A senda artística percorrida por O Bando, nos trinta e dois anos da sua existência (15/10/1974-2006), é um caminho exemplar que suscita permanente indagação analítica em virtude da complexidade e mobilidade dos seus pressupostos.
Assumindo, desde os primeiros trabalhos, a responsabilidade da intervenção social directa e da descentralização, bem como o combate às formas teatrais de uma convenção burguesa (“modelos”) tornada obsoleta pelo avanço da História (fase da animação sócio-teatral para a infância e juventude), João Brites e O Bando estabeleceram, deste modo, as bases de uma filosofia que elege a acção (o acto, o que se vê) como o princípio-motor do acontecimento teatral.
As metodologias (possíveis) de uma criação artística partilhada (designada, durante muitos anos, «colectiva»), a abertura à discussão pública, a manutenção, em todas as circunstâncias da vida do grupo, de um enquadramento que apela os públicos para a partilha, a intimidade e a actividade solidária – um de entre os vários aspectos do seu projecto único de «teatro de ambiente» --, a publicação de textos de reflexão e a promoção de encontros para o confronto de ideias e para o balanço e o ponto-da-situação – esforço em direcção a uma prática analítica constante --, associam-se, organicamente, às plataformas de intercâmbio internacional de que a Companhia faz parte, numa defesa persistente, ainda que com contornos diferenciados, de um teatro concebido para intervir e modificar.
Depois da intensa experiência inicial de descentralização, fonte de trocas culturais e de ensinamentos e propiciadora da abertura de canais de comunicação entre o urbano e o rural, o popular e o erudito, o centro e a periferia, a criança e o adulto, a linguagem de O Bando afirmou-se, com características identificadoras próprias – muito diferentes, por exemplo, ainda que com pontos de partida (antropológicos) similares, das da Comuna, a principal Companhia-hospedeira da fase de afirmação do grupo (1974-1990) --, colocando-se na linha da etno-antroplogia, desbravada sistematicamente, a partir dos anos 60, por criadores internacionalistas como Grotowski, Brook, Barba, Schechner, Mnoushkine, por exemplo.
Mas, por força da experimentação visual – que inclui um permanente trabalho artístico sobre materiais naturais (da madeira à farinha) e artificiais (como destroços e outros objectos desperdiçados (1) pela sociedade de consumo) e passa pela fisicalização das acções cénicas e pelo confronto dos actores com as “máquinas de cena”-esculturas ou outros objectos cénicos de João Brites --, O Bando colocou-se, simultaneamente, na linha de uma estética que integra algum do abstraccionismo mais auto-reflexivo (Malévitch, Kandinsky, Mondrian, etc.), expressionismos e grotesco das convulsões sociais mas desemboca num sobre-realismo (desejadamente sem metafísica) orientado para o território comprometido do teatro político.
É neste sentido que afirmo que O Bando é também herdeiro, a seu modo, da metodologia daqueles criadores teatrais europeus que rompendo, programaticamente, com um teatro eurocentrado, demandaram o Oriente como horizonte eufórico de uma crença, utópica, na possibilidade de uma refundação do fazer teatral. Como bem sintetiza Valentina Valentini, falando de Grotowski, Brook e Barba, “[c]onhecer outras culturas tornava-se essencial para renovar o próprio reportório de técnicas, para fazer o corpo assumir outras posições, deixar-se influenciar por outros gestos. . . , religa[ndo] o trabalho do actor ao seu ambiente, porque aquilo a que chamamos a técnica do actor não é outra coisa, como disse Barba, senão o modo de utilizar o seu próprio corpo, não só no teatro mas também na vida quotidiana. Por detrás do que se faz em cena e fora de cena [a esfera extra-artística] existe uma interdependência que andava encoberta e fechada.”(2).
Só que, para a Companhia portuguesa, durante muitos anos sem espaço de trabalho próprio, a demanda não se fez para o Oriente geográfico (ainda que a Companhia tenha viajado muito) mas para o fora-do-centro e para os “indígenas” não alfabetizados do nosso “país profundo”. A fase histórica pós-25 de Abril mostrou, escancarando misérias, a necessidade de um urgente contacto com as regiões mais esquecidas de Portugal e a necessidade igualmente urgente da educação e formação aceleradas das populações (ainda não-públicos) e então, potenciando prévias experiências dos elementos nucleares da Companhia, foi com um teatro vocacionado para a infância e juventude que o agrupamento conquistou o seu território próprio na geografia teatral portuguesa.
A evolução sofrida, nos anos seguintes, pela linguagem da Companhia deu-se no sentido de uma amplificação de âmbito estético e sociológico que acompanhou o seu itinerário geográfico, a sua itinerância programática. Após muitas vicissitudes e projectos gorados e depois do relevante Evento Regular Diurno e de Peregrinação, no âmbito da Expo’98, e após um interregno de alguma serenidade no espaço central da “Estrela 60” (1991-1999), a concretização do sonho de uma sede veio a acontecer, finalmente, no ano de 1999, em Vilar de Barris, um lugar de características ainda rurais, nos arredores da cidade de Palmela.
Esta nova morada tem permitido desenvolver, sempre que as condições económicas o possibilitaram, experiências de larga escala, que dão continuidade a uma linha de prévias e memoráveis realizações como Montedemo ou Bichos, numa «instalação» na paisagem (Merlim) e, paralelamente, tem permitido multiplicar a criação de espectáculos de pequeno formato, mais intimistas (Madrugada; A Porca; Abrigo), uns e outros expandidos pela pluralidade dos espaços que constituem a paisagem circundante da casa-mãe da Companhia.
Da linguagem, aberta, de um teatro destinado, sem contemplações, às crianças e jovens, foi natural e orgânica a passagem para os objectivos abrangentes de um teatro comunitário, versão ideológica, politizada, do seu «teatro de ambiente» (e no ambiente, traço distintivo do ecológico que esta linguagem também incorpora) onde os actuantes não são os exportadores de uma cultura “estrangeira” mas tentam, sem romantismos anacrónicos, criar com, em situação de “imersão” no novo contexto dos participantes.
Este é mais um dos traços distintivos do «teatro de ambiente total», do «teatro de ambiente» -- alargando, agora, esteticamente, o conceito de environement que Jorge Listopad já tinha convocado relativamente (3) e à mata de Tondela onde estreou Montedemo (1987) – a que pertence, a título múltiplo, a Companhia de O Bando.
Pertence ao «teatro de ambiente» porque, desde logo, o tipo de trabalho criativo desenvolvido por O Bando – espectáculos, eventos, encontros, estágios – responde, nos seus vectores, às principais características definidas por Schechner como axiomas do environmental theatre: mistura arte com vida, convoca a natureza para a ficção (e vice-versa), usa focos dramáticos flexíveis e variáveis, não promove (rígidas) hierarquia de elementos cénicos e transforma espaços (urbanos e rurais) em lugares de uso comum a púbico e actores (4). Reforçando esta definição axiomática, é de assinalar que muitos dos espectáculos de O Bando, mais do que misturar contextos de arte e vida, como assinala Schchner (5), constrói, sempre que o deseja, no interior das suas ficções espectaculares trajectos e geografias poderosos (Nora; Viagem) segundo um imaginário ancorado num movimento itinerante que é base da construção ontológica e metáfora do vitalismo sobre o qual parece assentar o ideário da Companhia.
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