Mário Dirienzo
"PAULO: ENTRE A LEI E A GRAÇA"

Um Legado, Dentro e Fora do Templo

Seria desnecessário falar sobre a importância de Paulo para a teologia e a história das igrejas. Paulo forneceu o alicerce doutrinário e institucional da igreja primitiva e seu pensamento acompanhou o desenvolvimento e as dissensões no bojo do cristianismo. Impossível, por exemplo, entender a Reforma Protestante, a “querela das indulgências” e a doutrina de justificação pela fé de Lutero sem referência a Paulo e sua epístolas.

A história do cristianismo confunde-se com a história do Ocidente. Contudo, a história do Ocidente também é a história da secularização. A secularização é um processo de transformação no qual a sociedade vai deixando de se identificar plenamente com as instituições religiosas, havendo um declínio da religiosidade como vigência social, cuja expressão mais clara é o Estadosecular, no qual há uma separação entre o governo e as instituições religiosas, e a base da autoridade do Estado reside nas leis feitas pelos homens e não em doutrinas religiosas. Neste diapasão, a secularização faz com que a religião seja mais uma escolha individual do que uma obrigação social e que a autoridade para certas questões da existência humana seja procurada fora da religião. Assim, assuntos como o controle da natalidade seriam, de acordo com a mentalidade secular, melhor equacionados e resolvidos por médicos e psicólogos e por uma política de saúde pública do que por sacerdotes e por doutrinas religiosas.

Sob certo aspecto, a secularização é um processo moderno e ocidental. Decorre do racionalismo e do individualismo ocidentais, que equacionam a questão da liberdade como as escolhas feitas pelo indivíduo ou pelos grupos sociais sem o controle de uma instância externa como a Igreja ou o Estado. Entretanto, como tudo, a secularização têm raízes que remontam aos alvorecer da consciência do Homem. Assim, se considerarmos a secularização como uma tendência a limitar a influência do divino no humano, tal tendência existe mesmo nas sociedades mais primitivas. Damos, pois, novamente a palavra ao antropólogo, crítico literário e pensador francês René Girard. “Acreditamos não existir nenhuma sociedade que não tenha emergido do sagrado.” Nós, “modernos”, acreditamos que as “sociedades primitivas” vivem no “sagrado”, mas para Girard “nenhuma sociedade pode viver no ‘sagrado’; vale dizer, na violência. Viver em sociedade é escapar da violência – certamente não numa verdadeira reconciliação, que responderia imediatamente à pergunta ‘o que é o sagrado?’, mas num menosprezo sempre tributário, de um modo ou de outro, da própria violência.”

Para o autor acima citado, o sagrado está estritamente ligado à noção de violência e sacrifício ritual. A supressão do sacrifício conduziria, pois, à violência em suas formas mais intensas, até mesmo nas sociedades ditas “desenvolvidas”, isto é, equipadas com técnicas jurídicas, políticas e científicas para neutralizar os conflitos. Em síntese, René Girard coloca na arena dos conceitos a respeito das origens da nossa Cultura e suas instituições a polêmica idéia de que a violência seria um componente naturaldas sociedades humanas, apaziguada somente pelo sacrifício de vítimas expiatórias. A função do sacrifício seria, ao condensar a violência numa só vítima, impedir a explosão de conflitos.

Na esteira das idéias de Girard e fustigando a “metafísica da luz” da helenização do Ocidente, cujo corolário seria o Iluminismo, o pensador italiano Mauro Maldonado rechaça “aquelas ideologias que haviam estabelecido a nova certidão de nascimento da civilização com a DeclaraçãodosDireitosdoHomem”, uma vez que, para Maldonado, a “tradição iluminista de tolerância” “conserva o desprezo pelo outro e simplesmente o tolera – no máximo o aceita.” Deveras!, a alteridade violenta do sagrado é suprimida pelo processo de secularização e, por isso, mantida enquanto violência.

Em meio a essa perpétua violência ancestral cujo corolário apaziguador, para Girard e Maldonado, seria o sacrifício, aparece Paulo, que, segundo Nietzsche, o seu maior detrator, seria o arauto desse “sacrifício de um inocente para remir os pecados dos culpados”, desse “paganismo arrepiante”, ou seja, Nietzsche coloca Paulo como aquele que erige, não a moral e a vitalidade da virtude, mas a tétrica cruz do sacrifício de Jesus como o cerne da crença cristã.

As questões que agora assomam e que tem íntima conexão com a trajetória teológica de Paulo são, pois, as seguintes: o caráter violento do sagrado, que implica o sacrifício, as “declarações de direitos” e a “secularização” como um universalismo infenso à problemática sacrificial do sagrado.

Se a secularização deste nosso mundo democrático e tecnológico triunfa, o que terá o apóstolo Paulo a ainda nos dizer? Como acima foi dito, o processo de secularização é ambíguo e, embora tenha se exasperado a partir da era moderna, tem raízes antigas. Se é problemática a fixação do conceito de secularização, é igualmente de difícil conceituação a idéia de sagrado. O sagrado, aquilo que supera a disponibilidade humana, para René Girard, sob o ponto de vista antropológico, é, em essência, a violência: de um homem contra outro; de todos contra todos ou – como solução sacrificial – de todos contra um. Podendo ser visto como o ser no seu cerne, o sagrado pode também ser encarado sob o prisma psicológico ou estético: a sensação de maravilhamento e horror provocada em face do imponderável. Mas, como estamos reiterando ao longo deste trabalho, o viés estético-psicológico tende a camuflar um ethos fundamental, que revela toda a tragédia da civilização, a qual contém no seu ventre a “barbárie”, não apenas como um resíduo a ser extirpado pelos ímpetos civilizadores, mas, contrariando os pruridos da sensatez, como o verdadeiro e indômito combustível de tais tendências de domesticar. Destarte, o grande “recalque” da civilização seria a violência. A “Lei” e as “declarações de direitos”, coercitivas que são, pressupõe a violência, a qual, “violentamente” escamoteiam.

A violência, “ritualizável” e geradora de ritos, se gerou a Lei, pode, também, ensejar a “desativação da Lei”. Nessa desativação da Lei, o pensador italiano Giorgio Agamben enxerga a essência do Messiânico, o qual, para Agamben, tem em Paulo a sua figura maior. Para o autor de HomoSacer, o messianismo, seja ele judaico, cristão ou muçulmano, consiste na consumação – abolição – da Lei com a vinda da Messias. Assim, o Messias seria uma figura “transgressiva”: o “cumprimento” completo da Lei equivaleria ao aniquilamento da Lei. Neste mesmo diapasão, Agamben insere Paulo nessa “tradição messiânica”. A inserção de Paulo dentro do Messiânico no trabalho de Agamben é uma continuação da obra do rabino e filósofo alemão Jacob Taubes, o qual se definiu como um “paulino não-cristão”. Taubes enfatiza o ethos judaico de Paulo e encara a teologia paulina como subversivae política, contrária às leis farisaicas ou romanas, as quais engloba no conceito grego traduzido pelo termo nómos. Contrariamente à concepção grega de mundo, que afirma o cosmos como uma unidade e regido por leis universais que devem ser descobertas pelos seres humanos, na perspectiva do rabino, Paulo operaria uma revolucionária reversão de valores. Taubes enfatiza o fato de Paulo ter reduzido os dez mandamentos a um só: “ama o teu próximo como a ti mesmo” como uma mudança de paradigma na qual o mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas é englobado no amor ao próximo, havendo, por isso, um rebaixamento do Pai ao nível do humano com a divinização do Filho, Jesus Cristo. O freudiano pai arcaico – cuja expressão máxima seria o patriarcal Deus do Velho Testamento – daria lugar ao humano Deus encarnado, crucificado, dentro das alegrias e tristezas humanas.

Na esteira dessa idéia, Giorgio Agamben disse que, para Paulo, Cristo, sendo a finalidade (o alvo) da Lei, também, era o fim (o término) conforme se depreende da leitura do verso 4 do capítulo 10 da CartaaosRomanos, no qual é usado o termo grego telos, que significa tanto término quanto alvo. Sendo Cristo o término, a “consumação” da Lei, Agamben entende o Messiânico como um estado de exceção anárquico, caracterizado por uma “instabilidade normativa”.

O messianismo que está na Bíblia e teria Paulo como a sua maior figura, também está na Cabala, no marxismo e até no além-de-bem-e-mal nietzschiano. Para os cabalistas, citados por Agamben, a Lei que o Messias irá restaurar “não contém preceitos e proibições, mas é somente uma miscelânea de escritos sem ordem”. A vinda do Messias será um “Estado de Exceção”, mas oposto a um Estado totalitário, na medida em que a exceção excetua-se da própria soberania da Lei, pois, como dizem os cabalistas, o cumprimento da Lei coincide com a sua transgressão. Imbuído de insights afins, o poeta inglês William Blake, foi arrebatado por “Uma Fantasia Memorável”:

 

“‘... Se Jesus Cristo é o maior dos homens, deverias dedicar-lhe o máximo amor. Ouve agora como ele sancionou a lei dos dez mandamentos: não desprezou ele o sábado, desprezando assim o Deus do sábado? Não matou os que foram mortos por sua causa? Não desviou a lei da mulher apanhada em adultério? Não roubou o trabalho dos outros para que o sustentassem? Não deu falso testemunho ao omitir sua defesa perante Pilatos? Não cobiçou quando orou por seus discípulos e lhes pediu que sacudissem o pé de suas sandálias diante dos que se negavam a recebê-los? Pois eu digo: nenhuma virtude pode existir sem a quebra desses dez mandamentos. Jesus era todo virtude, e agia por impulso, não por regras.’”

 

Neste mesmo diapasão, vale à pena trazer à colação a sublime “Lenda” de Jorge Luis Borges, uma miscelânea cabalístico-messiânica, que colocar o primordial homicídio nas plagas do Paraíso. Ei-la:

 

Abel e Caim encontraram-se depois da morte de Abel. Caminhavam pelo deserto e reconheceram-se de longe, porque os dois eram muitos altos. Os irmão sentaram-se na terra, acenderam um fogo e comeram. Guardavam silêncio, à maneira da pessoa cansada quando declina o dia. No céu assomava alguma estrela, que ainda não havia recebido o seu nome. À luz das chamas, Caim percebeu na fronte de Abel a marca da pedra e deixou cair o pão que levavaà boca e pediu que lhe fosse perdoado o seu crime.

Abel respondeu:

– Tu me mataste ou eu te matei? Já não me lembro; aqui estamos juntos como antes.

– Agora sei que em verdade me perdoaste – disse Caim –, porque esquecer é perdoar. Eu procurarei também esquecer.

Abel falou devagar:

– Assim é. Enquanto durar o remorso, dura a culpa.

 

 

Tais visões memoráveis e interpretações contemporâneas de Paulo, matizada por um messianismo anárquico com até laivos niilistas, contrastam com certas linhas das cartas do apóstolo, carregadas de preceitos e proibições, nas quais há expressões que chocam as pessoas que, hoje em dia, poderíamos chamar de “politicamente corretas”. Com efeito, nas epístolas paulinas há pregação da submissão às autoridades, aceitação da escravidão, patriarcalismo, machismo e até “homofobia”. Eis algumas passagens que não seriam nada “libertárias” Rom., 13, 1: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas.” Ef., 5, 22 e 6, 5: “As mulheres sejam submissas a seus próprios maridos, como ao Senhor”. “Quanto a vós outros, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne com temor e tremor, na sinceridade do vosso coração, como a Cristo.” Rom., 1, 26-27: “Por causa disso os entregou Deus a paixões infames; porque até as suas mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas, por outro contrário à natureza. Semelhantemente, os homens também, deixando o contacto natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo em si mesmos a merecida punição do seu erro.”

Talvez a chave interpretativa dessas questões esteja em Pascal, o qual, sem nenhuma superestimação pelos costumes, diz que nós devemos nos “bestificar”, isto é, aceitar os costumes, não por serem eles verdadeiros, mas porque são convenções que nos ajudam a viver e conviver. Assim, em Pascal ou em Paulo, o que importa não é a objetividade do costume e sim a disposição que se tem ao obedecê-lo ou não. Conhecida é a cética opinião de Pascal em relação à Justiça: “Engraçada essa justiça que um riacho limita! Verdade aquém dos Pirineus, erro além.” Corrobora tal “relativismo” pascaliano, paulino e cristão, o comentário do filósofo protestante francês Paul Ricoeur, o qual, ao comentar Romanos, 13, 1-7, que prega a obediência às autoridades como uma forma de obediência a Deus, entende que, no caso, Paulo não estaria advogando o “direito divino” dos governantes sobre os súditos, mas, sim, falando da oportunidade e da conveniência de se obedecer às autoridades, porquanto “tudo me é permitido, mas nem tudo convém. Tudo me é permitido, mas eu não deixarei dominar por coisa nenhuma.” (1 Co. 6:12), pois, em primeira e última instância, vale para todos o que Paulo disse aos cristãos da Galácia: “não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gal. 3:28). Não há nómos helênico ou judaico. Buscando sair fora do fundamentalismo, Ricoeur acredita que há uma pluralidade de sentidos no texto bíblico, ou melhor, um “transbordamento” do excesso que flui do interior do texto. A má resposta a esse excesso seria ater-se à estreiteza e a precariedade dos vasos que recolhem as águas da fonte eterna.

A trilha traçada por Taubes e Agamben no entendimento de Paulo – e também por Rudolf Bultmann e pelo acima citado Paul Ricoeur – distancia-se daquilo que poderíamos denominar “justiça platônica”, isto é, inexiste uma adequação grega entre a physis e o nómos que propicie leis universais para o comportamento humano e a ocorrência dos demais entes. Todavia, a universalidade é uma tônica dominanteno pensamento de Paulo. Que universalidade é essa que não decorre da Natureza – physis – nem da natureza intrínseca de cada coisa? Surge, pois, o momento de introduzir um outro nome de capital importância na nossa discussão: o pensador francês Alain Badiou, o qual tem Paulo como o “fundador do universal”. Para o referido pensador francês, embora gregos e chineses tivessem idéias universais, a universalidade destes era diferente da fundada por Paulo, pois se para eles a universalidade vinha de que era inerente aos entes, em Paulo ela advém do “Evento”, categoria da filosofia de Badiou.

Baseado em postulados matemáticos, Badiou separa ser e evento, o âmbito do que “há” e do que “acontece”. O ser – o que há – e o que acontece, embora indissociáveis, estão separados. O que é relativo ao ser, a ordem “ontológica”, é acessível ao conhecimento e caracterizada pela multiplicidade. Para Badiou, o ser é a justaposição de indivíduos e o pano de fundo dos particularismos. É a situação. Há, por outro lado, aquilo que produz a verdade dessa situação e que emerge de uma maneira contingente, sem predicados, indemonstrável, isto é, no horizonte do conhecimento sempre impossível. O Evento exige uma “proclamação” e pertence ao reino da unidade ou singularidade, contrastando com a multiplicidade dos indivíduos e seus particularismos, que compõem o reino do ser. O que se requer de quem se compromete com o Evento é um ativo e inconsciente engajamento, sem o qual o Evento corre o risco de ser pervertido, isto é, “ontologizado”, reduzido aos elementos do ser e, daí, trivializado.

O cristianismo aparece na obra de Badiou como o paradigma do Evento, pois todos os parâmetros da doutrina do Evento já estariam na morte do Filho na cruz e na sua “fabulosa” ressurreição. Badiou apresenta-se como um ateu, que não estaria interessado no conteúdo da ressurreição, mas, sim, em sua estrutura, a qual ele neutraliza e seculariza. Diz Badiou: “é rigorosamente impossível acreditar na ressurreição do Crucificado.” A Ressurreição, como qualquer Evento, “não é um argumento nem uma realização. Não há nenhuma prova do Evento nem é o Evento, em si mesmo, uma prova.” O projeto de Badiou é imanentizar o Evento proclamado por Paulo.

A leitura de Paulo feita pelo pensador do Evento, conectando-se com a de Jacob Taubes e Giorgio Agamben, os quais vêem a contemporaneidade de Paulo na sua crítica ao Império Romano, a qual seria um paradigma para a contemporânea luta contra a crise política e ética que assola o mundo de hoje.

Como se depreende das leituras de Paulo feitas por Taubes e Agamben e Badiou, mesmo que não se concorde com todos os termos do entendimento que eles têm do apóstolo, a complexidade do pensamento paulino não poderia ser reduzida a alguns traços de sua psicologia maniqueísta e, supostamente, conformista, tampouco a uma sacerdotal tirania diante de um rebanho pusilânime.

À violência do sagrado, configurado no Pai, Paulo responde com a Ressurreição do Filho: “Deus tornou-se humano a fim de que o humano torne-se Deus” (Badiou). Ao desencantamento advindo da secularização o Evento messiânico proclamado pelo apóstolo rebate com a transformação deste “século”, deste mundo. Ao particularismo faccioso e ao universalismo abstrato, Paulo apresenta uma concepção paradoxal na qual um povo – judeu, grego etc – nunca coincide com ele mesmo, mas tem o seu ser num tempo que permanece – uma iminência.

Assim, a EstradadeDamasco é seguida por uma virtualidade, uma latência: uma “sombra”, informe, tanto farisaica quanto pagã, tanto messiânica quanto niilista. Trilhemos, pois, este caminho.

Introdução
A Detração de Nietzsche
Dualidade e Dualismo
O Reverso da Medalha
Entre a Lei e a Graça
Um Legado, Dentro e Fora do Templo
O Caminhante de Damasco e Sua Sombra
Bibliografia