MOISÉS MARTINS
O REGIME DISCURSIVO DA CRENÇA (1)

 

Embora a questão me tenha sido proposta e não resulte propriamente de uma escolha minha, a verdade é que a adoptei e a fiz ressoar em mim como um "fragmento de biografia". Um fragmento de biografia, quero dizer, em sentido foucaultiano, não a narrativa, não a história de vida do crente que eu sou, mas um resultado da "minha própria experiência". Diz assim Michel Foucault: "Sempre que tentei fazer um trabalho teórico, foi a partir de elementos da minha própria experiência, sempre em relação com processos que eu via desenrolarem-se ao meu redor. Era por pensar reconhecer nas coisas que via, nas instituições com que tinha que ver, nas minhas relações com os outros, brechas, abalos surdos, disfunções, que empreendia um tal trabalho - um qualquer fragmento de biografia" (1).

Ora, é exactamente em razão de a crença nos ser dada como uma coisa ou um conjunto de coisas que nos desafia a ver, uma instituição que convoca um saber e uma relação que provoca um dizer, que vou tentar dilucidar algumas brechas do seu regime.

O meu primeiro confronto foi com o aforismo que abre o Evangelho de João: "No princípio era o Verbo". Verifiquei então que a fé cristã não vai de uma primeira a uma segunda pessoa, de alguém que viu a alguém que não viu. Vai, sim, de uma segunda a uma terceira pessoa, nem uma nem outra tendo visto. A fé cristã anda sempre de dizer em dizer. Ou seja, nos termos em que a vejo, a fé cristã coloca-se como a re/toma de uma experiência em certo sentido já feita. É esse todo o sentido de rellegere: aquele que acredita lê o que já foi escrito, isto é, lê o que lhe é legado, lê aquilo que lhe é dado. Gianni Vattimo (1998: 8-9) generaliza a toda a experiência religiosa esta ideia de re/toma, presente no acto de rei legere.

A fé cristã é então uma palavra que vai de uma segunda a uma terceira pessoa, nem uma nem outra tendo visto. Explicitando melhor, o crente é aquele que ouve uma palavra e lhe faz confiança, seguindo-a e obedecendo-lhe. É nesse sentido que aponta, aliás, a etimologia de obedecer, ob/audire: ouvir uma palavra e tornar-se seu discípulo.

O acto de fé como experiência religiosa não remete pois, antes de mais nada, para religare. Religare configura o vínculo institucional que objectiva e oficializa a religião. Essa objectivação e oficialização passa, fundamentalmente, pelo estabelecimento de um corpo de clérigos, que administra a palavra e assim assegura a mediação entre nós e o Outro. Podemos também dizer que o que se joga no acto de fé não é, sobretudo, o horizonte de sentido figurado por religere. Religere figura a natureza subjectiva da experiência religiosa, dá-nos conta de uma disposição interior, alude a um sentimento íntimo (Bastide, 1935: 3; Benveniste, 1969: 270-272).

Relegere é a retoma de um dizer que nos foi legado e dado. O crer cristão retoma então um dizer, e fá-lo como o reconhecimento de uma alteridade. Ou seja, ao retomar uma palavra, o crer cristão estabelece uma relação com o diferente, uma relação com o Outro.

Não podendo ver o outro face a face (e sendo esta a condição do crente, a de uma perda e a de uma impossibilidade), o crente garante, pela palavra recebida, pela retoma de um dizer, um outro que há-de vir. De maneira que, pela retoma de um dizer, o crente garante o outro em diferido: a insuficiência do presente é compensada por um futuro que não falha. Retomar um dizer significa então fazer confiança a uma palavra que é dita, sendo esta legada e dada. E este reconhecimento, esta confiança numa palavra que é dita, figura a confiança que se deposita em alguém, ou seja, figura o reconhecimento que se faz de um outro. Retomando uma palavra, eu valho-me de um outro, que embora me falte no presente, não tarda estará aí.

O acto de acreditar é assim um conhecimento duplamente diferido. Por um lado, confia em alguém que radicalmente falta. Por outro lado, espera alguém que há-de chegar. Há de facto uma não coincidência entre o que nos é dado e o que é recebido. Daí que eu fale de um diferimento. A palavra recebida, o dizer legado, preenche este intervalo.

Colocada assim a questão do acto de crer, verificamos que ele não é nem da ordem do ver, nem da ordem do saber. A ordem do saber caracteriza-se pelo valor de verdade que atribuímos a uma proposição, sendo esta a estrutura da frase que faz juízos de verdade e falsidade a propósito do mundo. A crença, entendida como ter crenças, entendida como valor de verdade atribuído a certas representações, é saber e é dogma. No entanto, assim caracterizada, a crença é uma realidade etnocêntrica. Com efeito, os regimes de verdade são históricos, têm condições históricas de possibilidade, de validade e de funcionamento. Esquecer o seu carácter cultural é convertê-los em dogmas. O etnocentrismo como regime dogmático de verdade distribui como posições antitéticas as representações verdadeiras, as nossas (que nos dão os bons objectivos da crença, os objectos dignos de ser obedecidos), e as representações falsas, as dos outros (que nos dão os maus objectos da crença, os objectos que devem ser repudiados). Hoje sabemos bem no que dá a crença que, por sucumbir ao etnocentrismo, se faz dogma: constitui a justificação de toda a espécie de fundamentalismo e de intolerância.

Também a ordem do ver se caracteriza pelo valor de verdade, que neste caso atribuímos, não a certas proposições, mas a certas coisas e a certos factos. A crença entendida como ver coisas, entendida como valor de verdade dado a certos factos, não se afasta da ordem do saber, integra-a mesmo como um saber feito de evidências. A ordem do ver elimina o compasso de espera de um tempo diferido e impõe-nos a coincidência imediata entre o dado e o recebido. A ordem do ver unifica o presente de um modo totalizante. No entanto, assim caracterizada, a crença não abre a nenhuma alteridade, não reconhece nenhum outro. Uma vez que não imagina futuro algum, afoga-se no presente. Assim configurada, a crença
integra o regime do mesmo e dos seus simulacros. Aliás, quanto mais uma sociedade se esforça por escapar à lei do tempo, menor atenção presta à crença. Passa-se isso hoje connosco, que sonhamos, por exemplo, com uma sociedade da informação apostada em realizar no presente, embora de forma virtual, a biblioteca hipertextual de todos os saberes de todos os tempos.

Na relação sujeito a sujeito, o crer religioso caracteriza-se pela inscrição em nós do tempo do outro, pela inscrição de uma alteridade que não é nem para mim nem para ti, um outro que nem eu nem tu podemos dominar, e que todavia nos garante e estrutura a ambos (2).

A abertura ao tempo do outro impede de facto a apropriação. Quando a relação sujeito a sujeito não é estruturada pelo tempo do outro, quando não é garantida por uma diferença inconvertível e inapropriável, acontece o seu estreitamento numa relação dominada entre sujeito {conhecedor) e objecto (conhecido). Caímos, deste modo, na ordem do saber, que é também, como o demonstrei, a ordem do ver. A ordem do saber é a ordem do religare; é objectivante. A ordem do ver pode ser a ordem do religare, e nesse caso ver é saber, ver é conhecimento evidente. Mas a ordem do ver pode ser ainda a ordem do religere. E neste caso, a ordem do ver é subjectivante, no sentido em que é intimista. A ordem do crer, como vimos já, é a ordem do relegere, é a ordem da retoma de um-dizer-que-não-viu, mas que confia, de um-dizer-que-não-sabe, e que todavia conhece pois que espera. A ordem do crer é um dizer que é conhecimento diferido, um dizer que preenche o intervalo existente entre o dado e o recebido, um dizer que é um conhecimento que resiste ao saber.

A ordem do crer caracteriza-se assim por um diferimento essencial: anda sempre de dizer em dizer, valendo-se da confiança que faz a um outro. O crer conhece, não porque saiba ou veja, mas porque, aos olhos de quem crê, "o que não é tem ser", como diria o pe. António Vieira. No entanto, o crer religioso furta-se ao simulacro intimista do religere. Embora subjectivante, é comunitário e faz comunidade. É comunitário, uma vez que o dizer de onde parte tem o valor de uma herança recebida, que é colectiva. Faz comunidade, porque consiste numa gestão colectiva da alteridade, ou seja, numa gestão do tempo do outro. Os modos de gestão são garantidos e controlados por regras de comunicação: um conjunto de códigos culturais e uma simbólica social.

É verdade que ao referir-me a uma gestão colectiva e a modos de gestão, não podem deixar de ser assinaladas as falcatruas que frequentemente acompanham esta actividade: as manipulações, distorções e abusos. Em todo o caso, ao fazer confiança a um outro, pela obediência a estas regras, o indivíduo tanto sacrifica algumas das suas pretensões, por exemplo a auto-suficiência e a autonomia, como tira proveito delas. As regras garantem-no, equilibram-no, integram-no. Quem faz confiança adquire pelo sacrifício o direito a estar garantido. Não esqueçamos que sacrificar é sacer-facere, o que quer dizer, fazer sentido. A confiança nas regras cauciona-nos, sem dúvida, o futuro.

Sintetizando e concluindo esta ideia de associar o crer a um dizer, direi o seguinte, com as palavras de Dumézil: a crença articula um actor, um real e um dizer. Neste circuito comunicativo da crença, a palavra preenche o intervalo (daí o deferimento} entre a perda presente (alguém ou alguma coisa que apenas temos presente porque confiamos nela) e uma chegada que se espera (claro que esperamos alguém ou alguma coisa porque lhe fazemos confiança) . O mecanismo de partida é o mecanismo de chegada: a confiança que fazemos a um outro.

 

 

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