Armando Nascimento Rosa
NÓRIA E PROMETEU - PALAVRAS DO FOGO

(Mitodrama paródico em sete cenas)

INDEX

NOTA PREAMBULAR

PERSONAGENS E INTÉRPRETES

MÁSCARAS DE CENA

CENA I

CENA II

CENA III

CENA IV

CENA V

CENA VI

CENA VII

cena 4

Noite. A Águia dorme no chão em cima de uma esteira junto ao archote-prisão onde Prometeu está acorrentado, de olhos fixos no céu. O Guarda aparece com uma manta.

Guarda/Rapsodo : Trago-lhe um abafo pra se embrulhar. As noites neste promontório são frias como espadas. Não quero que o ladrão do fogo morra congelado. ( Ajuda-o a enrolar-se com a manta .)

Prometeu : Obrigado amigo! Ainda acordado a esta hora só por minha causa?

Guarda : Acaba de chegar uma jovem que deseja visitá-lo.

Prometeu: E tu sabes quem é ela?

Guarda : Eu não a conheço mas disse chamar-se Cassandra.

Prometeu : (Atónito .) Cassandra... Cassandra de Tróia, aqui, nas montanhas do Cáucaso em plena noite? Não será antes um fantasma que tu viste? O ar rarefeito das altitudes transtorna o juízo do mais sóbrio.

Guarda : Não é fantasma, não senhor. A mulher falou comigo. Eu acho mesmo que ela veio sozinha plo seu próprio pé. (Cassandra aparece neste momento, empunhando um archote aceso .)

Cassandra: É verdade, Prometeu. Eu vim sozinha. Quem poderia acompanhar-me nesta jornada a não ser um pedaço do fogo que nos deste, pra me alumiar nas veredas do precipício?

Prometeu : És corajosa, Cassandra! Fico feliz por ver-te, assim, nem louca nem morta, sem precisares de auxílio pra guiar-te nos atalhos da vida.

Cassandra : Agamémnon raptou-me como troféu de guerra e correram boatos de que eu morrera alienada. Os tablóides noticiaram o meu homícídio às mãos de Clitemnestra. Mas eu escapei quando ela sacou da faca com que abrira as carótidas do marido. Transtornada, vadiei sem tino até ser detida seminua em plena rua por um carro de patrulha, que me despejou num hospício público de Delfos. Todos me deram por morta. As pessoas encaram a loucura como uma forma de morte. Mas consegui regressar dessa floresta. Encontrei o fio pra sair do labirinto. Voltei a ser uma louca invulgar como tu, com o poder da profecia.

Prometeu : Eu já nada profetizo, Cassandra, mesmo olhando prós meus fígados à luz do meio-dia. Estou emocionado por ti, acredita. Até me esqueço das dores da minha carcaça. ( Olhando para a Águia .) Guarda! O que se passa com este bicho insaciável? Não costuma entrar em sono tão profundo.

Guarda : Esta mulher tem a resposta!

Cassandra : A Águia pedia a morte com vergonha de si mesma, mas o instinto não lhe permite o suicídio. Ouvi ao longe a sua súplica, no meu êxtase de mulher-xamã. Trouxe um remédio pra ela que te livrará da sua violência. Dei-lhe pastilhas de ópio pra que o animal perca a noção de quem é e do que faz. Paguei ao Guarda o preço do seu silêncio e ele continuará a ministrar-lhe dia e noite este veneno dispendioso. ( O Guarda, intrigado com a conversa, senta-se a folhear um dicionário .)

Prometeu : Que coisa horrível, Cassandra! Tornaste-te traficante de droga depois de teres saído do asilo de loucos!?

Cassandra : Não dramatizes, Prometeu. Não é de ânimo leve que droguei o teu carrasco. A conduta humana degrada-se por dinheiro e o estado de guerra em que sobrevivi ensinou-me demasiado sobre negócios escuros. Mas não sou mafiosa nem faço da destruição dos outros um biscate prás despesas pessoais. Comprei o ópio a um passador eslavo apenas por ti, porque Eros me inflamou no peito e no ventre este fogo que não consigo apagar.

Prometeu : Não te curaste, Cassandra. A paixão é uma forma de loucura.

Guarda : ( Fechando o dicionário .) Desculpem lá, mas nos dicionários de mitologia não existe a mais leve referência a uma ligação amorosa entre Prometeu e a sibila Cassandra. Prometeu é casado com Climene e tem um rebanho de filhos; ainda hoje à tarde eles cá estiveram, na companhia da mãe, a trazerem-lhe queijo grego e pãezinhos de passas. ( Ríspido, para ambos .) Eu não quero que vocês transformem este drama num folhetim barato sobre droga e adultério. É favor reprimirem a voz das hormonas e elevarem o discurso acima da cintura. Até porque a saúde de Prometeu não aconselha a grandes excitações e eu não quero que ele morra, senão volto outra vez a engrossar as estatísticas do desemprego na Europa. ( Sai de cena, zangado .)

Prometeu : E foi em favor de tipos assim que eu arrisquei tudo e arruinei a minha vida.

Cassandra : Os humanos são pra ti uma fonte de desencanto. Vejo que eu mesma não escapo a esse lote.

Prometeu : Não te culpes, Cassandra! São os deuses, mascarados de instintos, que nos conduzem às maiores misérias. Somos pra eles os fantoches do cosmos. Contemplam a nossa desgraça comendo pipocas, sentados numa caverna do Olimpo, como se as nossas vidas não passassem de uma fita pornográfica, exibida em sessões contínuas.

Cassandra : Falas como um simples mortal. Perdeste a fé nos falsos deuses da família que repudiaste, mas não percas a fé no fogo que há em ti. LIBERTA-TE DOS DEUSES VAMPIROS! MAS HÁ OUTRA TIRANIA TÃO NEFASTA COMO ELES: A TIRANIA DA DESCRENÇA. Não te enredes nela. Pra prisão, já basta a que tens.

Prometeu : Mas que loucura é essa capaz de pôr-te ainda uma crença no espírito?

Cassandra : Eu não presto culto aos deuses astronautas; vagabundos do espaço que um dia desembarcaram neste planeta e se puseram a fazer experiências com os nossos antepassados. É por isso que temos uma diferença tão pequena face aos outros primatas. Foram esses imortais que modificaram os nossos genes e nos puseram a falar, pra dizermos asneiras e compormos poemas. Mas eles não são deuses, são nossos rivais mais fortes na loucura cósmica da vida.

Prometeu : Que deuses são os teus, afinal, que resistem à morte de todos os outros?

Cassandra : Vim pla estrada de Elêusis. O caminho dos sábios, outrora palmilhado por Orfeu e Diotima. O palco com que o doido Artaud sonhava nas horas de lucidez. Lá descobri os mistérios de um deus da utopia; um deus que não exige sangue nem obediência néscia. Um deus interior que fala em nós no verbo e na dança, na beleza e no riso.

Prometeu : Guarda o teu deus, Cassandra! Não o reveles a ninguém! Se o anunciares na vastidão dos campos, se o profetizares no ruído das cidades, voltarão a internar-te como louca. E eu nada poderei fazer por ti, acorrentado a este rochedo, até que Zeus queira.

Cassandra : Não me importa correr riscos. Não posso é calar o fogo que me anima. Espalharei esta verdade mesmo que a tomem por mentira. Antes louca que muda. Seguirei o teu exemplo. Os corajosos são sempre insensatos. Adeus, Prometeu!

Prometeu : Obrigado, Cassandra! Salvaste-me da agressão da águia.

Cassandra : Mas não te salvei de ti próprio. E esse é o sonho de quem ama. Falhei contigo. ( Beija-o .) Adeus! ( Cassandra afasta-se de Prometeu e Nória vem ao encontro dela .)

Nória : Lembras-te de mim, amiga?

Cassandra : Podia lá esquecer-te. A iluminada do piso quatro. Eras a mais lúcida de todas nós. ( Abraçam-se .) O que fazes no teatro?

Nória : Deram-me alta do hospício. Não tinham cama pra mim. E eu já não deito fogo aos cortinados. Passou-me a mania. ( Riem-se .) Mandaram-me pra casa. Mas eu não tenho casa. Vim falar com Prometeu. Não foi ele o primeiro dos pirómanos?

Cassandra : Está ali preso. É protagonista. Eu estou apaixonada por ele, mas é um amor sem esperança. Trapalhadas pra cativar o público. Anda pró meu camarim! Vamos pôr a vida em dia. Eu indico-te a melhor altura pra entrares em cena.

Nória : Foi um anjo que te pôs neste palco. ( Saem em tagarelice inaudível .)