Entra Heraclito. Seja qual for o estilo do seu traje, terá algo do descuido andrajoso de eremita.
Heraclito : Tinha de ser eu pra falar-vos do fogo. Do espírito do fogo. Eu, Heraclito, chamado de obscuro plos meus contemporâneos, por me exprimir com a linguagem dos enigmas. Adorado plos vindouros, desconhecido deles, por de mim terem chegado só fragmentos do que eu disse. Faúlhas de palavras, cinzas das ideias, rastilhos prá imaginação de muitos. Até o Brecht se meteu comigo naquele poema sobre as margens que comprimem o rio... E a história fez de mim o pai da dialéctica, imagem viva da fornalha do cérebro. Pensamos uma coisa e o seu contrário, e depois pensamos outra prás ultrapassar. E se a não encontramos, fica a cabeça a ferver, uma marmita ao lume. Melhor é tomar um ansiolítico... Eu no meu tempo mascava raiz de valeriana. É azeda e nauseabunda. Ficava com o hálito a cheirar a cadáver. Mas não tinha importância. Eu nunca fui filósofo da sociedade, armado em sedutor das almas no disfarce do corpo. Isso era bom pra gente diferente de mim: pró Platão, esse mundano, conviva de banquetes nas casas nobres de Atenas... pró Aristóteles, um calculista, sob os favores confortáveis da corte macedónica... pró Sócrates, maltrapilho, que se dava com toda a gente dessa cidade que o mandaria matar depois de velho... Eu nasci muito tempo antes deles e detestava beberetes; que ninguém me maçasse com conversas estúpidas! Só ficava fascinado com o fogo no pequeno cosmos que somos. Mas as pessoas não me percebiam. Eram uns básicos. Quando proclamei que o princípio do mundo está na ideia do devir, todos julgaram que era preciso estarem sempre a vir-se pra que o mundo funcione. Fiquei a deitar fumo das orelhas. Por isso escolhi a solidão, ou ela me escolheu a mim. Uma cortina de fogo separava-me dos outros. Acusaram-me de orgulho em demasia. E os deuses humilharam a chama cativa no meu corpo de mortal. A mim, que afirmara ser o fogo a alma motriz do universo, fizeram com que sofresse de hidropisia crónica. O corpo inchado de água tal qual uma grávida com retenção de líquidos; como se os meus rins tivessem feito greve... «Os deuses vendem tudo quanto dão» ; uma frase trágica e verdadeira. Mas quem a disse não fui eu, foi o Fernando Pessoa... O pai dele fez crítica de ópera mas já não assistiu em vida aos poemas do filho, recitados no silêncio; porque morreu tuberculoso era o poeta uma criança de quatro anos... E por falar em ópera, um dos meus maiores admiradores foi Nietzsche, que acreditou durante muito tempo que a ópera havia de ressuscitar a tragédia antiga. Depois zangou-se com Wagner e descobriu que estava errado. A tragédia nasce da música, mas é da música que habita nas palavras; no fogo do seu ritmo bailarino. O logos é o verbo de fogo, escrevi eu um dia... Nietzsche chamava-me filósofo trágico. Mas ele foi mais trágico do que eu, porque acabou por perder a razão, essa razão que ele tanto combatera. « Os deuses enlouquecem aqueles que querem fazer perder. » A MIM NÃO ME ATINGIRAM A ALMA, APENAS CONSEGUIRAM LEMBRAR-LHE QUE CHAFURDAVA NA LAMA. E eu vinguei-me do castigo em mim próprio. Achei que podia secar o excesso de água se pusesse o corpo em contacto com o fogo da fermentação. Assim fiz. Corria prós estábulos e afundava-me na merda até ficar só com a cara de fora, pra poder respirar. Mantinha-me ali horas e horas. Era uma performance terapêutica. Se os deuses queriam fazer de mim uma bosta viva, eu fazia-lhes a divina vontade: mergulhava na merda de vaca até não haver distinção alguma entre ela e eu... O Samuel Beckett inspirou-se em mim de certeza, quando andou a enterrar pessoas vivas...
Rapsodo : ( Que já há alguns instantes entrara em cena e o observava de longe .) Ó senhor Heraclito! A sua conversa vai longa e está a cheirar mal. Nós tínhamos pedido uma introdução acerca da Grécia na época dos trágicos; antes de Prometeu entrar em cena. Não fomos bem percebidos.
Heraclito : Ora ainda bem que não os percebi! É pra vocês saberem o que custa, uma pessoa vir cheia de força e de repente vê que está só a pregar aos peixes. Já não me voltam a ver. Prá próxima chamem o Empédocles! É bem-falante, veste roupa de marca, e saltou pró vulcão Etna, julgando que era fogo divino. ( Caminha para sair de cena. )
Rapsodo : Não fique melindrado connosco, por favor, sr. Heraclito.
Heraclito : (Vociferando já em fundo de cena.) E não me torne a chamar senhor Heraclito que isso irrita-me de morte. ( Sai de cena .)
Rapsodo : Desculpe, desculpe... professor obscuro. ( Seguindo no seu encalço, sem sair de cena . Nória aparece a interpelá-lo .)
Nória : Bonito! Convidam as pessoas prás tratar assim. Eu era capaz de ouvi-lo uma noite inteira. Mas não, não há lugar pra ele. Heraclito é um maluco do metro.
Rapsodo : A senhora vá sentar-se! Olhe que eu chamo o segurança.
Nória : O mocetão ali da porta? Chame-o à vontade. Ele não percebe nada. Veio ontem da Ucrânia. Chegámos escondidos num camião de alperces. E doces que eram. ( Tira um fruto da sacola e dá-lhe uma dentada .)
Rapsodo : ( Faz gestos de boxeur .) Ele há-de perceber a linguagem pra que foi contratado.
Nória : ( Ri-se ) Você é pugilista ou está com frio nas mãos? ( Começa a instalar-se o adereço do rochedo para a cena seguinte. Prometeu aparece e observa se tudo fica em ordem , ante uma Nória deslumbrada .) Olha quem vem lá. Prometeu em carne e osso. Tem piada! ( Olhando-o como um basbaque enquanto o prendem a um rochedo em forma de archote. ) Eu conheço-lhe a cara e o físico. Ele não costuma entrar em telenovelas? ( O Rapsodo leva-a por um braço para fora de cena .) Ai, que bruto!
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