As fontes são dádivas do céu postas ao dispor dos homens, sem discriminar ninguém.
Na minha aldeia sempre existiu aquele lugar sagrado, onde todos tiravam a água necessária à vida diária e que alimentava ainda um enorme tanque repleto de limos verdes e coaxos de rã.
Fonte límpida, dos tempos em que a água vinha à cabeça e os cântaros podiam partir.
O murmúrio da água era o único som que brotava das pedras.
Cortado às vezes pelos chinelos de pneu daquela mulher…
Sol ou chuva o cântaro de barro à cabeça, rodilha de pano, olhar perdido e esbugalhado de quem tem do mundo visões um pouco estranhas. Os chamados loucos. Acarretava água para a junta de bois que grandes e possantes bebiam na pia na esquina da casa.
Cortado às vezes pelo andar descoordenado do Zé…
De jarro na mão subia e descia os degraus, para carregar por vezes algumas gotas apenas. Regava o jardim junto ao largo, enchia as vasilhas que embuchavam para a trasfega do vinho.
Rotinas ocupacionais, formas refrescantes de integrar a deficiência.
Chegou também o Juca, um negro oriundo de Angola, de férias em Portugal...
Aparecia pela tardinha, cântaro debaixo do braço, junto aos cedros da casa grande. E com ele aquela música quente, ritmada, batucada no fundo do cântaro, que atravessava as vinhas, batia nas janelas e me acelerava a vontade de água fresca.
Era Verão. Da bica corria apenas um fiozinho, aumentando o tempo do nosso encontro. Eu comecei a adorar o cheiro da cor do café, ele provou o gosto dos morangos.
Hoje, a fonte continua lá, límpida, os degraus de pedra, a água jorrando incontrolável. Se antes alimentava toda a aldeia, hoje globalizou-se e não há ninguém que não a conheça. Filas de garrafões esperam diariamente para encher. Ninguém decretou ainda para quem a prioridade da água e decerto nunca irá ser necessário.
Sei a melhor hora para a visitar, quando o murmúrio da água é o único som que brota das pedras. E aí, desço os degraus, sento-me no banco e oiço perfeitamente uns chinelos de pneu, o andar descoordenado do Zé e aquele batuque africano vindo do lado dos cedros da casa grande.
Que pena já não ser Verão!
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