Mário Dirienzo
"PAULO: ENTRE A LEI E A GRAÇA"

O Reverso da Medalha

Nossa miséria e nossa mediocridade, fatores existenciais que as interpretações psicológicas não querem encarar. A psicologia visa o desenvolvimentodavontade, ao passo que a visão da miséria e a mediocridade apontam para um revés essencial, o qual poderíamos chamar de “Abandono”, um abandono que existe como categoria inata de nossa existência, isto é, anterior a qualquer ato patente de alguém ou algo nos abandonar. Visando desenvolver o Homem ou o Além-do-Homem, o vezo psicológico faz vista grossa para a angústia do Abandono, a radical realidade do Mal e o desespero do Bem, que não se conforma com a tranqüila desesperança do além-de-bem-e-mal. O além-de-bem-e-mal opera uma guinada estética no pensamento, que surge como o eclipse de uma dimensão vital básica: a dimensão ética, na qual a antítese inevitável não seria entre o fraco e o forte, o belo e o feio, mas, sim, entre o Bem e o Mal.

Epitetamos de estético o pensamento que se alheia da tensão entre Bem e Mal, mergulhando no mundo das sensações. O esteta não está apenas nos confinamentos das torres de marfim, mas no espraiamento das torrentes de sensações, nas quais naufraga o senso ético.

A ética não é feita para anjos, mas para homens, ou seja, a ética supõe a finitude humana: imperfeição, a destruição. Pressupõe, todavia, o impulso em direção da perfeição e da conservação da vida. Assim a Cultura – no sentido humano do termo – implica cultivo, culto, isto é, desenvolvimento da vida, adoração das raízes divinas da vida. A Cultura, seu cultivo e seu culto possuem, de fato, aspectos estéticos, sensoriais, extáticos, infensos aos ditames abstratos da Lei. Contudo, a Lei se impõe como a bússola no mar revolto das emoções.

Lei, o que significa tal termo? Ordenamento que rege a conduta dos homens ou indica a regularidade de fenômenos naturais. As leis, portanto, são genéricas. Em princípio, não dão conta do Indivíduo, que é o real indiviso, que não pára nos ponteiros do relógio nem se fixa em conceitos.

Pois bem, o esteticismo de extração psicológica, cujo maior representante é Nietzsche, com esteio na inconcussa realidade do Indivíduo e na singularidade da “obra de arte”, foge, como o diabo da cruz, dos aspectos genéricos da vida, que testemunham a nossa mediocridade e a nossa miséria. Entretanto, nós humanos somos um rebanho. No mais das vezes, uma alcatéia, em todo caso, um coletivo.

Ao apontar para o genérico, a mediocridade e a miséria, evoco a insuficiência do Homem, circunstância contra a qual se bate o humanismo ou o super-humanismo, que sempre apelam para auto-suficiência do Homem. O mote da liberdade como “não-impedimento” tende a relegar a insuficiência para longe das raias consciência e/ou autodeterminação, entronizado esta como a mestra da vontade: então, um excesso de direitos, saídos do ventre da Lei, conspira contra a própria Lei.

Sem o amparo de nenhum teto, a céu aberto, o impávido Freud encarou a nossa insuficiência, a qual, segundo o arguto pai da psicanálise, exige a Lei. Digna de nota é a diferença entre Nietzsche e Freud apontada pela psicanalista brasileira Maria Rita Kehl. Enquanto que para o bombástico pensador alemão é a Lei que causa a culpa, para o sóbrio mestre de Viena, é a culpa que causa a Lei. Freud postulou a hipótese de um “pai arcaico”, que dominava a manada humana pré-histórica, tendo, como outros mamíferos próximos do homosapiens, um harém à sua disposição, proibido, porém, para os seus próprios filhos. Então, num dado momento, os filhos, unidos, assassinam o pai. O pai era odiado, já que era um obstáculo ao desenvolvimento dos filhos, mas, também, amado, pois era o modelo de vigor e força para eles. A Lei seria, pois, um misto de repúdio ao pai e remorso pela sua morte. Assim, para Freud, a moral decorre do cruzamento entre a culpa originária e as necessidades da ordem social. Foi, com efeito, uma violência ancestral contra o pai que fundou a civilização, de modo que a civilização carrega em seu bojo o ressaibo do parricídio, fardo que tolheria de maneira indefectível o entusiasmo e o desejo. Nietzsche culpando a culpa judaico-cristã pela máxima culpa que nos emascula, volta-se para a Grécia pré-socrática, na qual haveria uma expansão instintiva isenta dos castradores escrúpulos moralizantes que, sob o influxo da herança bíblica, passaram a caracterizar a consciência do Ocidente.

Maria Rita Kehl, ao cabo de sua comparação entre Nietzsche e Freud, toma partido do primeiro, o qual, sem pejo, pugna pela libertação do jugo do pai arcaico, em nome da afirmação da vida, da “vontade de potência”. Tal vontade de potência seria, para Nietzsche, a vontade autêntica, espontânea, isenta dos ressentimentos da consciência moral. Todavia, esse estado de instintiva isenção moral implica violência. E é da essência da violência o defender-se de si própria. Destarte, o “ressentimento” dos moralistas não seria exatamente ressentimento, mas uma maneira de preservar a vida dos ímpetos letais inerentes à própria vida.

O pensador francês René Girard questionou de maneira contundente a idéia de vontade de potência, ao dizer que nem Nietzsche nem mesmo Freud podem nos servir de guias na questão da relação modelo/obstáculo que constitui o desejo humano. Para Girard, o desejo é mimético, ou seja, quando desejamos, imitamos um modelo. O modelo por excelência é o pai e a Lei, que é a consagração e coarctação de sua figura, que, sem ela, apareceria como um monstruoso rival massacrante, porquanto, em sendo um modelo, o pai e/ou a Lei é um obstáculo, pois, se devemos ser como o modelo, ele, fatalmente, é nosso rival. Nesse diapasão, Girard julga que o nosso guia na perscrutação da disjuntiva constituição do desejo é Kafka, o qual reconheceu a ausência de Lei – ou a Lei enlouquecida – como “o verdadeiro fardo que pesa sobre os homens”. Não seria, pois, a Lei a responsável pela alienação humana. De acordo com o citado pensador francês, o ressentimento, que Nietzsche reserva aos fracos, esforçando-se para distinguir esse ressentimento de um “desejo verdadeiramente espontâneo” é, na verdade, tipicamente moderno e denota a ignorância moderna no que diz respeito às raízes violentas e miméticas do desejo, bem como no que tange à imperiosa necessidade de se controlar essa violência, essa guerra de todos contra todos, essa rivalidade que contagia a todos e que suscita o clamor pela Lei.

O assunto deste ensaio é Paulo. As linhas acima são, pois, uma digressão visando fornecer um arcabouço para perscrutar a evitabilidade ou não do dualismo paulino. Já falamos de dualismo e de dualidade. A dualidade seria uma disposição anímica de sadio assentimento, isento, pois, do tal ressentimento diante da multifacetada condição humana. Aquele que encara de maneira destemida e franca a dualidade, fazendo uma acareação entre persona e sombra, conciliando de modo estável os opostos, liberta-se do “dualismo”, o qual subsiste quando essa conciliação não é viabilizada pela “força de vontade”. Assim como René Girard diz que o modelo é um obstáculo, Paulo diz que a carne milita contra o espírito. Nas duas visões, persiste um dualismo que qualquer concepção conciliadora da dualidade rechaçaria como mórbida, ressentida.

Voltemos, pois, ao célebre trecho da epístola de Paulo aos romanos que diz que há uma relação modelo-obstáculo entre o homem e a Lei. Citamos o trecho: “Sabemos que a Lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado. Realmente não consigo entender o que faço; pois não pratico o bem que quero, mas faço o que detesto. Ora, se faço o que não quero, eu reconheço que a Lei é boa. Na realidade, não sou eu que pratico a ação, mas o pecado que habita em mim. Eu sei que o bem não mora em mim, isto é, na minha carne. Pois o querer o bem está ao meu alcance, não porém o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero. Ora, se eu faço o que não quero, já não estou agindo, e sim o pecado que habita em mim.” Este trecho vem precedido do seguinte: “Que diremos pois? É a Lei pecado. De modo nenhum. Mas eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da Lei: pois não teria eu conhecido a cobiça, se a Lei não dissesse: ‘não cobiçarás’. Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, despertou em mim toda a sorte de concupiscência (...)” Ao fim de sua divagações a respeito da Lei e do pecado, Paulo exclama: “Desventurado homem sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” E conclui que mesmo que na mente seja um pio servo da lei de Deus, “segundo a carne” é “escravo da lei do pecado”.

Abordando tal passagem, o psicanalista francês Jacques Lacan encara-a como um perfil exato do caráter problemático do desejo, cerne das preocupações de Lacan. Para o psicanalista francês, o desejo não é coisa simples, de natureza animal, nem plena de sentido, de índole arquetípica, mas um contínuo encadeamento de significações, no qual há uma metafórica substituição de elementos significativos, que carrega esta vida de poesia e de angústia, pois o “obscuro objeto do desejo”, transitando de um significante a outro, seria, em si, opaco – intransitivo. Enleado à Lei que o engendra, o desejo imbui-se do histérico desígnio de destruir a Lei.

Se a Lei, como assevera o apóstolo Paulo, diz o que devemos ou não devemos fazer (“não cobiçarás”), é também devido à Lei, diz Lacan, seguindo Paulo, que “nos proíbe de ficar com a mãe”, que ela passa a ser desejável, “pois, no final das coisas, a mãe não é em si o objeto mais desejável”. Sentencia o psicanalista de maneira paulina: “desejamos através da proibição”. Neste ponto, a posição de Lacan é basicamente a mesma de René Girard: a Lei é o modelo do desejo. Modela-o, mas obstaculiza-o.

Com efeito, à revelia da nossa boa vontade, o desejo é dualista, causa e efeito de dilemas inúmeros: nossa miséria que nem mesmo os panos quentes da nossa inveterada mediocridade conseguem aplacar.

Introdução
A Detração de Nietzsche
Dualidade e Dualismo
O Reverso da Medalha
Entre a Lei e a Graça
Um Legado, Dentro e Fora do Templo
O Caminhante de Damasco e Sua Sombra
Bibliografia