O apóstolo Paulo é visto por Nietzsche como um ser “ardoroso, sensual, melancólico, maligno no ódio”, que, sendo um fanático guardião de Deus e de sua Lei, fez uma descoberta aterradora: “não podia ele próprio cumprir a lei, e até mesmo, o que lhe parecia mais estranho: que sua extravagante sede de dominação era constantemente incitada a transgredi-la e que ele tinha de abrir mão desse aguilhão.” Fazendo um exercício de antipática empatia com o apóstolo, o filósofo penetra na escrupulosa consciência paulina e põe estas palavras em sua boca: “É tudo vão! O martírio da lei não cumprida não pode ser superado.” Toda a vida e obra de Paulo, para Nietzsche, estaria pautada por uma sede de domínio: primeiro, empenhada em cumprir a Lei e, depois, arvorando o Crucificado – o Cristo e sua vergonhosa morte – em “aniquilado da lei”, Paulo, “o doente da altivez torturada” empenhou-se em encontrar uma saída, uma desvairada saída da Lei. Ao se fazer “um” com Cristo, Paulo e todo cristão estariam revelando em toda a sua extensão uma “irrefreada sede de dominação” projetada em falsos esplendores divinos.
Utilizando-se de uma concepção sanitarista de ciência, eis diagnóstico que Nietzsche dá de Paulo e do cristianismo do qual o apóstolo seria o “inventor”: “De fato não se é filólogo e médico sem ser também, ao mesmo tempo, anticristão. Pois quem é filólogo lê atrás dos ‘livros santos’, quem é médico, atrás da depravação fisiológica do cristão típico. O médico diz ‘incurável’, o filólogo, ‘trapaça’...”
Paulo era um cidadão romano, porém judeu de origem. O que significava o seguinte: sendo de um povo orgulhoso de suas origens, povo que se dizia o “povo eleito por Deus”, estava submetido ao Império Romano. Roma era a potência mundial na época de Cristo e Paulo; tinha um papel análogo ao que desempenham hoje os Estados Unidos da América. Dando crédito à análise de Nietzsche, poderíamos dizer que Paulo teria alguns traços de caráter que também atribuímos a uma liderança política de um país periférico no mundo contemporâneo, ou seja, alguém que, tendo acesso ao conhecimento e aos bens que um império – no caso, do império norte-americano – proporciona, é, todavia, alguém “marginal” por sua origem e, por isso, ressentido, sequioso de vingança, com vontade de aniquilar a “Lei” à qual está submetido.
A comparação de Paulo com uma liderança política periférica hodierna, certamente, tem algo de verdadeiro, contudo, sob qualquer ponto de vista, a psicologia paulina é mais complexa e profunda, ultrapassando contingências nacionais e programáticas, já que a envergadura cultural do fenômeno Paulo é infinitamente maior, fundador do cristianismo, Paulo é também um dos fundadores do Ocidente.
Mesmo que não concordemos com a análise de Nietzsche sobre o apóstolo, vale a pena determo-nos nela.
Nietzsche, embora tenha morrido alienado, sempre posou de alienista. As invectivas sanitaristas e eugênicas do pensador alemão contra o apóstolo cristão tem como objeto as famosas cartas de Paulo. Quando o autor de Zaratustra verbera contra o suposto antagonismo entre cristianismo e ciência, ele tem em mente o seguinte trecho da epístola de Paulo aos cristãos da cidade grega de Corinto: “porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus. Porque está escrito; ‘Destruirei a sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligência dos inteligentes.’ Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o inquiridor deste século? Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação. Porque os judeus pedem sinal e os gregos buscam sabedoria. Mas nós pregamos Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gregos. Mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, lhespregamos a Cristo, poder de Deus, sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. Porque, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados. Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes e Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são; para que nenhum carne se glorie perante ele. Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção. Para que como está escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.”
Essa plena simpatia pela fraqueza faz Nietzsche enxergar no cristianismo Paulino a máxima expressão da morbidez, do ódio dos fracos contra os poderosos, os vigorosos, aqueles que, de fato, vivem a vida em toda a sua intensidade. Ao indagar-se sobre aquilo que é bom, Nietzsche responde: “Tudo que eleve no homem o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência.” Em contrapartida, o filósofo considera ruim “tudo que advém da fraqueza”. Fazendo dos fracos os escolhidos por Deus, Paulo representaria “o que é ruim”. A bondade compassiva selecionaria os mais fracos em detrimento dos mais fortes: essa seleção “desnaturada” sobrepujaria a “seleção natural”, na qual são os mais fortes que sobrevivem. Disse Paulo: “quando sou fraco, sou forte”. O pensador vê nessa “força” do apóstolo a manifestação do mais pernicioso niilismo.
Para a mentalidade estritamente contemporânea, já fruto do estabelecimento, até institucional, de certos valores, o discurso de Paulo pode soar como reacionário: preconizava a obediência ao governo, a submissão da mulher ao marido e do escravo ao seu senhor. Com efeito, é possível fazer crítica ao pensamento do apóstolo tendo em vista certas conquistas da civilização humana. Não é, porém, este o caráter das críticas que Nietzsche faz a Paulo. Ao contrário dos críticos apressados de Paulo, Nietzsche entenderia que o igualitarismo que ora se volta contra o apóstolo tem a sua origem no cristianismo do qual Paulo seria o inventor. O núcleo do igualitarismo contemporâneo, sem paralelo no mundo pagão antigo, estaria no culto à fraqueza erigido por Paulo, que também disse que, em Cristo, não haveria nem judeu nem grego, nem homem nem mulher, mas todos seriam um – em Cristo. Ora, a religião pagã era eminentemente cívica e tribal, excetuando o budismo, que, aliás, não fala em deuses, até então, os deuses eram locais e não universais. Assim, reiteramos, as críticas mais freqüentes a Paulo advêm de uma herança compartilhada com o apóstolo, ou seja, Paulo, querendo-se universalista, ainda pecaria por uma falta de universalismo, por ter um pensamento excludente.
Nietzsche coloca numa mesma bacia cristãos, democratas, capitalistas, socialistas, feministas, pacifistas e todas as facções que perfazem o panorama ideológico e idealista do Ocidente. Nessa bacia as águas estão sujas, como em tudo aquilo que é humano. Mas nessa bacia banha-se o Menino-Jesus. Nietzsche jogando fora a água suja, joga fora também o bebê. Se retirarmos o igualitarismo e a fraternidade que lastreiam a nossa liberdade, essa também sucumbirá. Assim, eis a fatídica conclusão do “livre” pensamento de Nietzsche: ao fim e ao cabo, não há liberdade, mas forças, forças menores, forças maiores – forças, forças tão-somente. Mesmo aí, Nietzsche não faz mais que repetir o conceito de “servo-arbítrio” formulado pelo seu compatriota, o paulino Martinho Lutero, que, rebatendo o livre-arbítrio, dizia que sempre somos servos de algo e que, assim, não haveria, em última análise, livre-arbítrio. Se formos todos servos, então, não existe uma casta de senhores, a não ser pela imposição impostada de uma moral aos supostos escravos.
Como se vê, o pensamento de extração paulina, sem subestimar ou superestimar a liberdade, dá-lhe a exata dimensão, aquela que faz par com a igualdade essencial de cada ser humano e da fraternidade que tal igualdade deve suscitar, para além da inevitável e salutar emulação que grassa e deve grassar entre os homens.
Com efeito, as invectivas de Nietzsche contra Paulo são uma pirotecnia retórica que, de modo algum, fazem jus ao cabedal que pelo apóstolo nos foi legado. Todavia, a bem da verdade, é preciso que se diga que há alguma procedência na crítica nietzschiana no que concerne à “psicologia gnóstica” da alma paulina.
|