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MARIA DO SAMEIRO BARROSO
& IVO MIGUEL BARROSO

TODESFUGE , DE PAUL CELAN*

ÍNDICE

1. Paul Pessach Antschel

2. Todesfuge

3. Tradução

4. PAUL CELAN — o coração em cinza

Campo de concentração

4.6 O poema oscila

4.6 O poema oscila

 

4.6 O poema oscila aparentemente entre dois pólos, de cores contrastantes:

i) os cabelos de oiro de MARGARIDA;

ii) a morte, simbolizada por “os teus cabelos de cinza Sulamita”.

Repare-se na contraposição entre nos versos 6 a 9, em que o homem que brinca com serpentes escreve “os teus cabelos de oiro Margarida” (verso 6) e assobia pelos judeus (verso 9).

Na estrofe seguinte (versos 14 a 16), existe a contraposição, desta feita com a junção da referência a “cabelos de cinza Sulamita”: o homem escreve de novo para a Alemanha os cabelos de oiro de Margarida. Estes são contrapostos à cinza Sulamita que é contida nos mesmos cabelos, mas associada à expressão sarcástica “Aí ninguém fica apertado”.

A repetição desta ideia ocorre nos versos 25-26.

4.6.1 O cabelo loiro, de MARGARIDA, é uma referência possível à personagem MARGARIDA (da primeira parte de Fausto, de JOHANN WOLFGANG GOETHE, expoente da cultura alemã). O homem escreve os cabelos de MARGARIDA “para a Alemanha”.

A morte ser “um mestre da Alemanha”, “os seus olhos são azuis” são expressões que reforçam a identificação com a cultura do homem. MARGARIDA simboliza o povo alemão, representando o lado idílico e gnóstico (1) da ideologia propagandeada do arianismo germânico expansionista (nomeadamente com recurso a uma interpretação dos mitos germânicos (2) e à musica de RICHARD WAGNER (3).

O tom de oiro dos cabelos contrasta visualmente com a presença da noite.

4.6.2 A segunda parte é a destruição — a cinza.

Na cultura judaica, SULAMITA é a amada de O Cântico dos Cânticos (cfr., nomeadamente, no primeiro versículo do capítulo sétimo), do Antigo Testamento, sendo, pois, símbolo daquela (4).

A cinza evoca a morte e a cremação, os judeus imolados no genocídio (Holocausto, Sloah (devastação”, “aniquilamento”), “Solução Final”, decidido pelo regime nacional-socialista, colocado em execução nos campos de concentração e de extermínio).

4.7 O homem executa um diálogo a negro com os prisioneiros. O disparo com uma bala de chumbo e a precisão com que acerta no sujeito enunciado na forma “tu” (“dich”) demonstra a frieza científica com que o genocídio é executado.

O enunciado não é completamente claro (utiliza-se “dich” e, logo a seguir, “uns”); o homem açula os seus cães de fila “contra nós” (“auf uns”) e oferecendo um túmulo nos ares; “uns” significa os judeus. Prevalece a morte, que “ é um mestre da Alemanha”.

4.8 A esta ideia se liga a insistência na ideia de túmulo no ar (“ein Grab”).

As expressões “cavar um túmulo na terra”; “penetrai mais fundo na terra”, “tereis um túmulo nas nuvens”, “Depois subireis aos céus como um túmulo no ar”, são referências concretas à cremação.

É possível extrair um outro sentido implícito, mais aterrador:

O homem “sonha” os cabelos de oiro; para tal, tem de praticar o genocídio (a cinza Sulamita), como que dizendo que, para viver, tem de matar o outro.

Há uma vertigem de morte, à qual a imagem “túmulo no ar” (“ein Grab in der Luft”) empresta uma ideia de exiguidade expressa com a amargura trágica de não haver lugar para os judeus na terra.

4.9 Sobre o poema “Todesfuge”, escreve Y.K. CENTENO:

Tinha dito de mais, quando de facto seria impossível dizer mais. O poema condensa o desabar de um mundo: o da esperança. Bebe-se leite amargo (negro, como fel), a morte é o Mestre que reina (vindo da Alemanha, é certo, mas conivente com outros (...), o que resta é um túmulo no ar (nem sequer aqui o repouso da terra) e o doloroso contraste dos cabelos, a marca da diferença que justifica o crime: o loiro de Margarete, o cinza de Sulamith, aquele evocando uma luz tão mortífera quanto a treva dos fornos crematórios evocada por este.”(5).

 

(1) Têm sido vários os discursos metapolíticos, analisados, em páginas brilhantes, por JOSÉ ADELINO MALTEZ (Curso..., pgs. 300-304):

Nos discursos em análise, existem os subtipos da filosofia da história, incluindo não só os cultores do próprio método profético, mas também as várias análises produzidas pelos messianismos.

É patente a ideia de crescente racionalidade de MAX WEBER, de TALCOTT PARSONS e de DANIEL BELL, levando à exigência de um transtempo e da consequente abertura à imaginação.

Segundo HUGH TREVOR-ROPER, a história não é meramente o que aconteceu: é o que aconteceu dentro do contexto do que poderia ter acontecido. Só podemos olhar confiantemente para o futuro, se olharmos o passado com suficiente imaginação.

As filosofias da história assumem um carácter poético: os factos são também imagem.

NIKOLAI BERDIAEV salienta que o tema da filosofia da história é constituído pelo destino do homem nesta vida terrestre, destino que se realiza na história dos povos, isto é, cumpre-se não apenas no macrocosmos objectivo, mas também no microcosmos subjectivo.

Também MARTIN BUDER assinala que o próprio narrar é acontecimento: ele tem a unção de uma acção sagrada... A narração é mais do que um reflexo; a essência sagrada que nela é testemunhada continua a viver nela.

Segundo FERNANDO PESSOA, o misticismo significa, essencialmente confiança na intuição, nessa operação mental pela qual se atingem os resultados da inteligência sem usar a inteligência (“O mito é o nada que é tudo.”).

Assim, o misticismo, um ter um sentimento nítido de uma coisa que não se sabe o que é, dado que o místico onde não pode calcular, adivinha; onde não pode pôr à prova, profetiza, pelo que toda a matéria onde não pode haver ciência tem necessariamente que haver misticismo.

O método profético da análise histórica é o que cultiva a “Geschichte” em vez da “Histoire”, o que não reduz a história à mera investigação científica e à simples interrogação objectiva, dado preferir enfrentar a globalidade, sem excluir o mito e a consequente imaginação, considerando que o verdadeiro historiador deve pesquisar o sentido essencial de um determinado grupo de homens, chame-se-lhe missão ou objectivo permanente.

O homem não é apenas animal intelectivo ou voluntarístico, é também um animal simbólico cuja imaginação constitui um dos elementos estruturantes da sociedade (JOSÉ ADELINO MALTEZ, Curso..., pg. 302).

O culto da filosofia da história tenta cumprir o plano exposto pelo Padre ANTÓNIO VIEIRA, para quem haveria que misturar o lume da profecia com o lume da razão, que seriam as duas fontes da verdade humana e divina. Isto é, procura desmistificar a história, mas não a desmistificando (EDGAR MORIN) (mesmo as boas intenções de certo racionalismo, calculista e utilitarista, e de quase todo o positivismo cientificista, fizeram com que muitos sectores ocidentais padecessem de um paroquialismo gnóstico, em que alguns continuaram a acreditar na superação do teológico e do metafísico).

A herança gnóstica manifesta-se em todos aqueles que consideram a história do mundo uma luta entre dois princípios (o bem e o mal), através de três idades: o passado, o presente e o futuro) ou de outras lógicas trinitárias:

— a idade de Revelação do Pai, a Idade de Revelação do Filho, a Idade do Espírito Santo;

— Deuses, Heróis e Homens (GIAMBATTISTA VICO);

— Idades Teológica, Metafísica e Científica (COMTE);

— Capitalismo, Socialismo, Comunismo (MARX).

—o tempo da opressão, o tempo da resistência e o tempo da libertação (concepções revolucionárias).

O gnosticismo exige um chefe: tanto um chefe individual como uma figura colectiva, um homem novo (por exemplo, o “homem novo” do Marxismo).

Além de um chefe, qualquer concepção gnóstica exige uma irmandade de pessoas: os jesuítas, a maçonaria ou um partido vanguardista.

O gnosticismo tende a dividir, geograficamente, zonas dominadas pelo bem e pelo mal (para mais desenvolvimentos, v. JOSÉ ADELINO MALTEZ, Curso..., pgs. 300-304; cfr. também ID., ib., pgs. 92-94, bem como a alternativa proposta, com inspiração no Padre TEILHARD DE CHARDIN, do pensamento complexo (ID, ib., pgs. 94-104, 114)).

(2) A Alemanha carecia de uma mitologia que a pudesse motiva para uma auto-redenção. Em A Montanha Mágica (“Die Zauberberg”), THOMAS MANN denunciava a facilidade com que o ocultismo poderia ser usado para fins totalitários.

(3) RICHARD WAGNER, nas suas óperas, reavivou a tradição mística, procurando parâmetros de nacionalismo; WAGNER foi um mestre da palavra e da múscia, da razão e do instinto, um mago da memória alemã de Oitocentos, que conferia espírito, forma, som e unidade estética à psique nacional, o ponto alto da Kultur (JOEL COSTA, Wagnerismo e Hitlerismo, ciclo do programa “Questões de Moral”, emitido pela Rádio Difusão Portuguesa, Antena 2, pg. 6). Reclamar-se de wagneriano na Alemanha significava empenhamento numa causa transcendente, uma condição de serviço a um ideal superior da humanidade.

Apesar de a arte ter sido utilizada como meio de propaganda, para os fins do III Reich, poder-se-á dizer, como na cena final da ópera Os Mestres Cantores de Nuremberga: “Ainda que o Sacro-Império Romano se desfaça em pó, restar-vos-á para sempre a sagrada arte alemã” (JOEL COSTA, Wagnerismo..., pg. 30).

(4) A primeira revista judaico-alemã, de 1804, chamava-se “Sulamith” (RICCARDO MORELLO, Paul Celan..., pg. 5).

(5) I. K. CENTENO, Paul Celan: o Sentido e o Tempo in IDEM, Sete Rosas Mais Tarde. Antologia Poética, Selecção, tradução e introdução de JOÃO BARRENTO e Y. K. CENTENO, edição bilingue, 2.ª ed., Cotovia, Lisboa, 1996, pg. XVI.