Falamos em “psicologia gnóstica”, cabe agora, pois, dizer o que é o gnosticismo.
O gnosticismo era um movimento que, tendo florescido nos séculos II e III da era cristã, possuía raízes no neoplatonismo e no pitagorismo. Para o gnosticismo, existem dois deuses. Um é o criador imperfeito, o demiurgo, o Jeová do Velho Testamento, o qual criou este mundo de imperfeição e sofrimento. O outro deus, porém, por compaixão, dotou os homens com uma “centelha divina”, que lhes dá a capacidade de sair, ainda que de maneira precária, da imperfeição deste mundo, porquanto, no gnosticismo, o dualismo é absoluto: matéria e espírito são praticamente incomunicáveis. Se o mundo, criado por Jeová, é mau, Cristo, de acordo com certas linhas gnósticas, não veio em carne e nunca assumiu um corpo físico nem foi sujeito a fraquezas e emoções humanas.
Como o próprio nome do movimento gnóstico indica, o homem libertar-se-ia deste mundo material e mau mediante o conhecimento (Gnose).
O pensamento de Paulo diverge frontalmente do gnosticismo, na medida em que não distingue o Deus do Velho Testamento do Deus do Novo Testamento nem nega que Cristo tenha encarnado num corpo físico e partilhado das fraquezas humanas. Ademais, Paulo, ao contrário dos gnósticos, não colocava o conhecimento como a porta da salvação, considerando a fé – e o amor que a acompanha – como aquilo que leva o humano ao divino. Por quê, então, sua psicologia seria gnóstica? Pelo dualismo, pela divisão maniqueísta entre bem e mal, que acaba levando à repressão de uma expressão perene da psique humana, a qual Jung chamou de sombra, que é parte da personalidade que se contrapõe aos padrões morais de que se imbui o ego de cada um de nós. Considerando, à guisa de exemplo, os Dez Mandamentos, poderíamos dizer que, se não houvesse a possibilidade de cometermos homicídio, roubo ou adultério, não haveria a necessidade do “não matarás”, do “não roubarás” e do “não adulterarás”. Assim, se seguimos os Dez Mandamentos, o que eles excluem permanece incluído na sombra.
Paulo tem plena ciência da ambigüidade da alma humana, de sua dualidade, como se verifica em um famoso trecho de sua CartaaosRomanos: “Sabemos que a Lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado. Realmente não consigo entender o que faço; pois não pratico o bem que quero, mas faço o que detesto. Ora, se faço o que não quero, eu reconheço que a Lei é boa. Na realidade, não sou eu que pratico a ação, mas o pecado que habita em mim. Eu sei que o bem não mora em mim, isto é, na minha carne. Pois o querer o bem está ao meu alcance, não porém o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero. Ora, se eu faço o que não quero, já não estou agindo, e sim o pecado que habita em mim.”
E, na carta aos cristãos da Galácia, Paulo assim se expressa: “Ora, eu vos digo, conduzi-vos pelo Espírito e não satisfareis os desejos da carne. Pois a carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito, contrárias à carne (...) As obras da carne são manifestas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, rixas, ciúmes, ira, discussões, discórdia, divisões, invejas, bebedeiras, orgias (...) Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio (...)”
A dualidade admitida por Paulo não o faria, porém, assumir esse “lado escuro” como um inevitável componente da natureza dual e multifacetada da alma humana. Ao menos, é essa a opinião do analista junguiano e reverendo anglicano John A. Sanford, o qual entende que a atitude de Paulo de Tarso, no que se refere ao lado escuro da alma, é radicalmente diferente da atitude de Jesus Cristo.
O problema, adverte Sanford, consiste numa “identificação unilateral com o lado claro, e a repressão do lado escuro”, pois, o esforço de apenas dar margem ao lado claro somente reforça a divisão interna da psique, fazendo da sombra a nossa inimiga. Paulo seria, de acordo com Sanford, “quase sempre antagônico à emoção. Sua tendência é ver a ira, o desejo sexual e as sensações eróticas como mal. Desde que as emoções se originam no corpo, isto é, são acompanhados por mudanças psicológicas mensuráveis, isso acarreta uma rejeição da natureza física da criação humana.”
Além da rejeição da natureza física do homem, Paulo, para Sanford, colocaria o homem “numa situação intolerável”, pois, para Paulo, não só as ações, mas as próprias emoções e fantasias são encaradas como um mal. Neste diapasão, “o ruim não é justamente a expressão da raiva, mas a raiva em si mesma; não exatamente uma vida sexual promíscua, mas as próprias fantasias sexuais, que provêm de Satã.”
Na nomenclatura de Jung, o pólo oposto e complementar da sombra é o arquétipo denominado persona. Persona, em latim, quer dizer máscara, designava a máscara usada pelos atores do teatro da Grécia e da Roma antigas. Assim, psicologicamente, podemos representar a persona como a parte mais externa do nosso psiquismo: aquela que nós queremos que outros vejam em nós. Apersona, pois, funciona como um meio de relacionamento com a vida e com as pessoas. Assim como a persona dos atores grego-romanos, a persona arquetípica de que fala Jung não é mera aparência ou impostura, mas “pode ser o órgão da personalidade através do qual expressamos certas coisas a respeito de nós mesmos para os outros.” Quando, por exemplo, numa festa alguém se veste com as suas melhores roupas, isso não significa necessariamente que esse alguém está tentando esconder o ser verdadeiro eu, mas, sim, expressando melhor um lado seu e se relacionando com os outros de uma maneira pessoal e sincera.
Como se vê, a persona não é um problema em si mesma, mas passa a ser um problema quando julgamos que a persona representa a nossa personalidade como um todo monolítico e eliminamos quaisquer outras facetas do nosso ser. Quando há uma identificação total com a persona, adverte John A. Sanford, o contato com a sombra é perdido, e a repressão da sombra não soluciona a questão, mas, ao contrário, ocasiona a divisão interna.
Já Jesus, para o citado autor, procurava manter o homem em contato com a sombra e também buscava uma “conciliação” com ela, conservando a liberdade do indivíduo. A trilha traçada por Cristo, segundo Sanford, seria a da individuação, no sentido junguiano do termo, ou seja, um movimento de desenvolvimento espiritual que implica conscientização a partir do contato com as forças inconscientes. Paulo, por sua vez, permaneceria na exigência de que as pessoas fossem simplesmente boas, não se importando com o grau de inconsciência e alienação que essa “bondade” acarretava. Tal atitude eliminaria, mediante irrefletidos padrões morais, a liberdade humana.
Sanford, fazendo uma “interpretação psicológica” da famosa ParáboladoFilhoPródigo contada por Cristo, assevera que “se apenas agirmos com cuidado e proteção na vida, nunca chegaremos a saber quem somos; a vida é para ser vivida na totalidade se quisermos nos tornar íntegros, e é melhor sermos perdoados do que sermos auto-justificados”. Como se sabe, a ParáboladoFilhoPródigo é a história de um homem que tinha dois filhos. O mais novo pediu ao pai a parte da herança que lhe cabia e dissipou tudo o que herdou numa vida devassa e começou a passar privações. Voltou então à casa paterna. O pai recebeu o filho pródigo com beijos e abraços e festejou a volta do filho. Mas o filho mais velho, que jamais transgredira uma só dos mandamentos do pai, ressentiu-se do fato de que o pai nunca lhe havia dado um cabrito sequer para que ele festejasse com seus amigos, mas havia matado um novilho cevado para saudar o filho mais novo, que devorara todos os bens do pai com prostitutas. O pai, porém, disse ao filho mais velho: “Meu filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Era preciso que festejássemos e nos alegrássemos, pois o teu irmão estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi reencontrado!’” De acordo com essa interpretação de índole psicológica, todos teríamos, dentro de nós, um ‘irmão mais velho”, o qual obedece cegamente as expectativas do bom senso comum e segue a tendência social à mediocridade. Temos, também, um “irmão mais novo”, um lado sombrio, que, à revelia das regras, quer “viver”. Embora dar vazão ao lado sombrio traga conseqüências catastróficas, pode também trazer a consciência, que possibilita a salvação, a totalidade e a reconciliação – simbolizada pelo pai amoroso – , entre a sombra rebelde, personificada pelo irmão mais novo, e a persona socialmente conformada, encarnada pelo irmão mais velho.
A crítica feita pelo reverendo Sanford a Paulo, dentro de uma perspectiva cristã, é basicamente a mesma que a feita pelo filósofo anticristão Nietzsche. Em sua acerba invectiva contra o cristianismo, Nietzsche poupa a figura de Cristo, como alguém ingênuo, louco, sublime, mas considera Paulo como um pervertido, malicioso, um ressentido sequioso de poder, em suma, alguém investido de uma persona cuja sombra, como um monstro, assomava projetando uma inveterada estratégia de domínio. Assim como Nietzsche, Sanford louva o caminho individual – que seria o de Cristo – em detrimento do coletivo, que seria o de Paulo. Corolário de tal visão é o menosprezo das instituições e a entronização do Indivíduo como a categoria justa para compreender o humano.
No tocante a Paulo, creio que as críticas podem ser válidas. Contudo, a entronização do Indivíduo, em detrimento do coletivo, pode ter um vezo estetizante que obliteraria uma dimensão ética propriamente dita. Por motivos óbvios, essa obliteração é mais clara em Nietzsche do que em Sanford. É, pois, necessária uma incursão no “reverso da medalha”.
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