O que estou a tentar mostrar, portanto, é que não é possível
contar a história da relação entre o som e o cinema exclusivamente
com base no formato clássico dessa relação, e que no próprio
contexto de emergência do sonoro se abre uma dupla perspectiva: uma primeira linha, industrial e institucional, que se centra
nos problemas da sincronização dos elementos da representação
cinematográfica - do que se vê no écrã -, estabilizando uma série de
convenções tecnológicas e assegurando o princípio da sua repetição
e generalização; uma segunda linha, muito mais rica na minha
perspectiva e, principalmente, muito menos censurada, que se fixa,
sobretudo, na sincronização dos sentidos de quem percebe essa
representação. No primeiro caso, temos a melodia, a consonância, a
sinfonia, a mistura; no segundo, a harmonia, a dissonância, o
contraponto, a polifonia e a montagem.
Contra a obsessão vococentrista do cinema clássico e falado,
perfila-se, então, a possibilidade de um verdadeiro cinema sonoro
e moderno. Contra a sincronização, a composição, contra o naturalismo da representação, o realismo - por vezes brutal - da presença
dos materiais que a possibilitam. É, de certa maneira, uma possibilidade de prolongar esse mal-entendido do cinema mudo - que nunca
procurou disfarçar o seu mutismo, adaptando romances literários e,
até, conhecidas peças de teatro - que Benjamin Fondane expressou
nos seguintes termos:
"Cada vez que a palavra toma conta do real, pela sua própria
existência e natureza, afirma; nenhuma dúvida é possível sobre o
que ela quer e o que está ali a fazer, sobre os valores que ela procura
impor -nos. Qualquer mal-entendido é suprimido...precisamente
esse mal entendido que fazia a força e a originalidade do cinema
mudo. A liberdade da montagem fica ameaçada, porque o diálogo
está ali, inamovível, irredutível, suspenso sobre a imagem como uma
ameaça."
O que há portanto a criticar ao filme sonoro convencional é
o seu conformismo, a sua quase completa ausência de ideias
genuinamente sonoras e uma falta total de qualquer vontade de
risco e experimentação, dimensões que são habitualmente investidas
pelos tecnólogos e pela sofisticação do apetrechamento técnico, em
termos de fidelidade sonora. Pensado nestes termos, o cinema
sonoro, o cinema síncrone, fez do som uma forma -entre outras -de
realizar as suas ambições naturalistas. E daí que a palavra tenha
tomado a dianteira sobre tudo o resto. Ouve-se o que se vê, num
complexo audiovisual, sem qualquer complexidade ou concepção,
registado à altura do homem. Em contrapartida, o verdadeiro
cinema sonoro olhou o som não como uma forma de adicionar uma
nova dimensão a uma imagem muda, de a libertar do seu mutismo,
mas como um meio de problematizar a imagem, impondo entre
coluna sonora e coluna visual um princípio de tensão fundamental.
Em suma, a ideia de cinema sonoro implica a evidência de um
imaginário sonoro. Um imaginário que - passe o paradoxo da
afirmação - estava já realizado (e de que forma) no próprio cinema
mudo.
Nesta relação de tensão problemática, instável, experimental
entre som e imagem, a música desempenha o mesmo papel
fundamental que já havia desempenhado nas décadas de 10 e 20, quando uma grande parte dos cineastas e da crítica olhavam,
justamente, a referência musical como um meio de libertar as
formas do cinema dos constrangimentos romanescos do teatro e da
literatura. Ainda há pouco vimos, por exemplo, como para Eisenstein
as questões do contraponto e da polifonia foram sempre essenciais
para pensar -para compõr e montar -a arquitectura orgânica de um
cinema em ruptura total -e politicamente justificada -com o modelo
americano da indústria de Hollywood. Aliás, nos seus métodos de
montagem, a música é sempre o paradigma de referência: lembro
aqui as cinco categorias dos Métodos de 1938: montagem métrica,
rítmica, tonal, harmónica e intelectual. Nesta concepção, a música
não é mais uma dimensão a acrescentar à coluna sonora, mas
uma referência abstracta que permite pensar, verdadeiramente, a
totalidade do filme. Montar não é ligar um plano a outro, é articular
as várias linhas melódicas, tonais e atonais, dramáticas e plásticas
que formam a unidade de cada plano com o percurso que
essas linhas traçam no conjunto de todo o filme. O conceito de
montagem vertical, por oposição ao de montagem horizontal,
não faz mais que sublinhar esta proximidade entre o trabalho de
montagem cinematográfica e o trabalho de composição musical.
Raríssimos cineastas tiveram a possibilidade de reivindicar o
estatuto de cineastas sonoros. Poucos filmes, também, nos permitiram escutar essa modernidade cinematográfica. Ouvir um filme
moderno seria, assim, nos termos desta exposição, presenciar a
própria identidade do som, imaginar a sua partitura e a infinita
diversidade das suas formas. Perceber, portanto, o som como
novidade e até, por vezes, como uma dolorosa novidade. Falar de
cineastas do sonoro acaba por ser falar de um conjunto reduzidíssimo
de nomes onde pontificam -por razões muito diferentes, de um
ponto de vista estético -autores como Dreyer, Bergman, Bresson,
Straub, Rossellini, Antonioni, Rivette, Coppola e, seguramente, Tati
e Godard.
Os dois segmentos que iremos ver, em seguida, e que concluirão
esta exposição têm a vantagem de dar a perceber, simultaneamente, o quão diferente pode ser o som de dois cineastas e, também, a
imensa diferença que o som pode fazer nos respectivos cinemas.
No primeiro segmento -uma curta sequência de Playtime -
estamos perante um cineasta que utiliza o som para um trabalho de
descrição analítica do quotidiano. O projecto sonoro de Tati passa,
de facto, por essa reconstituição de uma partitura do quotidiano
em que som e imagem (sobretudo através do décor) se conjugam
para dar conta da dimensão desumana desse mesmo quotidiano,
que os homens preenchem, mas não estruturam.
O mundo sonoro de Godard -que iremos ouvir através do final
de Je vous salue, Marie -é, pelo contrário, inteiramente invadido
por uma total desconfiança face a esse mesmo quotidiano, uma
desconfiança, digamos, conceptual e política face ao seu aspecto
"organizado" .O cinema de Godard é um espelho em que a realidade se reflecte para se desfazer e refazer segundo outros princípios. E
será fácil perceber, no curto segmento a que iremos assistir, até
que ponto a coluna sonora é responsável por este trabalho de
desagregação trágica do real. Para todos os efeitos, e na depressiva
situação actual, Godard é a referência fundamental no que diz
respeito à montagem do som e à recusa em dissolver as angulações
das diferentes colunas sonoras numa orquestração dominada pelos
artificiosos e embriagantes recursos da mistura.
Se alguém quiser no futuro saber o que foi o cinema sonoro, era
bom que quem contasse essa história a começasse a contar por
aqui. Porque, enfim, desde 1960 que Godard não pára de nos fazer
ouvir, precisamente, o que o filme sonoro não foi, não foi capaz de
ser ou não teve a força suficiente para ser.
João Mário Grilo