Corsino Fortes e João Cabral de Melo neto elaboraram uma poesia, que devido ao objectivo assumido, da apreensão directa da realidade, poderá ser apelidada de “antropologia” poética. Possuem ambos uma poesia, feita de “palavras autênticas”, de busca de uma nova expressão poética. É uma poesia feita de entranhas, pedras, raízes, empenhada no mineral do espaço em que se respira, na "verdade" do mundo, ou essencialmente "de um mundo" que os "retalha e engole". É uma poesia sem subterfúgios, que está na consciência do poeta moderno, que tem "apenas" como objectivo "fazer". João Cabral, mesmo quando afirma ser a poesia uma inutilidade, defende sempre, como fundamento do poético, "o fazer", "o dizer", numa espécie de "consagração do instante". Refere ele no poema "O artista inconfessável":
Fazer o que seja inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
Mais vale o inútil do fazer.
(...)
com mais desdém, ou então dizer
mais directo ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.
Assim, entre o fácil e o difícil, a "inutilidade" da poesia ainda se impõe como alternativa, desde que seja sob o controle da consciência. Os poemas e/ou a poesia só serão inúteis para quem sabe a distância entre o "fácil" silêncio e a "difícil" expressão, ou seja, FAZER. Por isso Corsino Fortes suporta a proposição de toda a sua poesia, dizendo:
II
Poeta! Todo o poema:
................geometria se sangue & fonema
Escuto Escuta
Um pilão fala
................árvores de fruto
...............................ao meio dia
(...)
Mar & monção mar & matrimónio
Pão pedra palmo de terra
............................Pão & património
Corsino Fortes, foi aliás bastante influenciado (como ele próprio referiu) por João Cabral, ao nível espacial-geográfico, no sentido em que se põe a hipótese de se apresentar a folha branca como uma tela, lançando as palavras para o intelecto e abrindo então, um espaço pictórico, onde as palavras "vivem e respiram". Daí ter experimentado (e adorado) o surrealismo, o experimentalismo e sobretudo a poesia concreta, onde foi beber o suporte orgânico, da sua própria experiência de fragmentação, da ilha e da poesia. Atente-se em dois poemas, um de Corsino Fortes e outro de João Cabral, para se verificar uma influência enorme (neste caso uma intertextualidade evidente) de João Cabral em Corsino fortes. Em ambos os poemas, assistimos à dialéctica com a forma perfeita do "ovo" que contém a vida. Diz João Cabral:
(...)
II
O revela o acabamento
a toda a mão que o acaricia,
daquelas coisa torneadas
num trabalho de toda a vida.
(...)
cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
(...)
No entanto, o ovo, e apesar
da pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida .
Corsino Fortes "responde" a este poema de 1961, com o poema "canção", onde o ovo surge, como a vida, a força vital e cosmogónica, representando o futuro, logo, no "ponto de partida":
Longe longa a tua viagem
Que a semente
Consome a sua herança
..............................Pelo céu da boca
(...)
Falávamos
............................Árvore e habitação
E lá estavas tu
...........................OVO
...........................que cresce
No tambor da ilha
...........................como SOL
Mordendo o umbigo de Deus
Em ambos os poetas, o espaço e/ou geometria é fundamental, porque depois toda a arquitectura começa. Ambos vão ter como "matéria prima" a pedra, a terra rochosa, árida, seca, estéril, quer de cabo-verde, quer do sertão. Daí, tanto em Corsino (celebrando a odisseia do povo cabo-verdiano) como em João Cabral, através de "Morte e vida Severina" (exaltação do povo nordestino, que foi levada ao limite, quando coloca o filho de Deus, como filho de um nordestino), há uma espécie de poesia épica, já que é inegável a osmose e a identificação entre os poetas e o espaço vivencial e amado, entre a palavra e as suas consciências. São ambos poetas, que rasuram o discurso e o limitam até ao minimalismo. Em "A palo seco", João Cabral, em jogo lúdico da linguagem, diz-nos:
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada.
Por sua vez, Corsino Fortes responde-nos:
P)
E chove sobre a hora
Que o sol depõe sua querela
....................................na pedra do arquipélago
E vem ilha+ilha
...................................Com pés caligráficos+a
Ferida de pão na meia-lua dos joelhos
Podemos encontrar na poesia de ambos os poetas, vários poemas e/ou versos, onde os exercícios e/ou trabalho em torno de sensações olfactivas ou tácteis, sensuais, visuais, etc, são predominantes. Inclusive, o sensual e/ou erotismo surge-nos diversas vezes. Corsino Fortes mostra-nos a mulher cabo-verdiana, como rocha que não quebra:
E diz o pilão à mó de pedra
Ó ave de amor! Mar & Maria
Entre o mar E o arquipélago
Há
..........................Esta rocha de mulher
A pele da tua ilha E a prana da tua pátria
E
(...)
João Cabral canta o amor poucas vezes, mas no poema "Forte de Orange, Itamarecá", mais do que erotismo e/ou sensualidade, há o "sexual" na sua verdadeira força:
E um dia os canhões de ferro,
seu tesão vão, dedos duros,
(...)
inestancável e surdo,
que se abracem, se penetrem,
se possuam ferro e musgo.
Mas, e até comparando estes dois poemas, ao nível da construção, verifica-se em João Cabral, um trabalho poético muito intelectual, com um vocabulário referencial e não metafórico, uma vez que o sentimento e/ou emoção, contrariamente a Corsino Fortes, era algo que deveria ser colocado de parte. De certo modo, em Corsino Fortes encontramos uma síntese semântica, do cosmos cabo-verdiano, uma vez que a par de um ritmo (espaço de amplitude dos versos, umas vezes longo, outra curto), Corsino, recorre muitas vezes a um vocabulário de alguma forma latinizante, para estabelecer imprevisíveis jogos semânticos, em conjugação com o crioulo natural, de forma a padronizar a especificidade do homem crioulo, como algo novo, porque a ilha, o homem e a palavra, são uma simbiose semântica do espaço cabo-verdiano, enquanto em João Cabral, quer seja na poesia sobre o sertão e o Nordeste, quer seja na sua meta-poesia, de reflexão e questionamento sobre a poesia e o acto de escrita, encontramos uma espécie de síntese sintáctica. Veja-se o seguinte poema de Corsino, para constatar uma poesia de sentidos e/ou significados, uma poesia assente no domínio da semântica (embora por vezes exista um choque da sintaxe):
A poesia é viola na prosa dos dias
E envelhece a pedra
.................................Que não quebre
(...)
E pela noite! a tua ilha esvoaça
Como um pássaro drogado
.................................Entre os teus cabelos
Já em João Cabral, geralmente é notória essa poesia de síntese sintáctica, ou seja, de construção apertada, rígida, numa significação encadeada em lógica, por vezes até, de “desconstrução sintáctica”. Atente-se no poema “A Quevedo”:
(...)
que a poesia se quer mais que arte
e se denega a parte
do engenho em sua traça,
nos mostra teu travejamento
que é possível abolir o lance,
o que é acaso, chance,
mais: que o fazer é engenho.
É certo que em ambos os poetas, emerge uma poesia substantivada (muito mais em Corsino, uma vez que através da celebração, esta poesia substantivada, possui predomínio sobre “toda a palavra”), mas, apesar de muitas vezes, termos inclusive uma poesia vérbico-visual nos dois poetas, enquanto Corsino “usa e abusa” das metáforas, João Cabral repudia o vocabulário metafórico, perante o receio de que a poesia pudesse ser a “transplantação metafórica da realidade”, o receio das emoções (em Corsino, por vezes até assistimos a um jogo dessas emoções, uma certa forma de apelo a essas emoções). Por outro lado em Corsino, geralmente temos poemas mais extensos e impregnados de enumerações , contrariamente à poesia de João Cabral, de construção sintáctica rígida e/ou apertada, numa opção pela “esgrima concreta”, numa luta permanente, como ele referia, do “caroço do verbo em esgrima poética”. Existe em João Cabral, a ausência de imagens abstractas, numa procura das marcas ásperas de uma realidade referencial (por vezes, Corsino também se aproxima desta construção poética). Estas semelhanças (essencialmente, até pelo que Corsino “bebeu” em João Cabral e outros poetas brasileiros, nomeadamente Drummond de Andrade) e diferenças no “fazer” poético, entre estes dois poetas, não invalidam, estarmos na presença de dois extraordinários poetas, que trabalhando e produzindo uma poesia construtivista, de rigoroso trabalho de linguagem, revolucionaram “marcaram” para sempre, não só a poesia cabo-verdiana e/ou Africana e Brasileira, respectivamente, bem como a própria poesia em língua portuguesa. Como afirma Corsino fortes:
W)
E diz a ilha a cada letra do alfabeto que chove
Do olho da arte nasce o oásis do artesão
E João Cabral de melo Neto,(20)”acentuando a concretização da palavra poética entre tensões criadas pela poesia e arte em geral e comunicação da própria linguagem”, diz-nos no poema “Falar com coisas”:
As coisas, por detrás de nós,
exigem: falemos com elas,
mesmo quando nosso discurso
não consiga ser falar delas.
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