Procurar imagens
     
Procurar textos
 

 

 

 

 

 

 

 

BOLETIM DO NCH
Nº 15, 2006
Dedicado a Pedro da Silveira

Francisco Cota Fagundes:
Da migração e do exílio na poesia de Pedro da Silveira
Fagundes, F. C. (2006), Da migração e do exílio na poesia de Pedro da Silveira. Boletim do Núcleo Cultural da Horta , 15: 77-104.
Fagundes, F. C. (2006), On migration and exile in the poetry of Pedro da Silveira. Boletim do Núcleo Cultural da Horta , 15: 77-104.
 

INDEX

Sumário

Summary

Introdução

A partida

O retorno

Exílio insular e extra-insular

Considerações finais

Bibliografia

Exílio insular e extra-insular

Seria ocioso discorrer sobre os conhecidos poemas do grande simbolista açoriano Roberto de Mesquita reportados ao exílio interno, em oposição ao exílio externo, condicionado este por uma ausência do arquipélago materno que, um dia, talvez seja experimentado por essas “almas [que vão] para o exílio” do soneto «Tarde Enferma»:

Vão almas para o exílio, e lenços a acenar

Neste ocaso outonal, doente a langoroso

(Mesquita , 1973: 34).

O exílio mesquitiano reveste, com muitas e subtis variações de permeio, dois tipos principais: por um lado, uma sensação de exilado (como a que enforma o soneto «Ancestral»; Almas Cativas e Poemas Dispersos: 73) camoneanamente neoplatonizante (“Pobre exilado que jamais hás-de voltar / À adorada Sião da tua extinta idade!”). Mais frequentemente na sua poesia, porém, deparamo-nos com uma sensação de mal-estar e irrequietos desejos evasionistas que, conquanto pudéssemos atribuir-lhes, a eles também, causas indefinidas trespassadas de sentimentos metafísicos e até cristãos, estão, a nível metafórico relacionados com a insularidade (magistralmente estudada por Nemésio) e o clima tristonho, com particular relevo para as paisagens outonais e invernais. O soneto «Às Grades da Prisão» (Almas Cativas e Poemas Dispersos: 117) representa uma modalidade desse desejo de evasão. Traduzido para poesia social e aliada à experiência dum enorme sector da população das Ilhas, esse evasionismo vai transformar-se, em A Ilha e o Mundo de Pedro da Silveira, no célebre “barco na distância: / olhos de fome a adivinhar-lhe à proa / Califórnias perdidas de abundância” (Laranjas: 53). A Pedro da Silveira, avesso a metafísicas, nada lhe interessa o exílio neoplatonizante. Não assim o exílio que provém do isolamento ilhéu. É este o tipo de exílio que Silveira evoca, por exemplo, neste excerto do poema «À memória de Roberto de Mesquita», de Sinais de Oeste:

Era uma tarde aguada

e parda de Dezembro;

uma tarde que tu,

se comigo a habitasses

certamente cantavas

trespassada de exílio . (Laranjas: 127).

No poema «Nocturno», também de Sinais de Oeste, a sensação de exílio – sentido pelo próprio poeta mas extensivo à colectividade dos habitantes da ilha – ganha fortes ressaibos de protesto social. O poema, sem data, reporta-se, em parte, a uma guerra que chega ao sujeito poético em notícias da rádio. O contraste entre a guerra do mundo dos vivos, com a paz podre do mundo ilhéu dos mortos (por implicação), constituiu um dos grandes achados da poesia social de Pedro da Silveira e marca, relativamente à poesia de exílio interno de Roberto de Mesquita, da qual se aproxima e se distancia, ou melhor, da qual se aproxima para se distanciar, toda a distância ideológico-temática que se esperaria ver surgir entre um poeta de filiação simbolista e um poeta de orientação neo-realista:

As ruas são

iluminadas a lua

e pontas de cigarros.

 

Das casas,

com janelas cegas,

escorrem silêncios de cal.

 

Na praça, de pasmo

as vozes apagam-se

na copa dos plátanos.

Audível, somente

a fala metálica,

fria,

da rádio contando

notícias de mortes

nas guerras

(distantes)

do mundo dos vivos. (Laranjas: 129).

Esse mesmo, ou semelhante, pasmo – “como passos de repente sustidos, / do silêncio suspenso” (Laranjas: 131), duas poderosas imagens no contexto duma época castrante de liberdades para o país –, converte o próprio desejo de evasão, que se esperaria surgir duma imobilizante teia de sentimentos que o poema evoca, numa vaga, indecisa e inactiva espera: “Noite? Amanhã? Amor?… / Espero” (Laranjas: 131).

Verifique-se que os vários poemas de Pedro da Silveira enquadráveis na série do que aqui denominamos exílio insular constituem uma extensa metáfora para a expressão subtil dum desespero repassado de implicações discretamente protestárias que, no entanto, permanecem aquém da denúnica panfletária. Por isso mesmo, perpassa este exílio insular silveiriano uma maior amargura do que enforma a sua poesia de exílio externo, ao contrário do que poderia parecer ou esperar-se. Para o exílio externo, como veremos, há uma saída – que é a própria esperança, a concretizar ou não, no regresso à ilha idealizada, na procura da ilha, no contraste entre a ilha e o hic et nunc em que o sujeito poético está imerso. Da prisão que a poesia silveiriana de exílio insular tece não há escape, a não ser a fuga para outra ilha em frente, que nada remedeia, pois nela as mesmas sensações de impossibilidade de escape se repetiriam. É o que se pressente no poema «Outonal (II)», de paisagem bucólica enganadoramente utópica, pois “os muros floridos” por entre os quais caminha, não deixam de ser, apesar de floridos, muros. Que evasão, para onde?

… Outra ilha, ao longe,

azul e névoa.

Vaga saudade

o desejá-la:

a vela que a demanda.

O próprio poeta parece reconfirmar, no poema «Moto-Contínuo», que imediatamente se segue a «Outonal (II)», o que acabamos de afirmar relativamente à por vezes (auto)enganadora exaltação paisagística:

A cada hora invento a cor e o hábito

de ignoradas paisagens.

 

A cada hora, inquieto, me interrogo:

o que terei depois?

 

E cada hora sempre me reduz

à certeza do havido. (Laranjas: 134).

O exílio extra-insular na poesia de Pedro da Silveira, isto é, aquele que é vivido na terra do desterro, continua a ser, de certo modo, insular, pois prende-se à ausência e à busca incessante da ilha que, por isso mesmo, se torna tão (ou mais) presente na ausência do que jamais fora na presença. É disso um dos exemplos máximos o soneto intitulado «Soneto sem Horizonte», o poema número dois da secção «Passos da Cruz», de Sinais de Oeste (Laranjas: 191). Trata-se dum poema – datado de Lisboa, 30-IV-1956 – em que estão dramatizados a temática exílico-identitária duma complexidade invulgar na poesia silveiriana, pois nela se sobrepõem um exílio duplo: o de um lugar e o de um tempo – “a tarde macilenta” e o “horizonte perdido em milhas de água”. Este soneto também constitui uma reflexão da parte do sujeito poético acerca da consciência dos limites do próprio escopo temático que enforma a poesia silveiriana, a qual, como já se indicou, revolve em grande parte em torno à migração e exílio e seus momentos dramáticos, como a partida, a chegada e a busca da ilha. A primeira quadra do soneto não pode deixar de despertar no leitor reminiscências da

«Canção de Exílio» de Gonçalves Dias:

Chove na morna tarde macilenta…

e eu aqui, neste café da beira-rio,

a imaginar ganhoas e o seu pio

numa outra tarde assim, cinzenta, lenta…

Admita-se, à partida, que o paralelo entre o pio da ganhoa e o canto do sabiá do poema de Gonçalves Dias poderá, para o leitor (des)prevenido, produzir uma sensação de absurdo, dado, como toda a gente sabe, a “ganhoa” (ou “garça”, ou “passarouco”, dependendo da ilha) ser um dos vários nomes para “gaivota”. Num café de Lisboa, com saudades de pios de gaivota!? Essa primeira impressão, presumindo que possa dar-se nalgum leitor, tenderá, porém, a diluir-se frente a dois factores, um de carácter psicolinguístico, o outro de carácter literariamente identitário de longa e rica tradição. Psicolinguisticamente, quem negaria a riqueza de associações afectivas que podem ser despertadas pelo sintagma “ganhoas e o seu pio”, sobretudo quando essa imagem vem ligada a outra, a duma “tarde assim, cinzenta, lenta…”, precisamente definidora de sensações açorianas experienciadas in locu e repetidamente evocadas na poesia silveiriana de próximo parentesco com as horas “morosas como lesmas”, do «Spleen» de Roberto de Mesquita (Almas Cativas e Poemas Dispersos: 70)? Como é sabido, porém, o termo ganhoa, conotado com a açorianidade nemesiana, integra (juntamente com garajau por gaivina) a lista de açorianismos aplicada por Pedro da Silveira na sua poesia e defendida por ele no Prefácio à Antologia de Poesia Açoriana, contra o “ensino ‘unicitário’ que Lisboa impõe aos Açores” (S ilveira , 1977: 22).

Para este leitor, o soneto em epígrafe é ainda extremamente significativo pela afirmação – de longo alcance para uma avaliação da poesia silveiriana, sobretudo no que ao seu escopo temático diz respeito – feita no último terceto:

Ainda se fosse meu destino errar

De porto em porto – e só te relembrar

Como um desejo breve, ou breve mágoa...

Esta afirmação só cobra pleno sentido no contexto de um reconhecimento, da parte do Poeta, que a sua poesia tematicamente se move, obsessivamente, à volta da temática (e)migratória e exílica discutida neste ensaio e no ensaio que dediquei a A Ilha e o Mundo a que me referi anteriormente. O primeiro verso deste terceto lembra-nos o verso do célebre «Quase» de Mário de Sá-Carneiro, “Se ao menos eu permanecesse aquém...”, estando o “além” associado com a idealidade e o aquém com a realidade (cf. W oll , 1968). O desejo de errância na poesia de Pedro da Silveira está patente não só nos seus vários poemas de viagem ou de lugares – a alguns dos quais nos referiremos mais tarde e, como já indiquei, no próprio título dum dos seus livros, Corografias, mas está patente, ainda, na atracção do poeta pela obra e personalidade do vagamundo Blaise Cendrars que, em Sinais de Oeste, se torna uma presença assinalável. Não só lhe é reconhecida a presença mediante a epígrafe “... des hommes nouveaux en partant à l’aventure et en naviguant droit devant soi”, extraída do apropriadamente intitulado Bourlinguer, mas é-lhe dedicado um poema, no mesmo Sinais de Oeste, pessoanamente intitulado «Saudação a Blaise Cendrars», datado de Agosto de 1960. A sonhada aventura implícita nesse título – bourlinguer, como é sabido, significa “vagamundear, viver uma vida de aventuras” – permaneceu apenas um sonho na vida pessoal de Pedro da Silveira. Na sua vida literária, porém, terá sido em parte responsável, embora não seja fácil determinar até que ponto, pela sua poesia migratória, exílica e corográfica e quem sabe até pela obsessão que este poeta que nunca emigrou para um país estrangeiro, nunca foi perseguido politicamente e nunca fez mais do que umas quantas viagens ao estrangeiro tenha sentido uma atracção tão grande pelas temáticas em epígrafe.

Ocioso seria espraiarmo-nos na enumeração de poemas no corpus silveiriano dedicados, latu sensu, à busca da ilha fora da ilha. É um dos exemplos mais curiosos, dessa série de poemas de busca de ilha dispersos por Sinais de Oeste, Corografias e Poemas Ausentes, o poema «Vieram-me à lembrança umas velhas leituras... (fragmento recuperado)», de Sinais de Oeste, em que a ilha de Paulo e Virgínia, do romance de Bernardin de Saint-Pierre, emerge na memória do sujeito poético, mesclando-se com memórias (deixadas em manchas ao longo de muitos dos seus poemas...) da ilha das Flores:

Verde era a ilha, e sossegadamente

a vida nela demorava.

Novas da Europa, longe a longe

Vinham ronceiras pelo mar.

Um paraíso de melancolia

a ilha de França no Mar Índico!

(Laranjas: 112; o itálico é do Poeta).

Datado de 1985 e integrado no volume Corografias, o poema «A Vitorino Nemésio», parente de «Vieram-me à lembrança...», porquanto derive de memórias de leituras, supera de longe, como realização poética e pela importância palimpséstica que tem a obra de Nemésio no corpus silveiriano, o poema evocativo de Bernardin de Saint-Pierre. Eco também de Jorge Barbosa, o poema titularmente dedicado a Nemésio condensa, nos três versos a citar, a contrapartida poética da afirmação proferida por Pedro da Silveira, como crítico e antólogo: “a poesia de Nemésio sempre foi, não só bem entendível, mas ainda a ‘revelação’: a pátria insulana reencontrada em canto” (Antologia de Poesia Açoriana: 242). Homenageando embora a açorianidade na obra de Nemésio, os três versos que comprazem a primeira estrofe de «A Vitorino Nemésio» constituem também uma das afirmações poéticas mais notáveis do drama exílico da poesia silveiriana:

Olho para dentro dos teus poemas

E neles descubro as ilhas

De onde viemos, ficando lá.

(Laranjas: 15).

No que respeita à busca da ilha em espaços geográficos, em oposição a literários, como nos últimos dois poemas discutidos acima, temos o soneto «Alentejo, 15 Anos Depois», em que o Poeta recorre a uma das suas preferidas imagens contrastivas – o verde do mar do Continente vs. o azul do mar dos Açores – para tornar presente a ausência, na charneca alentejana, das suas ilhas:

Era um tédio de verde aquele verde

De rastos na charneca desolada...

[...]

(Minhas ilhas distantes – chão de lava,

húmido verde, e à roda o azul da água...)

(Laranjas: 196).

Tanta importância confere o Poeta à imagética dessas cores que a converte numa das epifanias resultantes do encontro momentâneo da ilha no Continente, ocasionado pelo avistar dum navio. O poema, datado de Ericeira, 24-VIII-1960, intitula-se precisamente «Reencontro da Cor». A sua primeira estrofe, num eco audível da «Ode Marítima», reza:

Até que enfim! Azul o vejo: azul, não verde,

Um mar azul até lá longe se ganhar mais longe.

E um navio – um navio verdadeiro, não sonhado –

atravessando (oh firmeza metálica!)

a estrada azul do seu destino mercantil.

(Laranjas: 203).

É um dos exemplos máximos, para este leitor, da busca da ilha no estrangeiro o poema «Fernando de Noronha», de Corografias (S ilveira , 1985: 61) – em que a presença da ilha desse nome nem é percebida, mas tão-só pressentida, transferindo-se, assim, para um plano da realidade entre exterior e interior do exilado da ilha que, subtraída à perceptual concretude geográfica, não deixa, apesar disso, de surgir na consciência poética em toda a sua iluminada nitidez configuracional:

Voávamos por cima do mar

e mais e mais para nordeste.

E foi então que uma luz

tremeluzindo te inventou:

 

ilha na noite redonda

e mar à volta advinhado. (Laranjas: 61).

Constituem outros exemplos dessa busca da ilha no estrangeiro a série intitulada «Ilhas Avistadas», de Poemas Ausentes (S ilveira , 1999: 30-35) – um corso turístico-poético que compreende seis poemas, sendo os primeiros quatro de particular interesse. O primeiro é «Outra Vez Porto Santo», datado de IX-1963 e «Aeroporto de Tenerife» –

Alturas de Tenerife

ainda há pouco avistadas,

cinzento, roxo, castanho...

Agora só tenho, azul,

o mar franzido, lá em baixo.

Notar o azul, já nosso conhecido como qualificativo predilecto para o mar das ilhas maternas do Poeta. O terceiro poema da série de «Ilhas Avistadas» é «Lantau», datado de 8-X-1979 – de que salientaremos dois pormenores: a proeminência dada, em primeiro lugar, à inevitável comparação com uma ilha açoriana e, em segundo lugar, a associação com a passagem de Portugueses por aquelas paragens:

Alta, longa de passar, fez-me lembrar S. Jorge.

Mas muito menos verde e sem ribeiras descendo-a.

 

Desta ilha, aonde não fui

(nem a Lamma ou Peng Chau),

O pouco que conheço, fora vê-la, ferozmente bela,

É ter lido que estiveram lá, mas poucos anos,

Os Portugueses quando chegaram a Macau.

(Poemas Ausentes: 32).

O quarto poema da série, «Amanhecer em Loma Alta», datado de Santa Bárbara (Califórnia) e Londres, 26/31-X-1985, proporciona ao sujeito poético a oportunidade de reflectir sobre acontecimentos históricos – como a sua possível descoberta por Cabrilho, a actividade religiosa de Frei Junípero Serra perante os índios. É, porém, a comparação com os Açores que se impõe, desta vez revestida e investida afectivamente de evocações de familiares emigrantes:

Há uma ilha ao longe, que não sei

Se é Santa Cruz ou Santa Rosa.

Meu pai falava era de Santa Catalina,

Aonde foi uma vez, e dizia que dava

Melancias tão boas que só no Corvo.

(Poemas Ausentes: 33).

É de notar ainda que esta série de poemas sobre ilhas leva a seguinte dedicatória: “À memória de Jorge de Sena, açoriano de Lisboa, que também emigrou e jaz à vista de ilhas, na Califórnia” (Poemas Ausentes: 30). A dedicatória reveste-se de especial importância, considerando não só as raízes açorianas de Sena, como o próprio autor de Sinais de Oeste aponta, mas a sua condição de exilado cuja poesia ficou marcada pela presença, ao longe, destas mesmas ilhas do canal de Santa Bárbara e que, sobre a praia donde elas se avistam, colheu inspiração para um das sequências poéticas de exílio e de amor mais importantes da literatura portuguesa do século XX. Refiro-me, claro está, a Sobre Esta Praia – Oito Meditações à Beira do Pacífico.

 

Palavras-chave : emigração, migração, exílio, partida, chegada, regresso, viagem, exílio interno, exílio externo, poesia de temática corográfica, açorianidade.
Key-words : emigration, migration, exile, departure, arrival, re-entry, voyage, internal exile, external exile, poetry based on chorographic themes, ‘azoreanity’ .

 
Francisco Cota Fagundes – Department of Spanish and Portuguese. University of Massachusetts Amherst. Amherst MA01003 U.S.A.