No primeiro dia de férias o despertador, finalmente em descanso, permitiu deixar o sono correr, sem pressa de acabar…
Os olhos abrem lentamente e vagueiam pelo quarto numa visão nova, como se aquela casa fosse um estranho acabado de chegar:
No tecto de madeira clara, passeando, silhuetas toscas de reis e rainhas em jogos de sedução em direcção ao palácio de cristal;
Junto da cama, a mesinha de cabeceira transparece em mil e um buracos abertos ao longo do ano por minúsculos animais, que hoje resolveram roer soltando decibéis, atordoando o ar e abanando partículas suspensas de uma teia de aranha, onde duas moscas se debatem em duelos inglórios;
Pela porta entreaberta do armário espreitam modelos retro, tamanho XL, ombros descaídos, atitude aborrecida e, na gaveta do fundo, um pêlo eriçado de raposa tenta fugir assustado de uma multidão de meias, cuecas e lenços de assoar;
Gemidos abafados vindos da escada, atravessam o corredor exalando um odor algo bolorento: sapatos de Inverno e algumas pantufas deformadas, abraçam as galochas vermelhas, numa mistura caótica, agonizante, soterradas por sapatilhas de marca, sapatos de verniz e aquelas botas de cabedal castanho usadas em tempos na subida a Monsanto.
Na escrivaninha, pilhas de CD escorrem fotos do ano anterior, misturando paisagens com panfletos publicitários que anunciam o último grito em lingerie feminina.
O peitoril da janela entorna em câmara lenta, restos de incenso no tapete cinzento, abrindo crateras incandescentes que volatilizam e sobem num ápice até à cama, fazendo-me subitamente saltar daquele mundo esquisito, entre altos gritos e algumas gargalhadas.
Eram crianças vizinhas, que na calçada corriam no seu primeiro dia de liberdade e que me arrancavam assim, daquela série de quadros de um surrealismo surpreendente e me deixavam finalmente acordar.
Teriam estas visões, alguma coisa a ver com a minha visita à exposição de Coimbra* na semana passada?
Independentemente dessa relação, eu, que sempre gostei de decoração moderna e até minimalista, vejo-me agora no primeiro dia de férias ansiando a chegada do final do ano, para numa velha tradição inglesa atirar pela janela este sem número de confusões e talvez retomar aí o equilíbrio das paredes.
Vou começar mas é já e pôr mãos à obra com vassoura, pá e imensos sacos para o lixo.
Mas, inexplicavelmente, começo a sentir saudades da luz bruxuleante do candeeiro no meio da sala, daquele jarrão antigo meio esbocelado, do meu modelito florido e até das meias de liga super chiques que rompi naquela noite ao sair do carro. E a cristaleira onde guardo chinesices, que fica tão bem junto ao fogão? Com uma demão de verniz ficará como nova.
Chega de emoções! Preciso sentar-me no sofá, tomar um café, desfolhar alguns catálogos e talvez opte por recomeçar ainda hoje, num actualíssimo estilo Vintage!
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