O crer foi sempre, para o homem, a grande viagem ao desabrigo
dos códigos e uma prática da diferença. É verdade que a crença
incide sobre as "coisas jamais vistas pelo homem" (1 Cor, 2,9), mas
é igualmente verdade que não veríamos nada se primeiro não
acreditássemos. Sem a fé, não podemos ver; sem a vista, a fé é
impossível. Só o possível se pode ver; é por isso que vemos utopias
como realmente possíveis, num espaço coremático existencial
(mesmo se, estritamente falando, não existem). A visão é a
modalidade suprema da cognição, o que é confirmado pela intuição
perfeita do Ser Supremo pelos místicos. As origens do crer relevam
do auditivo, como lembra o Apóstolo: lides ex auditu (Rm 10, 17);
contudo o acto modal do crer está ligado ao visual (Jacob Mey).
Permanentemente a crença oscila entre o seu momento instituinte
(poético) e o seu momento instituído (pragmático, ideológico).
Trata-se de definir, antes de mais, o espaço da crença, e disso trata
Moisés Martins, ligando-se a crença à descrença e à fé (Bento
Domingues). O que aproxima o crer do sacrifício - o lugar feito ao
outro através do dom tem valor de convenção com o outro. Na
ordem do reconhecimento, o crer seria o equivalente do que é o
sacrifício na ordem das práticas. O crer funda as instituições e as
linguagens, as contratualidades e os dogmas. "A crença e a razão
estão empenhadas num corpo-a-corpo medonho - e fazem ferida"
(M.G. Llansol). Como fazer face à eterna luta entre os "afectados"
e os "indemnes", os ortodoxos e os heréticos? Abel Pena ilustra
perfeitamente essa situação aplicada ao caso Juliano. O destino normal duma representação transmitida é transformar-se, não
replicar-se (Sperber). Estudar a propagação duma representação
mental privada como uma crença é estudar a circulação duma
entidade que tem todos os traços duma ficção produzida para a
interpretação. João Mário Grilo ensina-nos a ouvir o cinema, não
como uma máquina de sonhos, mas como um acontecimento. "Cada
crença tem necessidade de todo um mundo de outras crenças para
ter um conteúdo e uma identidade" (Davidson). Uma crença tem
uma estrutura holística. Ana Luísa Janeira introduz-nos no espaço
em que a ciência e a crença partilham visões, decisões, estratégias.
O textualismo (que é uma representação mental pública) é uma
patologia da textualidade: como abordar uma ética da linguagem?
J. A. Mourão demora-se na descrição daquilo que é a contratualidade
e a violência da linguagem. As crenças partilham-se. Aqui tem o
leitor a que reagir, a que responder. Na liberdade ecuménica da
leitura. |
fr. José Augusto Mourão.op |
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