A poesia de Corsino Fortes reinventa o arquipélago, ao mesmo tempo em que o contexto é também de renovação do espaço da "ilha", na redescoberta dos valores de Cabo-Verde. Por isso, a ilha, como semente do "espaço novo", o sol brilhando agora, na Cabeça calva de Deus :
ILHA
Sol & semente: Raiz & relâmpago
Tambor de som
..........................Que floresce
A cabeça calva de Deus
Corsino Fortes vai recriar através da recriação da própria palavra, Cabo-Verde, elaborando uma linguagem verdadeiramente comprometida com o universo ilhéu.
A questão da insularidade é a grande marca e/ou referência na tradição poética e de certa forma literária Cabo-Verdiana. Corsino Fortes revê essa questão, de forma a colocar a ilha como o centro dos sonhos. O seu sujeito poético não será mais, aquele que lamenta uma existência, assente no “drama do mar”, ou seja, de “querer partir/e ter que ficar”. Corsino, ao contrário, “apaga” o caminho da evasão, do ilhéu bipartido, do sofrimento sufocante e, até de forma algo excessiva, coloca a importância da valorização da ilha, do renascimento, da reconstrução, da esperança, do sonho de um universo novo, nos ombros do homem da(s) ilha(s). No futuro há que acreditar, “no ovo da ilha/o povo que se renova”.
Ana Mafalda Leite afirma, (5)”Do resquicial fonema que reclamava a liberdade de ser palavra e voz, advém o tambor, som pleno, que pela sua tradição Africana impõe uma nova linguagem de identidade com África, de ritmo de festa e de solidariedade(...), Árvore que retoma por sua vez o “Pão”; trata-se de concretizar o acto pela acção: plantar, construir, renovar o corpo, o espírito, a palavra, a terra, a nação (...)”. A poesia de Corsino Fortes cria esse novo espaço remontado em texto, a que Ana Mafalda Leite, apelidou de “o cosmos redondo”, numa conexão com a “circularidade do universo que se constrói”, num espaço quase sagrado, que depois de tomar e concretizar a sua própria dinâmica, ganha a forma e a força de um cosmos. Veja-se a síntese semântica do(s) cosmos Cabo-Verdiano (espaço, alimentação básica, clima, etc), no seguinte poema:
ILHA
Ó cabra de sono ó poço de abandono
Ó crepe da terra ó cratera
...........................De cabelo crespo
(...)
De pedras soltas
Teu umbigo desce
..................colmo corvo
..................para a minha rua
De bigorna E forja
..................Ao pé da porta
Noite uma noite nua
(...)
A baía de tantas mil bocas
De colher irrequieta na tábua da mesa
E do mar: o mar visita-te
Assim...Deus...de letras & letra
............................Soletrando ainda
Como um diálogo com sangue nos calcanhares
Sendo todo o poema ( a sua poesia ) essencialmente de objectivação, ela é o reflexo de toda uma vivência que sonha em celebrar um novo Arquipélago. Por isso, a ilha e o arquipélago às vezes têm boca, rosto, ombros, ventre, membros retesados. Têm sobretudo, um corpo em constante metamorfose. A ilha pode ser então quase tudo ( inclusive homem na solidão cheia de solidariedade ou mulher em sua gravidez ), num número ilimitado de imagens, que também se renovam constantemente no texto. No espaço desse novo cosmos todas as imagens aparecem de forma fluida (como a seiva e o sangue a que se refere de forma frequente e/ou recorrente). Assim, ocorre o que se pode definir como uma permanente "transfusão" entre as imagens formadas, por sua vez, pela fusão de elementos. Repare-se na constante utilização por Corsino Fortes das formas "&" ou pelo "E" maiúsculo, ou ainda na mesma "transfusão" que se produz entre partes das palavras, através da aliteração. Ou seja, nesse cosmos, qualquer dimensão espacial é fluida e torna-se relativa no permanente esforço pela renovação. No laboratório das palavras e/ou texto, a água será então o elemento que provocará a alquimia, transformando todo o resto, para erguer o Arquipélago. As ilhas erguendo-se pelas chuva do texto. Atente-se no seguinte poema e na mistura de metalinguagem do discurso:
F)
E chove do"r" "s" da erosão
.......................Que devolve
O milho ao marulho E o mar ao milheiral
E aviva
........................Entre duas costelas
O vale
........................Da pedra rubra E rumorosa
.................Da ribeira Que rompe
A ilha não é mais o espaço para a seca e a fome, uma vez que traz o renascimento "sobre o velho rosto que floresce". A ilha na geração desse universo novo, passará a ser o espaço onde brotará a fartura. O retorno e/ou regresso a essa ilha, a esse espaço, à nudez, à identidade, à língua, ao sonho. O poema reinventa o arquipélago e, simultaneamente renova-se a ilha e os seus valores.
(6) ”Aliando o trabalho estético ao compromisso social, Corsino Fortes devolve ao povo, através da poesia, uma nova cartografia insular de infinitas possibilidades, provando que há a capacidade de transformação, mas que o trabalho também é infinito, não termina e “Z”, estende-se como apelo para além do poema, à dimensão da pátria Cabo-Verdiana”.
Z)
Labor & mão: a mão de labor
Dirá a semente
......................Que sangra
......................A raiz de pedra & ombro
Amanhã também é ilha
......................Na árvore de cada vida...
E as enxadas dormiram Na veia cava dos homens
É neste partir agora, dentro da ilha, no círculo anel infinito da ilha que já acorda livre pelas pedras – som, pelas pedras d`água, pelas pedras – terra, que se haverá de transformar o espaço – chão, num lugar novo que “seja/tempo & tâmara/sobre tempo & têmpora”, até porque “A ilha é telha! cada vez mais/telha/no tecto do mundo”. A ilha simplesmente...é.
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