CRENÇA, DESCRENÇA E FÉ CRISTÃ (1)
Bento Domingues

 

1. Que se pretende, afinal, com este tema? Não consegui perceber muito bem o que me era pedido. A indeterminação excessiva do tema não me ajuda a escolher uma perspectiva e a delimitar um campo de trabalho. Prefiro questões menos englobantes, especialmente num panorama religioso tão flutuante como é o actual. Como diria Ortega y Gasset, "Lo que pasa es que no sabemos lo que nos pasa y esto es precisamente lo que nos pasa!"

2. Falar da morte de Deus, da secularização, do desencantamento e reencantamento do mundo, do retorno do religioso ou do sagrado, do rumor dos anjos, da deslocação da religião, da religião "a Ia carte", da recomposição do religioso, etc., é uma forma de confessar que não existe nenhum modo de descrever, explicar e compreender o mundo actual que possa desfazer-se da crença e da descrença.

Talvez se possa dizer que para a fé cristã, há tantas oportunidades e obstáculos no mundo antigo, estruturado a partir da religião, como no mundo moderno organizado em nome do homem. Para a fé cristã, mundo encantado ou mundo desencantado, são apenas desafios diferentes. O desencanto que resulta do processo de racionalização, laicização, diferenciação e democratização também tem os seus encantos!

Paradoxalmente, a pós-modernidade é fruto, em parte, da descrença na ideologia do Progresso e na possibilidade de uma resposta racional a todos os enigmas da vida humana. Mas isto não significa uma oportunidade para a fé cristã melhor do que outras. A dinâmica da ciência e das novas tecnologias impõe um tal ritmo de mudanças que engendra um clima geral de insegurança. Cada indivíduo, entregue a si próprio, sem outra instância reguladora que não seja a do próprio gosto e interesse está condenado a procurar na feira das crenças as salvações que o reino dos negócios ajuda a multiplicar.

Sobre este ponto, há imensas publicações que se repetem. Recomendo o estudo bem informado de Bemardo Fueyo Suarez (Cf. "Crisis de creencias y nuevas demandas religiosas", em "Ciencia Tomista", 125, 1998, 59-106"). Sobre o termo "crenças", veja-se a "nota final", n.o 17 desta exposição.

 

3. Os chamados "mestres da suspeita" (sobretudo Nietzsche, Marx e Freud) tornaram os seus propósitos de transparência universal uma pura ilusão. Se, como diz a Bíblia, não se pode ver a Deus sem morrer, também ninguém pode pretender sondar o fundo do coração humano sem tropeçar na noite.

Sem ficções, para indagar o mistério do mundo, a razão enlouquece. A crença e a fé cristã -no combate à descrença - procuraram ser, durante muito tempo, o tribunal da filosofia, da ciência, da política, da ética e da estética. Com a modemidade - isto é, com o direito e o dever do ser humano de pensar e julgar por si mesmo - a crença e a fé cristã passaram de acusadoras a acusadas. A descrença também percorreu esse caminho. Paradoxalmente, a fé cristã, começou por ser, tanto para a religião judaica como para a sabedoria grega, um escândalo e uma loucura, uma fraqueza, uma debilidade, uma fé num salvador crucificado. Crucificado pelos interesses da crença, pela religião oficial e pela razão de Estado (I Cor 1-2; 2 Cor 12,9-10).

S. Justino dizia que os cristãos eram ateus: não acreditavam nos deuses.

 

4. Mas, afinal, de que falamos, quando nos referimos a crença, descrença e fé cristã? Estabelecer um léxico para esta conferência seria pretensioso e ridículo. Para desilusões, podem consultar a reputada enciclopédia ENAUDI. No contexto português, "crença" /"crenças" raramente pode servir para designar atitudes e convicções de fé ortodoxa, isto é, fé regulada por uma Igreja institucional, mediante doutrinas teológicas e normas canónicas. Na maioria dos casos, quando se fala de crença ou crenças, evoca-se o mundo do irracional, das superstições, da magia.

Da fé cristã, da "verdadeira religião", por infidelidade, pode-se voltar às crenças, às superstições. Estamos, assim, perante atitudes, práticas e enunciados contrapostos. Esta oposição é feita pela Instituição reguladora do crer. É ela que diz o que está certo e o que está errado. Ela interessa-se pela verdade dos enunciados objectivos, pela verdade das crenças.

A situação mudou como já dissemos (Cf n° 2). Estamos na era do relativo, do fluido, do pluralismo, da individualização e da desinstitucionalalização do crer. Cada um crê no que lhe apetece ou interessa e conforme lhe interessa (Cf Patrick Michel, "Les itinéraires de croire aujourd'hui", in "Homo Religiososus", Paris, Fayard, 619-624).

Mas não sejamos precipitados nesta oposição. Eu fui criado num contexto sincretista: cada pessoa, conforme as suas necessidades espirituais e materiais, escolhia o que precisava na religião ancestral, na religião popular - também objectivamente sincrética -, no rígido catolicismo oficial e nas diversas devoções que fossem aparecendo. Tudo isto se passava num universo religioso que contava com os seus libertinos e irreverentes.

 

5. Martinho de Dume, no séc. VI, estabelece na "Instrução Pastoral sobre Superstições Populares (Qg correctione rustícorum, 16, traduzida, anotada e editada por Aire A. Nascimento, Lisboa, Cosmos, 1997) a distinção entre crenças boas e crenças más e o bom método para se livrar do demónio e da magia, obra do diabo. Porque se trata de um documento exemplar e de alcance muito mais vasto do que a situação da diocese de Braga - o que se pode ver pela ampla recepção textual - vou transcrever uma passagem onde é bem marcada a distinção entre crenças pagãs e a fé cristã expressa no Credo e no Pai Nosso:

"Como é que alguns de vós, que renunciaram ao demónio e aos seus anjos, e aos seus cultos e às suas obras más, agora voltam ao culto do diabo? Pois acender velinhas a pedras, a árvores e a fontes, e pelas encruzilhadas, o que é isso senão culto ao diabo? Observar adivinhações, augúrios e dias dos ídolos, que outra coisa é senão cultuar o diabo?

"Observar Vulcanalias e Calendas, ornar mesas, pôr louros, fazer observâncias do pé e derramar grãos e vinho no fogo, sobre um tronco ou tirar com pão para a fonte, que outra coisa é senão culto do diabo? As mulheres invocarem Minerva no tear, e observarem o dia de Vénus para o casamento, e atenderem ao dia em que se sai para viajar, que outra coisa é senão culto do diabo? Fazer encantamentos de ervas para malefícios e invocar os nomes dos demónios com encantamentos, que outra coisa é senão culto ao diabo? E há muito mais que seria demorado enumerar.

"Eis que tudo isto fazeis depois da renúncia ao diabo, após o baptismo, e, tornando ao culto dos demónios, e às más acções da idolatria, já violastes a vossa fé e já rompeste com o pacto que fizestes com Deus.

"Deixaste de lado o sinal da cruz que recebeste no baptismo e apegais-vos a outros sinais do diabo, por aves e espirros e muitas outras coisas. Porque é que a mim, ou a qualquer outro cristão praticante, não faz mal um augúrio? Porque, onde tiver primazia o sinal da cruz, o sinal do diabo não é nada.

"Porque vos faz mal a vós? Porque desprezais o sinal da cruz e receais aquilo que vós próprios preparaste como sinal. Do mesmo modo pusestes de lado o encantamento sagrado que é o símbolo que no baptismo recebestes e que é Creio em Deus Pai omnipotente e a oração dominical, isto é, Pai nosso que estais nos céus, atendesvos a encantamentos e ensalmos do diabo.

"Quem quer que despreze o sinal da cruz de Cristo e volte a olhar para esses sinais, já perdeu o sinal que recebeu no baptismo.

"O mesmo se passa com aquele que se atém a outros sortilégios congeminados por magos e homens de mal; ao sortilégio do símbolo santo e da oração dominical que recebeu com a fé de Cristo, já perdeu e calcou aos pés a fé de Cristo, pois não se pode cultuar ao mesmo tempo a Deus e ao diabo'.

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