no adjectivo cativos, e na também mesquitiana imagética da prisão, a que mais adiante regressaremos:
A ilha, no fundo, como pedra limosa
para os peixes cativos num aquário.
(Laranjas: 189).
Numa evocação de repetidas travessias, das quais o poema 1 de «Diário de Bordo» seria o exemplo máximo, o poeta regista novamente a chegada à terra do desterro, recorrendo à imagética topográfica e paisagística para sublinhar a sua alienação. É curioso também – e significativo – que uma das imagens a que recorre Pedro da Silveira seja, precisamente, a imagem identitária do desenraizamento, imagem essa que, com base no célebre livro de Oscar Handlin, The Uprooted (1951), foi das metáforas mais usadas na América, durante décadas, para metaforizar a experiência e condição do imigrante:
Lento cortando o mar um paquete me trouxe
como sem vontade de afastar-se.
No estuário de um rio, deixando-me, plantou-me.
Mas a terra, estranho-a: é seca,
Não enseiva (são d’outra!) estas minhas raízes.
(Laranjas: 190).
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