Sublevando-se contra a potestade marital do patriarcado coercivo, o amor cortês
é naturalmente adúltero, exacerbando-se «na destruição da virilidade, ou melhor, dos
aspectos típicos que esta assume numa cultura matrista»23. Esta duplicidade erótico-tanatológica – subsumível, em última instância, a uma bipolaridade algo maniqueísta
feminino-masculino– é aprofundada por Natália Correia num estudo que mereceu
escassa divulgação, sugestivamente intitulado «Bissexualidade e Ruptura Romântica na
Poesia Portuguesa». Aí avança-se a seguinte tese:
«Sendo lícito sexuar os corpos sociais desde que neles predominem
comportamentalmente ora características masculinas, ora femininas, ora
bissexuais, é esta última conduta que, numa relação conflitual macho-fêmea,
se manifesta no comportamento psicossocial português até ao período que,
em literatura, se chamou romântico e liberal em política»24.
Esta bissexualidade psicossocial encontra-se, assim, plasmada na confrontação
conflitual de dois sistemas comportamentais: o matrismo, caracterizado pela «religião
da mãe, liberdade em questões sexuais, democracia, posição privilegiada da mulher que
goza de liberdade, progressismo, pouca diferença entre os dois sexos» e o patrismo,
«marcado pela intolerância em matéria de sexualidade, pelo autoritarismo político, pelo
conservadorismo, pela inferioridade da mulher considerada fonte de pecado, pelo
ascetismo, pelo horror do prazer e por toda uma gama de intolerâncias que se
manifestam na religião do pai»25. Daqui decorre que o sistema de géneros da poesia
lírica galego-portuguesa espelha rigorosamente esta ambivalência esquizóide do
carácter português, hesitante entre estes dois modelos: por um lado, o lirismo amatório,
e a cantiga de amor em particular, encetam a apologia do Eros construtivo e regenerador
da feminilidade; o cancioneiro de burlas, por seu turno, traduz a inexorabilidade
destrutiva de Thanatos. No cancioneiro satírico, nas palavras de Natália Correia, «a
mulher sófica degrada-se em fêmea évica»26, dado que
«Numa margem a rendição à superioridade do feminino inscrito
na vinculação aos mitos matristas pré-cristãos ligados a um tipo de cultura
transmitida pela memória colectiva. (...) Na outra margem, temos o
enaltecimento da superioridade masculina infundido pela patriarcalidade
eclesiástica que, santificando a mulher enquanto virgem, como fêmea, a
concebe desprezível»27.
A «ruptura romântica» a que a autora alude traduz-se justamente no esbatimento
da cisão bissexual, sinalizada pelo triunfo dos «comportamentos agrupados no ciclo
matrista»: «a pluralidade contra a linearidade absolutista, a bondade do homem natural
pervertido pela organização social, os direitos do amor contra a razão do Estado e o
apreço pelo popular»28. E será aqui oportuno um breve regresso às afeições electivas de
Natália Correia, no que respeita à periodização literária, e à transversalidade do seu
conceito de um sempiterno romantismo. O enfeudamento romântico do canto
trovadoresco é explicitado nos seguintes termos:
«Quer o trovadorismo quer o Romantismo, que daquele retoma o
tema da liberdade através da ascese amorosa, doutrina que tem por núcleo a
mulher, são reacções contra uma identificação paterna, na medida em que
esta representa o princípio da autoridade, o espírito das leis mediante as quais
se exercem os imperativos de um mundo patriarcalmente organizado»29.
Paralelamente, contrasta-se a ancestralidade clássica da canso occitânica com a
genealogia romântica da cantiga de amor galego-portuguesa, na qual «o pensamento
criador é substituído pelo sentimento criador»30. Na perspicaz leitura que desenvolve de
Sonetos Românticos, Manuel Frias Martins reconhece que o parentesco periodológico
sugerido no título não é tanto com o correspondente movimento literário oitocentista,
mas antes com «o espírito da arte romântica, tal como Hegel a entendeu enquanto
elevação do espírito, beleza da interioridade e subjectividade espiritual»31.
Empenhada na «pesquisa das origens matriarcais da cantiga de amigo»32, no
desvelamento da «moldura rigorosamente matrista dentro da qual se desenvolve a
poesia de iniciativa feminina»33, na reconstituição do «espectro de uma arcaica
composição ginecocrática»34, Natália Correia submete os textos galego-portugueses a
um crivo hermenêutico que remete para a penumbra o facto, sublinhado à saciedade
pela crítica mais recente, de que a lírica trovadoresca é, por definição, essencialmente
homossocial, isto é, um assunto de homens, mesmo quando (e sobretudo se) se fala de
mulheres. A cantiga de amigo não representa, a este respeito, excepção: a astuta
usurpação da vocalidade feminina perpetrada pelos poetas masculinos significa que à
mulher é conferida existência, apenas na justa medida em que o homem fala com ela,
através dela ou sobre ela35. Não será, portanto, desprovido de ironia o facto de que
talvez, como defende António Resende de Oliveira, «nunca a voz da mulher tenha
soado tão androcêntrica: é que a amiga era puro desejo masculino»36. |
21 Idem, ibidem, p. 24
22 idem, ibidem, p. 27.
23 Idem, ibidem, p. 30.
24 Natália Correia, «Bissexualidade e Ruptura Romântica na Poesia Portuguesa», in Francisco Allen
Gomes, Afonso de Albuquerque, J. Silveira Nunes (eds.), Sexologia em Portugal, II volume
(«Sexualidade e Cultura»), Lisboa, Texto Editora, 1987, p. 41.
25 Idem, ibidem, p. 41.
26 Natália Correia, «Notas para uma introdução às cantigas d’escarnho e de mal dizer galego-portuguesas», in Estudos de História de Portugal. Homenagem a A . H. de Oliveira Marques, vol. I
(sécs. X-XV), Lisboa, Estampa, 1982, p. 158.
27 Natália Correia, «Bissexualidade e Ruptura Romântica na Poesia Portuguesa», p. 42.
28 Idem, ibidem, p. 45.
29 Idem, Cantares dos trovadores galego-portugueses, p. 28.
30 Idem, ibidem, p. 36. |