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Paulo Alexandre Pereira
(Univ. de Aveiro/Portugal) |
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Uma «arqueologia produtiva»:
Natália Correia e a tradição trovadoresca (1) |
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Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5
Parte 6 |
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Parte 1.
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Num ensaio dado a lume em 1975, rastreava Manuel Simões, na que era então
a novíssima poesia portuguesa, a incorporação paragramática do trovadorismo galego-português e concluía que «não deixa de ser curiosa a descoberta de relações culturais
muito íntimas entre duas líricas separadas por seis séculos de uma constante e ardorosa
aventura poética»2. Ausentes a coesão grupal e a consciência programática que a
certificariam como escola, esta orientação neotrovadoresca deixa perscrutar, ainda
assim, um timbre intertextual comum a muitas vozes líricas da nossa modernidade
poética. De Afonso Duarte a José Régio, de Jorge de Sena a Eugénio de Andrade, de
David Mourão-Ferreira a Fiama Hasse Pais Brandão, de Maria Teresa Horta a Manuel
Alegre, parecem ser poucos os autores a, num assomo espúrio ou em ensaios mais
perseverantes, ter-se furtado à tentação desta «arqueologia produtiva». Esta «philia dialógica»3, que torna comunicantes, em iluminação recíproca, dicções poéticas tão
alienadas temporalmente, está longe de se esgotar na agenda nacionalista inaugurada
por um certo neo-romantismo saudosista ou lusitanista, que intentava mapear o roteiro
literário da portugalidade, instituindo-se, ao invés, como verdadeiro exercício de
arqueologia produtiva, no sentido em que a exumação dos textos líricos galegoportugueses
– e a correlativa operação de mimetismo ideotemático ou formal por ela
implicada – ductilmente se sintoniza com as solicitações dos específicos idiolectos
poéticos. Para além de uma evidente diferença de rendibilidade expressiva, é igualmente
diversa a incidência quantitativa e qualitativa de rasgos medievalizantes no texto
contemporâneo, permitindo discernir, pelo menos, três modalidades de poética
neotrovadoreca: a reprodução mimética dos módulos poéticos medievais; a retextualização da atmosfera, símbolos, estrutura e procedimentos retóricos que
reclamam uma leitura em confronto com a tradição lírica medieval e, finalmente, a
transferência de fórmulas e estilemas medievais, que, em virtude do seu carácter
simuladamente popular ou exoticamente arcaizante, permitem gerar uma imagística de
matriz vanguardista (simbolista, criacionista, surrealista), da qual, em regra, não se
encontra ausente uma pronunciada vertente lúdica4. |
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1 A expressão «arqueologia produtiva» é retirada do ensaio de Pierre-Marie Joris, «Dante avec Joyce:
Charles-Albert Cingria ou le Moyen Age d’un poète», in Michèle Galy (ed.), La trace médiévale & les
écrivains d’aujourd’hui, Paris, PUF, 2000, p.70.
2 Manuel Simões, «A projecção das ‘cantigas de amigo’ na novíssima poesia portuguesa», Annali della
Facoltà di Lingue e Letterature Straniere di Ca’Foscari, XIV, 1-2 (1975), p.189. Uma versão ampliada
deste artigo foi recentemente republicada sob o título «Os textos medievais, intertexto da literatura
moderna e contemporânea», in História da Literatura Portuguesa, vol. I (Das origens ao Cancioneiro
Geral), Lisboa, Alfa, 2001, p.583-599.
3 A expressão é de Dalma Nascimento, «Neotrovadorismo em quatro tons: Manuel Bandeira, Cecília
Meireles, Vinicius de Maoraes e Stella Leonardos», Agália, nº 36 (Inverno de 1993), p.444.
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