HELENA FIGUEIREDO:
Arco-íris de papel

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Uma questão de cor

Ninguém conseguia explicar, como é que de pais morenos e de cabelos escuros, vim ao mundo branquinha e de cabelo loiro.

Havia suposições perversas nos olhares, que incrédulos passavam de mim para minha mãe, apontando dedos de calúnia encoberta. Algo de anormal se passara, porque, embora Maria, minha mãe não era santa, nem eu me chamava Jesus.

Naqueles tempos não havia testes de ADN, apenas muitas crianças com linhas em branco, em vez de pai. Não era o meu caso, que tinha um pai adorável e sempre presente e de quem tinha herdado traços fisionómicos que não deixavam margem para dúvidas, mas a cor do meu cabelo marcou-me e, desde cedo, comecei a arquitectar um plano que me ajudasse a desvendar o mistério.

Começando pelo principio e seguindo as leis da sábia natureza, se nasci em Abril teria sido gerada nove meses antes, certamente no mês de Julho, mês que significa calor, sementes maduras, ceifas pela manhã, malhas, recolha do trigo e do centeio e enormes montes de palha enfeixados na laje.

Desperdício era palavra sem sentido, num tempo em que o homem sabia aproveitar tudo o que a natureza lhe dava. Do grão seria feito pão e os montes de palha tisnada pelo sol, serviriam para fazer a cama dos homens e animais e ainda para alimento de algumas espécies ruminantes.

Julho era também o mês do arejo das casas, do despejar dos colchões, dos cobertores lavados no rio, esfregados e batidos de joelhos, na pedra mais lisa, numa cadência suada com som de canção.

A lavagem da roupa começavam bem cedo, quando o sol rompia por entre tufos de erva e agrião. Era o lavar, o ensaboar, o esfregar, o corar, o torcer e finalmente o secar nos silvados e pedras junto do caminho. No regresso à tardinha, a roupa dobrada e ainda quente de tanto sol e com aquele cheiro do verdadeiro lavado, fazia esquecer toda a canseira do dia.

Antes da noite, o colchão estendia-se no chão do terraço e num ritual já bem conhecido de todos, a minha mãe escolhia a melhor palha enchendo de natureza aquele bocado de pano branco e perfumado.

Depois da ceia, ao deitar, algo de mágico inundava o quarto: numa essência afrodisíaca, o cheiro da palha misturava-se com os restos de sol entranhado nos cobertores, toldando a noite e os corpos.

Fui gerada em Julho e hoje finalmente, compreendo bem a cor dos meus cabelos.

Helena Figueiredo nasceu em 9 de Março de 1959, numa pequena aldeia do concelho de Carregal do Sal, distrito de Viseu. É licenciada em Educação de Infância, e desde os 21 anos que trabalha com crianças entre os 3 e os 6 anos. Entre 2003 e 2006 prestou assessoria ao Conselho Executivo do Agrupamento de Escolas de Carregal do Sal.

helena_lopes_m@hotmail.com

Entrada no TriploV: Abril de 2008