Prometeu na companhia da Águia que continua mergulhada no sono .
Prometeu : O Inverno... A imagem do gelo. O seu grito de morte fez-me roubar um pedaço de fogo da forja de Hefesto. Tribos nómadas tiritavam entre peles de corça, em grutas húmidas onde vive a salamandra. Roíam carne crua de coelho caçado há muitos dias. Era difícil distingui-los dos cães. As crianças gemiam com gargantas de fome. Enquanto isso, no palácio do Olimpo, servia-se ambrósia e néctar nos salões com ar condicionado e lareira fingida. E era um prazer aconchegante ver a neve cair lá fora através dos vidros duplos à prova de bala. O contraste entre deuses e humanos fez de mim o ladrão do fogo. Juntei-me a esses seres animalescos. Levei comida, ganhei-lhes confiança. Ensinei-os a fazer uma acendalha, a escolher a lenha melhor pra uma fogueira. Passaram a defender-se das feras. Descobriram a arte da cozinha. E ainda no Inverno, fiz outra revolução: a agricultura. Gaia é o nome da minha mãe, e Gaia é também o nome da Terra. Mostrei-lhes a semente que à terra é deitada com a imagem do macho que fecunda a fêmea no espasmo do sexo. Há virtudes secretas no Inverno. A terra molhada como vulva ansiosa é propícia a sementeiras e mais fácil de ser penetrada plas alfaias que eu trouxera do ferreiro coxo dos deuses. O Inverno é altura pra Gaia engravidar com a fava que resiste ao frio na infância. Tudo está ligado com tudo. O fogo e o cultivo da terra fundaram povoados. O chão dá sustento com trabalho duro. Inverno é sacrifício e espera.
Só depois da gelada travessia virá... a Primavera...
Águia : ( Despertando subitamente do seu torpor .) A mais feminina das estações. Quando Deméter, a deusa fértil, recebe de braços abertos a filha Perséfone, que passa seis meses do ano no Hades, por ter casado com o senhor dos mortos. A natureza está em festa. É a emoção de mãe e filha outra vez juntas por mais seis meses; Perséfone faz férias do marido e mata saudades da vida ao ar livre. A Primavera são as moças que bailam na relva com cabelos de flores. Ensaiam os passos prás festas em honra de Maia, a ninfa do fogo juvenil, conselheira de Vulcano, mãe de Mercúrio e que deu nome ao mês de Maio. Elas hão-de levar-lhe oferendas de espigas e papoilas, anunciando o renascer da terra. Pedirão à deusa um ano bom e que as searas agora verdejantes, do tremoço e do trigo, amadureçam doiradas nos meses por vir. ( Observando-as .) Elas acabaram o ensaio, mas não as vejo a caminho do casario. Se formos atrevidos, havemos de persegui-las até ao riacho, aquele! onde tu dás lições de pesca à truta.
Prometeu : Mas hoje a pesca é outra. Vamos espreitá-las a despir-se pró banho da tarde. Os risos de quem não suspeita haver mirones a espiá-las, mas como se ao mesmo tempo quisessem ter público que as visse no seu strip-tease fluvial. E enquanto dobram as calcinhas na sombra de uma acácia, estou a ouvi-las cantar uma modinha popular... (O Rapsodo surge em cena junto dele, com um conjunto de folhas escritas na mão. )
Rapsodo : Prometeu, eu não queria interromper-te, mas deixa-me dizer-te que o teu discurso da Primavera está uma completa piroseira, com este quadro das ninfas em ceroulas a lavarem-se no ribeiro. Só falta agora uma canção pimba pra rematar a moldura!
Prometeu : Mas eu estou a passar em revista as estações do ano, porque ensinei o cultivo da terra em todas elas.
Rapsodo : É um discurso antiquado! As estações do ano sofrem da doença do papa. O clima está decadente, anda com febres altas. Já não se sabe quando chove em excesso ou se espera o deserto. ( Refere-se gestualmente ao conteúdo dos papéis que traz na mãos .) O monólogo da Primavera caiu em desuso. É letra morta. Se pusesses, por exemplo, as miúdas a banharem-se e depois explicasses que as águas do riacho estavam muito límpidas porque provinham das lavagens do reservatório de uma central nuclear... e que não havia ali peixes nem rãs porque a temperatura era quentinha pró gozo das meninas, mas mortífera para a fauna local... Isso sim, valia a pena ouvir!
Prometeu : És um sádico.
Rapsodo : Imagina que as garotas chegavam ao ribeiro todas felizes da vida e, quando se fossem a despir, descobriam um esgoto ilegal de uma fábrica, a céu aberto, a vazar uma langonha sulfúrica pró leito das águas. Acabava-se logo o banho antes de começar. ( Ri-se .)
Prometeu : ( Visivelmente incomodado .) Que falta de sentido estético! Agora não consigo continuar o monólogo. Bloqueaste a minha força anímica.
Rapsodo : Falas sozinho há muito tempo. Mereces uma pausa ( Tira do bolso uma garrafinha de água .) e uma garrafa de água mineral, que não esteja sabotada com soda cáustica. ( Retira o selo da garrafa e dá-lha a beber à boca. Para a Águia, metendo-lhe algo no bico. ) E você, não está aqui a fazer nada. Engula a pastilha e vá ver as vistas do Cáucaso. São muito psicadélicas. ( A Águia aceita a sugestão com alívio e sai de cena .)
Prometeu : És mesmo do pior que há. Faz tu a apresentação do Verão!
Rapsodo : ( Radiante .) É pra já! Mas não te espantes com as evoluções da agronomia e da pecuária. Mudaram muito desde que tu deste o pré-escolar aos homens das cavernas.
( Sempre que ocorrer o verso seguinte, ele é cantado com a música do início do Summertime de George Gershwin .)
É Verão e os peixes andam aos saltos ...
São os peixes do viveiro. Isto não lhe ensinaste tu, Prometeu: a aquacultura. Estas trutas não se comparam com as que tu costumavas pescar no riacho das banhistas. Formato XXL, gordas e brilhantes. Cada truta de aviário faz duas ou três das selvagens. O mesmo acontece com os outros peixes do tanque: os salmões, os robalos, as douradas... E todos eles têm o mesmo sabor. Sabem à farinha de engorda com o promotor de crescimento, que os faz inchar como balões de gás em menos de nada. E então a tinta... o granulado que dão aos salmões, pra que fiquem da cor de salmão. Se os comermos, havemos de ficar pintados por dentro com aquela tinta. É uma cor bonita, que há-de agradar ao médico que nos fizer a autópsia. E uma coisa é certa: a farinha que alimenta estes peixes é feita de outros irmãos seus moídos que vivem no mar. Seja no mar, no rio ou no viveiro, os peixes são todos uns fanáticos do metal pesado.
É Verão e os peixes andam aos saltos...
( Com voz de sedução publicitária .) E pra uma dieta saudável, sirva o peixe com couve criada em adubo especial: lama de esgoto desidratada, vinda directamente da estação de tratamento. Tudo o que é ruim, enterra-se no jardim.
- Peixinho metálico e couve tóxica a nove vírgula nove nove euros, esta semana no comes e acabou-se.
Pla boca morre o peixe e acaba o Verão.
É Verão e os peixes andam aos saltos...
Prometeu : Chegou o Outono e cheguei eu. Vou abrir uma escola agrária pra corrigir a indústria alimentar. Hei-de ensinar aos humanos os segredos da agricultura biológica! Eu sou um semi-deus avisado, como indica o sentido do meu nome. Prometeu quer dizer previdente e por isso já tenho investidores para optimizar este projecto.
Rapsodo : Ora assim é que fala um herói! Eu quero ser aluno da tua escola. Só espero é que as propinas do curso não sejam tão caras como os produtos criados com caca integral. Mesmo assim, eu alinho. Tornei-me um jovem agricultor, financiado pra cultivar coisa nenhuma. Pagam-me pra isto. Querem evitar os excedentes agrícolas. Por isso tenho tempo de sobra pra me cultivar a mim. É uma maçada esvaziar os camiões de fruta pra dentro das lixeiras, só pra manter intacto o sagrado equilíbrio dos preços. Fico com uma vaga sensação cristã de culpa.
Prometeu : Vou iniciar o ano lectivo e aproveito pra recordar as coisas que ensinei noutras eras. Diz-me um exemplo de colheitas da época!
Rapsodo : Ora Prometeu, as vindimas. Quem não se lembra do vinho novo? E do fogo com que ele nos inflama!
Prometeu : ( Sem convicção .) Pois, o fogo do vinho. É verdade. As vindimas fazem-se no Outono, ou então no ano inteiro, dentro das estufas.
Rapsodo : Mas eu acertei, Prometeu, devias dar-me um reforço positivo, pra estimular o meu processo de aprendizagem.
(Aparece de rompante em cena uma personagem exótica muito especial, com um chapéu de cachos de uva, logo seguido de um conjunto de mulheres travestidas de fraque e bota alta: Dioniso e as Bacantes .)
Dioniso : Você errou redondamente, meu caro amigo e o titã Prometeu sabe isso melhor que ninguém. Ele pode ter dado muitos isqueiros aos mortais mas o fogo do vinho é da minha exclusiva autoria. Fui eu, Dioniso, que ensinei os humanos a plantarem a vinha e depois a pisarem-na no Outono ao cair da folha. Dei-lhes um bacelo bem robusto pra que eles o espetassem na terra como um falo misterioso em memória de mim, em cujo sangue circula a minha loucura sagrada.
Rapsodo : ( Desce a correr do lugar elevado em que se encontrava , aproximando-se do recém-chegado .) O deus Dioniso! Não posso acreditar. Eu sempre sonhei conhecê-lo pessoalmente. E estas moças suponho que sejam as bacantes! Dê-me um autógrafo. ( Dioniso mostra uma cara de desagrado .) Vá lá, eu sou um grande admirador seu. Até já representei o seu papel uma vez, naquela tragédia famosa que tem o nome das meninas. (Puxa de uma caneta e de um bloco-notas e Dioniso condescende a satisfazer o pedido . O Rapsodo rejubila .) Vou emoldurar esta folha.
Dioniso : Então se é assim, você tinha obrigação de saber que o inventor da vinha sou eu e mais ninguém. ( Entra Nória .)
Nória : Esse mascarado com cachos de uva na peruca está a mentir sem vergonha. O inventor da vinha é o meu marido Noé. Foi ele que ensinou as tribos de Israel a cultivarem a planta espirituosa. E depois acabou por fundar também a primeira associação dos alcoólicos anónimos.
Rapsodo : Só nos faltava agora um conflito de culturas.
Dioniso : ( Atónito .) Mas quem é esta personagem secundária?... Donde veio a senhora?
Nória : Venho da Ásia Menor. Sou uma avó de Moisés.
Dioniso : Ah, então está tudo explicado. O seu marido levou pra lá a planta que eu introduzi na Grécia.
Nória : Os gregos têm a mania que são primeiros em tudo. Mas o meu Noé é uma personagem histórica e você não passa de uma fábula. Portanto foi ele o primeiro bêbado.
Dioniso : Ó Prometeu, no teu teatro agora os figurantes também têm direito a falas?! Detesto estes costumes. Não fui educado em democracia. Vou-me embora com as bacantes. Não me apetece partilhar a cena com uma imigrante. Pra estrangeiro já basto eu. Venham, amigas! Este palco não nos merece. ( Sai com as acompanhantes. Prometeu ri-se da cena. )
Rapsodo : ( Para Nória ) A senhora aproveite agora que Prometeu está bem disposto. ( Sai .) |