Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e de manhã bebemo-lo à noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí ninguém fica apertado (2)
Na casa vive um homem (3) que brinca com serpentes (4) e escreve
escreve quando anoitece para a Alemanha
os teus cabelos de
oiro Margarida (5)
escreve e vem para a fora de casa e relampejam (6) as estrelas
assobia pelos seus cães de fila (7)
assobia pelos seus judeus (8) manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos tocai agora para a dança (9)
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te de manhã e ao meio-dia bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
Na casa vive um homem que brinca com serpentes e escreve
escreve quando anoitece para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarida
Os teus cabelos de cinza Sulamita cavamos um túmulo nos ares aí ninguém fica apertado
Ele grita penetrai mais fundo na terra cantai e tocai
agarra no ferro que traz à cintura balança-o os seus olhos são azuis
enterrai mais fundo as pás continuai a tocar e a dançar (10)
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia e de manhã bebemos-te ao anoitecer
bebemos e bebemos
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarida
os teus cabelos de cinza Sulamita ele brinca com serpentes
Ele grita tocai mais docemente a morte a morte é um mestre da Alemanha
Grita arrancai sons mais graves aos violinos depois subireis
em fumo no ar (11)
Tereis então um túmulo nas nuvens aí ninguém fica apertado
Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio-dia a morte é um mestre da Alemanha
bebemos-te ao anoitecer e de manhã bebemos e bebemos
a morte é um mestre da Alemanha o seu olhar é azul
atinge-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
na casa vive um homem vive os teus cabelos de oiro Margarida
açula contra nós os seus cães de fila oferece-nos um túmulo no ar
brinca com serpentes e sonha – (12) a morte é um mestre da Alemanha
os teus cabelos de oiro Margarida
os teus cabelos de cinza Sulamita”
Poema publicado no livro “Mohn und Gedächtnis” (13) (“Papoila e Memória”). Tradução nossa, cotejando com a leitura que PAUL CELAN faz do seu poema (14). |
(1) O genitivo de Todesfuge é enganador, como nota JOHN FELSTINER (Paul Celan. Eine Biographie (trad. alemã de Holger Fliessbach da obra Paul Celan: Poet, Survivor, Jew, New Haven, 1996), Verlag C.H. Beck, Munique, 1997. O título poder-se-ia traduzir como “Fuga sobre o tema da morte” (www.copernico.bo.it/subwww/webtodes/filehtml/tradtod.html).
(2) O passo “da liegt man nicht eng” poder-se-ia traduzir também por “aí não se está apertado” ou por “aí não estamos apertados”.
A expressão alude à teoria do “Lebensraum” (“espaço vital”), conceito da autoria de KARL HAUSHOFER (1869-1946), desenvolvendo as teses da geopolítica de FRIEDRICH RATZEL (1844-1904). Professor da Universidade de Munique entre 1921 e 1939, mestre da geopolítica, HAUSHOFER proclama a necessidade de um espaço vital, considerando a existência de uma injustiça na distribuição do mesmo, especialmente em benefício dos pequenos Estado (JOSÉ ADELINO MALTEZ, Curso..., pgs. 279-280). Um dos discípulos foi RUDOLF HESS, que viria a introduzir no nazismo a tese do “espaço vital” (ID., ib.).
A expressão “da liegt man nicht eng”, por oposição a “ein Grab in die Luft”, indica, primeiramente, a exiguidade do espaço, própria dos campos de concentração. É uma referência ao regime nacional-socialista, que precisa do espaço todo; o oiro dos cabelos de MARGARIDA afirmava-se negando o outro, destruindo até à cinza. Os judeus não têm espaço na terra.
(3) O homem vive na casa, protegido e cuidado, em oposição à vida brutal e desumana dos prisioneiros, no campo de concentração.
(4) A serpente é utilizada como símbolo do Mal nas culturais ocidentais; é uma alusão às runas dos SS.
(5) MARGARIDA é o símbolo da mulher alemã (infra).
(6) Referência à Blitzkrieg (guerra-relâmpago). HITLER e os seus colaboradores pretenderam seguir a teoria da estratégia indirecta do britânico BASIL LIDDEL HART: em vez de considerarem que a guerra só terminaria com a destruição das principais forças inimigas no campo de batalha (proposto nos modelos de KARL VON CLAUSEWITZ), trataram de propor a utilização conjunta da aviação e da cavalaria mecânica, visando a desmoralização do inimigo, mas sem o lançamento, no terreno de combate, das principais forças militares (JOSÉ ADELINO MALTEZ, Curso..., pg. 152). PAUL CELAN refere-se às “estrelas humanas”.
(7) Rüden são grandes cães, machos, de guerra ou de caça; refere-se à raça de grandes cães alemães (Bluthünde) das SS (outra possibilidade de tradução seria “grandes cães de fila” ou “molossos”). Segundo relatos de testemunhas, no caminho para a câmara de gás, quando certos prisioneiros tinham crises de pânico, os SS soltavam os seus cães para as despedaçar.
A ideia é a de o homem chamar para junto de si os cães.
(8) Existe uma rima imperfeita entre Rüden e Juden, bem como um um paralelismo entre seine Rüden e seine Juden, indicando um contraste entre os cães, chamados para junto do homem, e os judeus. Os Judeus são sua pertença, sua propriedade (“seine”), tal como os cães; contudo, têm estatutos diferentes: os cães são chamados ajudar homem, ao passo que os Judeus são chamados para serem destruídos.
(9) A leitura de PAUL CELAN é célere quando fala das atrocidades do homem, sugerindo a rapidez da execução (Paul Celan. Ich hörte sagen. Gedicthe und Prose. Gelesen von Paul Celan , Audio Books, Derhorvelag, 1997).
(10) Novamente a leitura de CELAN é mais rápida quando se refere às atrocidades do homem, sugerindo a rapidez da execução.
(11) O acusativo “in die Luft” indica uma progressão no ar.
(12) A leitura do poema pelo Autor indica uma pausa grande neste momento, daí o acrescento do travessão.
(13) PAUL CELAN, Paul Celan. Gedichte. In zwei Bänden, Erster Band, Suhrkamp Verlag, Francoforte sobre o Meno, 1975, pgs. 41-42; Sete Rosas Mais Tarde. Antologia Poética, Selecção, tradução e introdução de João Barrento e Y. K. Centeno, edição bilingue, 2.ª ed., Cotovia, Lisboa, pgs. 52-57; Choix de poèmes. Réunis par l’auteur, trad. de Jean-Pierre Lefebre, ed. bilingue, Gallimard, Paris, 1998, pgs. 53-57; “Todesfuge”, de PAUL CELAN, in 1000 Deutsche Gedichte und ihre Interpretationen, Marcel Reich-Ranicki, Insel Verlag, Achter Band, pgs. 375-377.
(14) Paul Celan. Ich hörte sagen. Gedicthe und Prose. Gelesen von Paul Celan , Audio Books, Derhorvelag, 1997.
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