OUVIR O CINEMA
João Mário Grilo

No princípio não esteve o Verbo.

Falar dos primeiros sons do cinema, é falar de quase tudo menos, quase sempre, de palavras: é falar, primeiramente, no ruído do projector, é falar, depois, na música - de piano ou de orquestra e, às vezes, mesmo cantada - que acompanha, em regra, cada sessão; é falar, por fim, nos múltiplos ruídos das salas, quase sempre recintos mal adaptados ao silêncio quase religioso que impera, hoje, nos nossos cinemas-estúdio.



Até 1927, ouvir um filme era, pois, escutar um universo desprovido do som da palavra e, sobretudo, partilhar o sentimento de comunicar para além dela. Ouvir um filme era assim, sobretudo, vê-Io, como o provam as múltiplas declarações a esse respeito, por exemplo, Louis Delluc, em 1917, a propósito de Jeanne d'Arc de Cecil B. deMille:

"Vi a cadência...tudo vive - e segundo um ritmo imposto. Como na sinfonia, onde cada nota procura a sua própria vitalidade. Mesmo quando submetidos a uma linha geral, todos os planos, todas as luzes e sombras se movem, se decompõem ou reconstituem, seguindo a necessidade de uma potente orquestração".

No mundo cinematográfico da altura, o som parece, sobretudo, residir no interior da própria imagem (daí, justamente, que não se posssa falar de um cinema mudo, mas surdo). O som vê-se, através do ritmo, e através da sua PERCEPÇÃO.

VISIONAMENTO DE EXCERTOS DOS FILMES
O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR, DE DZIGA VERTOV
E NAPOLEON, DE ABEL GANCE
 

É, pois, esta paisagem extremamente particular e extremamente experimental na história da comunicação estética que se altera, brutalmente, a partir de 1927, com a institucionalização industrial e comercial do chamado "cinema sonoro".

Esta história, no entanto, é bem mais complicada e menos definitiva do que à primeira vista - ao primeiro ouvido - poderia parecer. Não fosse assim e, em 1931, Chaplin não teria filmado da forma que iremos ver as primeiras palavras do seu cinema (num filme onde, aliás, ele próprio se manteria silencioso até ao fim - City Lights - tendo mantido este sarcasmo sobre a palavra cinematográfica bem pelos anos 40, com The Great Dictator).

 
VISIONAMENTO DE EXCERTOS DOS FILMES
CI7Y LIGHTS E THE GREAT DITACTOR, DE CHARLES CHAPLIN
 

Da mesma forma, na Rússia soviética, Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov escreveram, logo em 1928, no célebre manifesto sobre o sonoro:

"Só um uso contrapontual do som na sua relação com o fragmento de montagem visual potenciará novos desenvolvimentos e aperfeiçoamentos da montagem. O primeiro trabalho experimental com o som deve ser dirigido para a sua não-sincronização com as imagens visuais. E só uma abordagem deste tipo será capaz de dar a necessária palpabilidade que mais tarde tenderá para a criação de um contraponto orquestral entre as imagens visuais e auditivas"

 
VISIONAMENTO DE UM EXCERTO DO FILME
IVAN O TERRÍVEL, DE EISENSTEIN
 

Em suma, o contexto de surgimento do tal cinema sonoro - que talvez seja melhor chamar de cinema falado ou cinema síncrone - é tudo menos um contexto natural, uma data no irreversível caminhopara o progresso das técnicas de representação cinematográfica. O som cinematográfico do período clássico, o cânone que estrutura a banda sonora, obedece, pelo contrário, a uma ordenação precisa e implacável que não é, curiosamente, a da conjugação entre um som e uma imagem, mas a do terror pela sua irremediável separação. Ouvir um filme no período clássico é, sobretudo, seguir os complicados e laboriosos processos de sincronização material e labial entre a voz e o corpo, e à qual todo o universo sonoro do filme se escraviza.

 
VISIONAMENTO DE UM EXCERTO DO FILME
SINGIN'lN THE RAIN, DE STANLEY DONEN E GENE KELLY
 

O que estou a tentar mostrar, portanto, é que não é possível contar a história da relação entre o som e o cinema exclusivamente com base no formato clássico dessa relação, e que no próprio contexto de emergência do sonoro se abre uma dupla perspectiva: uma primeira linha, industrial e institucional, que se centra nos problemas da sincronização dos elementos da representação cinematográfica - do que se vê no écrã -, estabilizando uma série de convenções tecnológicas e assegurando o princípio da sua repetição e generalização; uma segunda linha, muito mais rica na minha perspectiva e, principalmente, muito menos censurada, que se fixa, sobretudo, na sincronização dos sentidos de quem percebe essa representação. No primeiro caso, temos a melodia, a consonância, a sinfonia, a mistura; no segundo, a harmonia, a dissonância, o contraponto, a polifonia e a montagem.

Contra a obsessão vococentrista do cinema clássico e falado, perfila-se, então, a possibilidade de um verdadeiro cinema sonoro e moderno. Contra a sincronização, a composição, contra o naturalismo da representação, o realismo - por vezes brutal - da presença dos materiais que a possibilitam. É, de certa maneira, uma possibilidade de prolongar esse mal-entendido do cinema mudo - que nunca procurou disfarçar o seu mutismo, adaptando romances literários e, até, conhecidas peças de teatro - que Benjamin Fondane expressou nos seguintes termos:

"Cada vez que a palavra toma conta do real, pela sua própria existência e natureza, afirma; nenhuma dúvida é possível sobre o que ela quer e o que está ali a fazer, sobre os valores que ela procura impor -nos. Qualquer mal-entendido é suprimido...precisamente esse mal entendido que fazia a força e a originalidade do cinema mudo. A liberdade da montagem fica ameaçada, porque o diálogo está ali, inamovível, irredutível, suspenso sobre a imagem como uma ameaça."

O que há portanto a criticar ao filme sonoro convencional é o seu conformismo, a sua quase completa ausência de ideias genuinamente sonoras e uma falta total de qualquer vontade de risco e experimentação, dimensões que são habitualmente investidas pelos tecnólogos e pela sofisticação do apetrechamento técnico, em termos de fidelidade sonora. Pensado nestes termos, o cinema sonoro, o cinema síncrone, fez do som uma forma -entre outras -de realizar as suas ambições naturalistas. E daí que a palavra tenha tomado a dianteira sobre tudo o resto. Ouve-se o que se vê, num complexo audiovisual, sem qualquer complexidade ou concepção, registado à altura do homem. Em contrapartida, o verdadeiro cinema sonoro olhou o som não como uma forma de adicionar uma nova dimensão a uma imagem muda, de a libertar do seu mutismo, mas como um meio de problematizar a imagem, impondo entre coluna sonora e coluna visual um princípio de tensão fundamental.

Em suma, a ideia de cinema sonoro implica a evidência de um imaginário sonoro. Um imaginário que - passe o paradoxo da afirmação - estava já realizado (e de que forma) no próprio cinema mudo.

Nesta relação de tensão problemática, instável, experimental entre som e imagem, a música desempenha o mesmo papel fundamental que já havia desempenhado nas décadas de 10 e 20, quando uma grande parte dos cineastas e da crítica olhavam, justamente, a referência musical como um meio de libertar as formas do cinema dos constrangimentos romanescos do teatro e da literatura. Ainda há pouco vimos, por exemplo, como para Eisenstein as questões do contraponto e da polifonia foram sempre essenciais para pensar -para compõr e montar -a arquitectura orgânica de um cinema em ruptura total -e politicamente justificada -com o modelo americano da indústria de Hollywood. Aliás, nos seus métodos de montagem, a música é sempre o paradigma de referência: lembro aqui as cinco categorias dos Métodos de 1938: montagem métrica, rítmica, tonal, harmónica e intelectual. Nesta concepção, a música não é mais uma dimensão a acrescentar à coluna sonora, mas uma referência abstracta que permite pensar, verdadeiramente, a totalidade do filme. Montar não é ligar um plano a outro, é articular as várias linhas melódicas, tonais e atonais, dramáticas e plásticas que formam a unidade de cada plano com o percurso que essas linhas traçam no conjunto de todo o filme. O conceito de montagem vertical, por oposição ao de montagem horizontal, não faz mais que sublinhar esta proximidade entre o trabalho de montagem cinematográfica e o trabalho de composição musical.

Raríssimos cineastas tiveram a possibilidade de reivindicar o estatuto de cineastas sonoros. Poucos filmes, também, nos permitiram escutar essa modernidade cinematográfica. Ouvir um filme moderno seria, assim, nos termos desta exposição, presenciar a própria identidade do som, imaginar a sua partitura e a infinita diversidade das suas formas. Perceber, portanto, o som como novidade e até, por vezes, como uma dolorosa novidade. Falar de cineastas do sonoro acaba por ser falar de um conjunto reduzidíssimo de nomes onde pontificam -por razões muito diferentes, de um ponto de vista estético -autores como Dreyer, Bergman, Bresson, Straub, Rossellini, Antonioni, Rivette, Coppola e, seguramente, Tati e Godard.

Os dois segmentos que iremos ver, em seguida, e que concluirão esta exposição têm a vantagem de dar a perceber, simultaneamente, o quão diferente pode ser o som de dois cineastas e, também, a imensa diferença que o som pode fazer nos respectivos cinemas.

No primeiro segmento -uma curta sequência de Playtime - estamos perante um cineasta que utiliza o som para um trabalho de descrição analítica do quotidiano. O projecto sonoro de Tati passa, de facto, por essa reconstituição de uma partitura do quotidiano em que som e imagem (sobretudo através do décor) se conjugam para dar conta da dimensão desumana desse mesmo quotidiano, que os homens preenchem, mas não estruturam.

O mundo sonoro de Godard -que iremos ouvir através do final de Je vous salue, Marie -é, pelo contrário, inteiramente invadido por uma total desconfiança face a esse mesmo quotidiano, uma desconfiança, digamos, conceptual e política face ao seu aspecto "organizado" .O cinema de Godard é um espelho em que a realidade se reflecte para se desfazer e refazer segundo outros princípios. E será fácil perceber, no curto segmento a que iremos assistir, até que ponto a coluna sonora é responsável por este trabalho de desagregação trágica do real. Para todos os efeitos, e na depressiva situação actual, Godard é a referência fundamental no que diz respeito à montagem do som e à recusa em dissolver as angulações das diferentes colunas sonoras numa orquestração dominada pelos artificiosos e embriagantes recursos da mistura.

Se alguém quiser no futuro saber o que foi o cinema sonoro, era bom que quem contasse essa história a começasse a contar por aqui. Porque, enfim, desde 1960 que Godard não pára de nos fazer ouvir, precisamente, o que o filme sonoro não foi, não foi capaz de ser ou não teve a força suficiente para ser.

João Mário Grilo



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