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Ora, é exactamente em razão de a crença nos ser dada como uma coisa ou um conjunto de coisas que nos desafia a ver, uma instituição que convoca um saber e uma relação que provoca um dizer, que vou tentar dilucidar algumas brechas do seu regime. O meu primeiro confronto foi com o aforismo que abre o Evangelho de João: "No princípio era o Verbo". Verifiquei então que a fé cristã não vai de uma primeira a uma segunda pessoa, de alguém que viu a alguém que não viu. Vai, sim, de uma segunda a uma terceira pessoa, nem uma nem outra tendo visto. A fé cristã anda sempre de dizer em dizer. Ou seja, nos termos em que a vejo, a fé cristã coloca-se como a re/toma de uma experiência em certo sentido já feita. É esse todo o sentido de rellegere: aquele que acredita lê o que já foi escrito, isto é, lê o que lhe é legado, lê aquilo que lhe é dado. Gianni Vattimo (1998: 8-9) generaliza a toda a experiência religiosa esta ideia de re/toma, presente no acto de rei legere. A fé cristã é então uma palavra que vai de uma segunda a uma terceira pessoa, nem uma nem outra tendo visto. Explicitando melhor, o crente é aquele que ouve uma palavra e lhe faz confiança, seguindo-a e obedecendo-lhe. É nesse sentido que aponta, aliás, a etimologia de obedecer, ob/audire: ouvir uma palavra e tornar-se seu discípulo. O acto de fé como experiência religiosa não remete pois, antes de mais nada, para religare. Religare configura o vínculo institucional que objectiva e oficializa a religião. Essa objectivação e oficialização passa, fundamentalmente, pelo estabelecimento de um corpo de clérigos, que administra a palavra e assim assegura a mediação entre nós e o Outro. Podemos também dizer que o que se joga no acto de fé não é, sobretudo, o horizonte de sentido figurado por religere. Religere figura a natureza subjectiva da experiência religiosa, dá-nos conta de uma disposição interior, alude a um sentimento íntimo (Bastide, 1935: 3; Benveniste, 1969: 270-272). Relegere é a retoma de um dizer que nos foi legado e dado. O crer cristão retoma então um dizer, e fá-lo como o reconhecimento de uma alteridade. Ou seja, ao retomar uma palavra, o crer cristão estabelece uma relação com o diferente, uma relação com o Outro. Não podendo ver o outro face a face (e sendo esta a condição do crente, a de uma perda e a de uma impossibilidade), o crente garante, pela palavra recebida, pela retoma de um dizer, um outro que há-de vir. De maneira que, pela retoma de um dizer, o crente garante o outro em diferido: a insuficiência do presente é compensada por um futuro que não falha. Retomar um dizer significa então fazer confiança a uma palavra que é dita, sendo esta legada e dada. E este reconhecimento, esta confiança numa palavra que é dita, figura a confiança que se deposita em alguém, ou seja, figura o reconhecimento que se faz de um outro. Retomando uma palavra, eu valho-me de um outro, que embora me falte no presente, não tarda estará aí. O acto de acreditar é assim um conhecimento duplamente diferido. Por um lado, confia em alguém que radicalmente falta. Por outro lado, espera alguém que há-de chegar. Há de facto uma não coincidência entre o que nos é dado e o que é recebido. Daí que eu fale de um diferimento. A palavra recebida, o dizer legado, preenche este intervalo. Colocada assim a questão do acto de crer, verificamos que ele não é nem da ordem do ver, nem da ordem do saber. A ordem do saber caracteriza-se pelo valor de verdade que atribuímos a uma proposição, sendo esta a estrutura da frase que faz juízos de verdade e falsidade a propósito do mundo. A crença, entendida como ter crenças, entendida como valor de verdade atribuído a certas representações, é saber e é dogma. No entanto, assim caracterizada, a crença é uma realidade etnocêntrica. Com efeito, os regimes de verdade são históricos, têm condições históricas de possibilidade, de validade e de funcionamento. Esquecer o seu carácter cultural é convertê-los em dogmas. O etnocentrismo como regime dogmático de verdade distribui como posições antitéticas as representações verdadeiras, as nossas (que nos dão os bons objectivos da crença, os objectos dignos de ser obedecidos), e as representações falsas, as dos outros (que nos dão os maus objectos da crença, os objectos que devem ser repudiados). Hoje sabemos bem no que dá a crença que, por sucumbir ao etnocentrismo, se faz dogma: constitui a justificação de toda a espécie de fundamentalismo e de intolerância. Também a ordem do ver se
caracteriza pelo valor de verdade, que neste caso atribuímos, não a certas
proposições, mas a certas coisas e a certos factos. A crença entendida como
ver coisas, entendida como valor de verdade dado a certos factos, não se
afasta da ordem do saber, integra-a mesmo como um saber feito de evidências.
A ordem do ver elimina o compasso de espera de um tempo diferido e impõe-nos
a coincidência imediata entre o dado e o recebido. A ordem do ver unifica o
presente de um modo totalizante. No entanto, assim caracterizada, a crença
não abre a nenhuma alteridade, não reconhece nenhum outro. Uma vez que não
imagina futuro algum, afoga-se no presente. Assim configurada, a crença Na relação sujeito a sujeito, o crer religioso caracteriza-se pela inscrição em nós do tempo do outro, pela inscrição de uma alteridade que não é nem para mim nem para ti, um outro que nem eu nem tu podemos dominar, e que todavia nos garante e estrutura a ambos (2). A abertura ao tempo do outro impede de facto a apropriação. Quando a relação sujeito a sujeito não é estruturada pelo tempo do outro, quando não é garantida por uma diferença inconvertível e inapropriável, acontece o seu estreitamento numa relação dominada entre sujeito {conhecedor) e objecto (conhecido). Caímos, deste modo, na ordem do saber, que é também, como o demonstrei, a ordem do ver. A ordem do saber é a ordem do religare; é objectivante. A ordem do ver pode ser a ordem do religare, e nesse caso ver é saber, ver é conhecimento evidente. Mas a ordem do ver pode ser ainda a ordem do religere. E neste caso, a ordem do ver é subjectivante, no sentido em que é intimista. A ordem do crer, como vimos já, é a ordem do relegere, é a ordem da retoma de um-dizer-que-não-viu, mas que confia, de um-dizer-que-não-sabe, e que todavia conhece pois que espera. A ordem do crer é um dizer que é conhecimento diferido, um dizer que preenche o intervalo existente entre o dado e o recebido, um dizer que é um conhecimento que resiste ao saber. A ordem do crer caracteriza-se assim por um diferimento essencial: anda sempre de dizer em dizer, valendo-se da confiança que faz a um outro. O crer conhece, não porque saiba ou veja, mas porque, aos olhos de quem crê, "o que não é tem ser", como diria o pe. António Vieira. No entanto, o crer religioso furta-se ao simulacro intimista do religere. Embora subjectivante, é comunitário e faz comunidade. É comunitário, uma vez que o dizer de onde parte tem o valor de uma herança recebida, que é colectiva. Faz comunidade, porque consiste numa gestão colectiva da alteridade, ou seja, numa gestão do tempo do outro. Os modos de gestão são garantidos e controlados por regras de comunicação: um conjunto de códigos culturais e uma simbólica social. É verdade que ao referir-me a uma gestão colectiva e a modos de gestão, não podem deixar de ser assinaladas as falcatruas que frequentemente acompanham esta actividade: as manipulações, distorções e abusos. Em todo o caso, ao fazer confiança a um outro, pela obediência a estas regras, o indivíduo tanto sacrifica algumas das suas pretensões, por exemplo a auto-suficiência e a autonomia, como tira proveito delas. As regras garantem-no, equilibram-no, integram-no. Quem faz confiança adquire pelo sacrifício o direito a estar garantido. Não esqueçamos que sacrificar é sacer-facere, o que quer dizer, fazer sentido. A confiança nas regras cauciona-nos, sem dúvida, o futuro. Sintetizando e concluindo esta ideia de associar o crer a um dizer, direi o seguinte, com as palavras de Dumézil: a crença articula um actor, um real e um dizer. Neste circuito comunicativo da crença, a palavra preenche o intervalo (daí o deferimento} entre a perda presente (alguém ou alguma coisa que apenas temos presente porque confiamos nela) e uma chegada que se espera (claro que esperamos alguém ou alguma coisa porque lhe fazemos confiança) . O mecanismo de partida é o mecanismo de chegada: a confiança que fazemos a um outro. |
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