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Paulo Alexandre Pereira
(Univ. de Aveiro/Portugal) |
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Uma «arqueologia produtiva»:
Natália Correia e a tradição trovadoresca |
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Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5
Parte 6 |
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Parte 6 |
A natureza bifronte da estética e da ética trovadorescas, em cuja origem se
produz «o fenómeno do difásico Dr Jekyll-Mr. Hyde»55, encontra-se projectada na
releitura que, em paralelo, Natália Correia desenvolve do cancioneiro burlesco,
testemunhada pelos conjuntos poéticos intitulados Cantigas de risadilha e Cancioneiro
Joco-marcelino. Pelo cultivo desta poética bivalente dá a autora provas da «osmose
lírico-satírica dos dois veios provenientes da génese trobadórica, berrante em Gomes
Leal e Sá-Carneiro, porém quebrada pela mitofagia da religião pessoana»56.
É de sublinhar o imprescindível enraizamento circunstancial destes textos, que a
autora lucidamente apoda de «desenfados quase todos parlamentares»57. No entanto, o
seu ludismo aparentemente inócuo não deve fazer esquecer que a «atitude
intervencionista nos nossos dias postulada pelo realismo social»58, cuja vitalidade
Natália Correia muito certeiramente assinala a propósito do escárnio trovadoresco, não
se encontra de todo ausente destas diatribes poéticas.
Partícipes do sirventês político e da chufa pessoal, trata-se, em qualquer dos
casos, de criações iluminadas pelas rubricas explicativas que as antecedem, nas quais se
esclarecem as coordenadas situacionais que subjazem à sua génese, um pouco à maneira
de razos modernas. No caso das Cantigas de risadilha, a explícita vinculação
paratextual a um subgénero que surge, desde a lacunar codificação poetológica que dele
figura na anónima Arte de Trovar, associado a uma pragmática do riso e do sem--sentido59, revela precisamente «a transição do escárnio popular para a sátira artística»
assinalada pela autora na introdução à Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e
Satírica60. Por seu turno, o Cancioneiro Joco-Marcelino («o parodístico registo das
traquinices»61 de Marcelo Rebelo de Sousa) estriba-se numa sintaxe poética serial,
semelhante à dos ciclos satíricos galego-portugueses, organizados em torno de uma
personagem histórica. Em qualquer dos casos, detecta-se a permanência de uma persona
poética que endossa um discurso entre o sentencioso e o satírico-burlesco, e de artifícios
retóricos claramente tributários da textualidade da cantiga satírica galego-portuguesa.
Na verdade, Natália Correia encarecera, em textos ensaísticos sobre a sátira, a
«especulação imaginística»62 e o «dinamismo metafórico»63 que a isentavam, no seu
ponto de vista, da sentimentalidade hierática que vigorava nos géneros amorosos.
Destaco, entre múltiplos exemplos possíveis, o recurso ao metaforismo animal que
compõe um bestiário grotesco, que intencionalmente relembra um outro «prodígio
genético», este relatado na cantiga «Natura das animalhas» de D. Pedro Conde de
Barcelos, ou a frequente exploração das virtualidades estilísticas da palavra equívoca:
Prodígio Genético
Para o Joaquim Gomes Carneiro
que na ceia da nossa despedida
desta dissolvida legislatura
afrontou as leis da espécie
produzindo um leitão.
Neste adeus dos deputados
Ao lar da legislação
Ficam todos espantados
De ver – ó aberração!
Por obra de astros danados
Carneiro gerar leitão.64
Na seca da discussão
Da famigerada seca,
Esta interpelação,
Por ser ao governo, peca.65
A truculência demolidora proporcionada pela iconoclastia do riso outorga
cidadania poética a um ethos do excesso, característico da carnavalização goliardesca.
Nele assume especial centralidade a irrisão do vício e da sexualidade, indiciando
indisfarçáveis afinidades com o campo sémico do obsceno do maldizer peninsular:
Durante o debate da lei contra o alcoolismo
Num país de beberrões
Em que reina o velho Baco
Se nos tiram os canjirões
Ficamos feitos num caco.
[...]
Se o verde e o tinto são
As cores da nossa bandeira,
Ai, lá se vai a nação
Se acabar a bebedeira66.
Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração!–
uma vez. E se a função
faz o órgão – diz o ditado–
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.67
Em Natália Correia, o magistério trovadoresco não é nem regresso nostálgico,
nem jogo poético solipsista, nem patriotismo panfletário. É, recuperando a imagem do
título, arqueologia produtiva – e inevitável – para quem, nas suas palavras,
« (...) tudo está em movimento perpétuo entre o passado e o futuro,
passando pelo presente mas não podendo a sua visão amarrar-se ao
ancoradouro do espírito do tempo. As pessoas que considero compreendem
este meu ritmo. As que me querem fazer pagar um preço por isso ficam de
mãos a abanar porque daqui não levam nada»68.
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55 Natália Correia, «Notas para uma introdução às cantigas d’escarnho e de mal dizer galego-portuguesas», p. 158.
56 Natália Correia, «Prefácio» a José Carlos Ary dos Santos, As palavras das cantigas, Lisboa, Edições Avante, 1989, p. 7.
57 Natália Correia, Poesia Completa, p. 477.
58 Natália Correia, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses, p. 47.
59 Sobre as cantigas de risabelha diz-se no capítulo V da Arte de Trovar: «Pero er dizem que outras há i
“de risabelha”: estas ou serám d’escarnho ou de maldizer; e chama-lhes assi porque riim ende a vezes os
homens, mais nom som cousas em que sabedoria nem outro bem haja.». Cf. Giuseppe Tavani (ed.), Arte
de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 1999, p. 42.
60 Natália Correia, Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, Lisboa, Antígona, 1999, p. 24.
61 Natália Correia, Poesia Completa, p. 561.
62 Natália Correia, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses, p.47.
63 Natália Correia, Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, p. 23.
64 Natália Correia, Poesia Completa, p. 485.
65 Idem, ibidem, p. 479.
66 Idem, ibidem, p. 482.
67 Idem, ibidem, p. 486.
68 «Natália Correia: em paz com os deuses», Jornal de Letras, 16 de Junho de 1992.
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