Os textos encontram-se agregados em dois ciclos líricos – intitulados
respectivamente «Queixam-se as novas amigas em velhos cantares de amigo» e
«Alegram-se as velhas amigas em novos cantares de amigo» –, cuja congruência
macrotextual é sustentada pelos motivos do lamento e do júbilo femininos. A
temporalidade binária, anunciada nos títulos, faz imbricar forma poética e circunstância
histórica, numa dinâmica de metamorfose de sentido biunívoco. A repetição ritual da
História, sobretudo no que ela implica de experiência agónica e dolorista, legitima a
revisitação modernizada dos «velhos cantares de amigo». São múltiplas nestes textos as
instâncias de mimetismo sémico-formal. Destaco, sem pretender ser exaustivo, a
assimilação dos traços genológicos da alba e da pastorela, a presença de um esquema
enunciativo lírico-dramático ou a reprodução do dialogismo da tenção, para além de
inúmeras sugestões verbais e expedientes retórico-estilísticos decalcados dos géneros
canónicos do lirismo galego-português, denunciando por parte da autora uma
frequentação assídua dos textos trovadorescos. A homologia de contextos poéticos
(nomeadamente a interpelação às amigas ou a elementos naturais antropomorfizados, o
lamento pelo amigo ausente ou a exortação eufórica à dança, a caça de amor, o banho
ritual, o auto-panegírico narcísico da donzela, etc) é coadjuvada por idêntica pregnância
simbólica confiada ao enquadramento paisagístico (ondas, vento, árvores, aves),
embora, em alguns casos, se opte pela sua distorção funcional. No plano da composição
formal, verifica-se sobretudo a exploração sistemática das virtualidades fónico-rítmicas
da repetitio trovadoresca (consubstanciada nas estratégias iterativas do refrão, do leixaprem,
do versus transformati ou do paralelismo perfeito), que, mau grado concorrer
para a fidelidade ao modelo galego-português, ao afectar material verbal
propositadamente moderno, instaura um efeito de intencional extemporaneidade.
A composição que abre o díptico actualiza justamente as duas linhas isotópicas
prefiguradas no título: a aparente mutabilidade da história, veiculada por meio da
imagem heraclitiana das águas em perpétuo movimento, apenas ilude, mas não elide, a
essencial permanência da dor, ligada, no caso, à inevitabilidade da guerra.
Nesta praia, amigas, de onde pr’ás cruzadas
Foram matar mouros nossos lidadores
Com cantares de amigo chamemos as barcas
Que à lide levaram os nossos amores,
....Vão e vêm as ondas. Pelas mesmas águas
....Discorrem idades. Não mudam as dores.
[...]
Mudadas em naus as lenhas das matas
Mudaram o mundo. Não mudam as dores.
[...]
Vêm os soldados e foram-se as Áfricas,
São outras as guerras. Não mudam as dores.
Embora o cenário poético seja reminiscente da partida do amigo para o fossado,
tão insistentemente tematizada no cancioneiro de amigo peninsular, o sujeito masculino
metamorfoseia-se agora, por meio de um qualquer sortilégio de projecção trans-histórica, em nauta que ruma à Índia ou em soldado impelido a «matar pretos pelos
seus senhores», originando uma suspensão acrónica que guinda a personagem a um
estatuto quase alegórico.
Mais do que linguagens complementares de nomeação do universo, masculino e
feminino parecem esferas em insuperável clivagem, reproduzindo, no plano intersexual,
o antagonismo entre princípio da realidade (simbolizado no apocalipse urbano, na «ira
das guerras dolorosas», nas «indústrias e infames ofícios», na «cólera, ganância e outros
vícios») e princípio de prazer (representado pelo imaginário bucólico, pela «bailada»,
pelos «cantares velhos que os ódios desterram», pelo «corpo lindo»), o mesmo é dizer
entre amor e morte, entre Eros e Thanatos. Na verdade, os amigos que habitam estes
textos parecem duplos poéticos daquele outro que, na enigmática canção de alba de
Torneol, pateticamente secando as fontes e tolhendo os ramos, se empenha na extinção
da harmonia natural e da reciprocidade amorosa. Também aqui, à inconstância
masculina de um universo em irreparável dissolução, se contrapõe a vocação
reequilibrante do feminino, figurada em sinais arquetípicos de fertilidade e abundância:
No alto do mundo, nós as montanhesas
Chorando os amigos que estas penhas bravas
Deixam por indústrias de loucas empresas,
Os velhos alqueires regamos com lágrimas.
Aos mais altos ermos acolhem-se as aves
Do mal que os amigos fazem nas cidades.
O linho tecendo, não dando pelas horas
Que os mancebos movem a andanças incautas,
Choramos por eles que estas velhas hortas
Deixam por indústrias que empestam as águas.
Aos mais altos ermos acolhem-se as aves
Do mal que os amigos fazem nas cidades.47
Estes sinais tornam-se significativamente mais persistentes no segundo
andamento do díptico, onde prepondera, num jogo de refracção especular, o gáudio
feminino, convencionalmente aliado à vibração coreográfica das maias e ao
ressurgimento primaveril. A convocação deste imaginário ritológico, dinamizador da
fecundidade, consorcia-se com uma figuração panteísta da natureza, à qual subjaz um
«hierofantismo feminino»48. Desta feita, os ecos verbais das milgranadas de Airas
Nunes constituem o móbil de uma bailia de alcance cósmico49:
Sob a milgranada, amigas, bailemos
As três danças concêntricas do Amor.
Na árvore a Deusa seus floridos ramos
Estende-nos no auge do seu esplendor.
[...]
Como à roda do sol a terra gira,
Amigas, bailemos a dança radiante
Que na raiz da milgranada excita
O amor da Mãe dos Frutos: a Abundante.50
A evocação distópica da terra gasta, pela violentação das ofensivas masculinas,
abre agora espaço ao renascimento tornado possível pelo fim da guerra, numa clara
remissão para a revolução redentora de Abril:
Pelos campos primaveris
Radiosos de aves e ervas
Os soldadinhos gentis
Por quem acendemos velas
Trazem flores em vez de balas
Para libertar as belas.51
O interregno no ofício bélico propicia a entrega sensual e a fruição erótica,
inscrevendo nestes ensaios neotrovadorescos a ressonância de «uma antiquíssima poesia
feminina que sacralizava o corpo»52. Não obstante, os cerimoniais simbólicos da caça de
amor, do banho ritual ou da lavagem pré-núbil dos cabelos e das camisas, glosados nos
cancioneiros de D. Dinis, Martim Codax, Joan Soares Coelho, Estevam Coelho ou Pero
Meogo, ainda que activados em latência fantasmática, acusam o ajustamento a uma
funcionalidade figurativa absolutamente distinta da original, mobilizando um intertexto
sincrético. E, assim, no motivo popularizante da lavagem dos cabelos pode, por
exemplo, intrometer-se a reminiscência ofélica de proveniência culta:
Ledo o meu amigo foi caçar no monte,
Disseram-me as aves que o esperasse na fonte.
Jovial o vento levou-me o vestido,
Soltou-me o cabelo. E o resto não digo...53
Nas róseas ondas quando o amanhecer
Carmina a areia, entre rochas altas
Banham-se as belas. Vem amigo ver,
Flutuar meu cabelo à flor das águas.
Ó vem, sedento! Amigo, vem beber
A água que do cabelo me escorrer.54
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47 Idem, ibidem, p. 626.
48 Natália Correia, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses, p. 42.
49 Na introdução aos Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses, Natália Correia enfatiza a
centralidade da natureza ritual da bailia: «Seja como for, é no Ocidente peninsular que o tema arcaico da
canção feminina, comum a uma remota tradição da România, subsiste com maior vigor e fidelidade a um
esquema coreográfico que tem como fundamento a dança ritual. Não é outra a origem das nossas
bailadas, nas quais aliás perdura o vestígio da árvore ritual». Cf. op. cit., p. 43.
50 Natália Correia, Poesia Completa, p. 630.
51 Idem, ibidem, p. 629.
52 Natália Correia, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses, p. 45.
53 Natália Correia, Poesia Completa, p. 632.
54 Idem, ibidem, p. 633.
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