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******************************Eugénia Vasques

“Um Caso de Teatro Político:
O «Teatro de Ambiente» de O Bando

INDEX
Acção e Evolução de um «Teatro de Ambiente»
Do Uso da Estranheza no «Teatro de Ambiente»
O Método « Personagem Intermédia»
Um Encontro na Natureza
Bibliografia
Do Uso da Estranheza no «Teatro de Ambiente»

O Bando identifica-se no teatro português por um teatro de autor que exibe os objectos de cena mais «estranhos» e por uma linguagem da distorção que alcandora ao pódio teatral as situações mais íntimas ou as figuras mais pungentes e excluídas. Os seus espectáculos «comunitários», as suas representações mostrativas ou mesmo as representacionais (todas aspirando à estruturalista convicção de arquétipos universais) obrigam à interrogação, suscitam emoções imediatas, oferecendo, pelo caminho, muitas imagens de morte (1) – pois não nos podemos ignorar que, na bolsa pulsional de O Bando, reside Thanatos, um dos deuses que preside às pulsões de criação mais subterrâneas desta Companhia que, desde cedo, elegeu o amor-vida e a morte como seus dois temas aglutinadores e a base da sua dialéctica formal --, o que gera, não raras vezes, na recepção, um sentimento próximo da perplexidade.

O teatro de O Bando, já estabelecido pela crítica (Jorge Listopad em primeiro lugar) como um “teatro semiológico”, desenvolveu, entre nós, e fixou, uma noção ampla de cenografia abrangendo, de um modo muito particular e criativo, os conceitos de «arte de rua», «espaço», «enquadramento» e «envolvimento», itinerância do espectador, ainda quando opera na caixa normativa do teatro “à italiana”. Trata-se de um dos mais relevantes traços distintivos da linguagem da Companhia passível de ser classificada como um dos casos sui-generis de «teatro de ambiente» (artisticamente próximo das demandas geracionais da «earth art» e da «lanscape art» de artistas plásticos como Christo, De Vries, Provos, etc.) no território das artes performativas em Portugal (2).

A sua linguagem identificadora assenta, então, em figuras da distorção e num pronunciado grotesco que não é já só o veículo de derrisão ideológica – como o foi para as várias vanguardas do século XX ou para o Meyerhold bolchevique no auge da Revolução de Outubro cujos espectáculos punham em cena grotescas figuras da burguesia em oposição à “naturalidade” das personagens positivas – mas, ainda que faça sorrir ou até rir, é uma das dimensões estéticas reconhecíveis da linguagem plástica, cenoplástica, do pintor e escultor João Brites que, assim, sublinha quanto os corpos das figuras não são o suporte de identidades estáveis mas máscaras ficcionais que não se confundem com os actores-histriões, entidades que se tornam (ou parecem tornar), pessoalmente, “transparentes” no acto de assumpção física das máscaras.

Estamos perante mais um mecanismo de disrupção da ilusão cénica, como o VerfremdungsEffekt (3) que Brecht universalizou com base em propostas de Meyerhold (ostranenie) e do teatro oriental, mas é, igualmente, ainda que em sentido oposto, um mecanismo integrador dos actores e das audiências, como o encenador e ensaísta brasileiro Renato Cohen advoga, pois que também o espectador de O Bando é convidado para uma experiência de consciencialização crítica e de adesão a uma linguagem que exige disponibilidade e quebra das barreiras que constituem o seu horizonte de expectativas, feito de experiência estética e gosto individuais.

A actualização desta linguagem de narrativa não-linear, no que diz respeito, justamente, à criação dos actores (não “intérpretes”) cujo soma é treinado intensivamente para a disponibilidade (4), é assumida diferenciadamente (segundo não propriamente as «personalidades» mas segundo as formações, as posturas, etc.), pelos actores nucleares e pelos actores mais jovens – ou mais velhos -- que vão chegando à Companhia e que desenvolvem respostas ideossincráticas dentro desta linguagem que procura a comunicação não imitativa e a elaboração simbólica sem preocupações com verosimilhanças de primeiro grau (5).

Mas, ao invés daquilo a que procederam alguns dramaturgos do segundo pós-guerra (Beckett, Arrabal, Ionesco, Adamov, etc.) que promoveram o mimodrama, género eminentemente didascálico e gestual, sem palavras ditas, em que as «personagens» são os gestos que executam, as personagens grotescas de O Bando são entidades super figurativas munidas de intensa prolixidade.

O tratamento a que João Brites sujeita os textos autorais, regra geral retirados do património literário mais relevante e, em anos mais recentes, utilizando inclusivamente várias línguas em diálogo cénico – estratégia decorrente da prática de apresentação dos espectáculos da Companhia em palcos estrangeiros --,assenta numa dramaturgia visual que utiliza modalidades da cinemática montagem, técnicas estas apoiadas por processos de criação de actor baseados em intensos processos de improvisação dirigida, muitas vezes com o recurso ao retiro dos actores (“estágios”) para “imersão” em situações, físicas e psíquicas, de grande desconforto e isolamento, favorecendo uma maior concentração na criação e uma maior disponibilidade psico-somática. Estes processos redundam numa lógica de desmultiplicação, vertiginosa, dos planos da acção, tornando excessivas e estranhas as figuras e as narrativas – muitas vezes dissonantes, discordantes e, recentemente também, linguisticamente não compreensíveis (para “nós”) -- que figuras ambíguas enunciam segundo técnicas de narrar que exploram, inclusivamente, pontos de vista antagónicos entre si.

Este é um dos modos que tem a Companhia de lidar, antropologicamente falando, com «mitos fundadores», portugueses e/ou estrangeiros, com as construções mitológicas sobre as quais assentam as culturas e os costumes impressos nas falas e nos corpos dos actores em diálogo e é até, em última instância, um modo de “assegurar”, pela qualidade poética do texto de partida, a qualidade imponderável do «texto» cénico de chegada.

O processo de co-criação teatral partilhado por diferentes artistas de disciplinas consideradas estruturantes da ideia de teatro defendida por O Bando é, por sua vez, mais um gerador da desejada estranheza. Para isso contribuem as técnicas de dissonância, assimetria e oposição ou contraste (a que João Brites chama “exercícios disléxicos”), base do trabalho dos cantores, que orientam a exploração vocal e dos bailarinos e coreógrafos, que se ocupam da fisicalidade – os planos da «expressão plural» do teatro (oralidade e corporalidade), que não integra, segundo a teorização de João Brites, o terceiro plano, o «plano da interioridade», veiculado sobremaneira pelo olhar e pela máscara facial -- e, para além de outros especialistas, os músicos e compositores com um papel progressivamente mais relevante nos trabalhos laboratoriais da Companhia.

 

(1) O que transforma e dá sentido ao convívio com as mortes (de Jaqueline Brites, de Maruga e seu bebé, de Jorge Barbosa, de Natércia Campos) que temos vivido a par com a Companhia.

(2) Este modo próprio de criar fez (indirecta) escola (veja-se o Teatro da Garagem, o ACERT de Tondela, Patrícia Portela, O Teatro do Vestido ou, mais recentemente, Bruno Bravo).

(3) Cf. Cohen, p. 71. Este modo próprio de criar fez (indirecta) escola (veja-se o Teatro da Garagem, o ACERT de Tondela, Patrícia Portela, O Teatro do Vestido ou, mais recentemente, Bruno Bravo), gerando, contudo, também, na recepção, um sentimento próximo da perplexidade.

(4) Sobre a questão central da vivência e presença do actor em cena, que, para João Brites, é a base do método de formação de actores (veja-se, mais à frente, a questão da «personagem intermédia», cf. Azevedo, pp. 178-182.

(5) Aliás, é exactamente através da “graduação” da verosimilhança – de 1 (naturalidade) a 10 (grotesco) -- que os alunos de João Brites aprendem a técnica de representar.

Eugénia Vasques é analista de Teatro e Professora Coordenadora na Escola Superior de Teatro e Cinema.