Desde a Idade Média predominou um saber motivado pela
expectância e uma transmissão centrada no ouvir. A acção de
comentar e o produto resultante, o comentário, estavam juntos,
sempre que se tratava de realizar a logística de querelas teológicas
ou de disputatios universitárias. O pregador e o professor tendiam a
controlar o que outros poderiam ouvir e ler. cabendo às autoridades
religiosas e pedagógicas a função de propor aos demais o ob-audire.
Se ler correspondia a captar sintaxes e intepretar semânticas
escondidas, se o contemplar propunha a acção, as analogias,
circuitos de semelhança entre visível e invisível, estavam para o
cosmos, como as metáforas para o discurso textual. As homologias
de essência especulativa abusavam do somatório de epítetos, seriação
infinita de significantes articulada pela supremacia da escrita.
Contudo, a interpretação podia enfermar, por vezes, de conivências supérfluas e menos experienciadas. A multiplicação de hipérboles
e redundâncias, a proliferação de metonímias e imagens eram
figuras recorrentes do sistema, intervindo como elementos fundamentais de uma táctica, enquanto formas de poder e formas de
poder no estilo. Táctica ao serviço de um programa que tinha como
finalidade última uma moral espartilhada: apesar de diferenciarem
a palestra académica da pregação, ambas eram meios auxiliares
das tabelas de valores, visando comportamentos sociais precisos e
condutas estipuladas. A argumentação, entendida como modo de
despique intelectual e demonstração, baseava-se no mesmo espírito:
urge treinar a mente para assentir e é preciso debater para julgar
o bem fundado de uma tese. A arma verbal, o processo retórico e
o testemunho dos clássicos integravam-se em ritos, onde a
transmissão do saber apelava para a omnipresença de autoridades.
Veiculado por argumentos, o saber estava ao serviço de uma lógica
mantida por imperativos de adequação entre sujeito e objecto.
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O humanismo renascentista começa a separar o ler = comentar
controlado do ler = interpretar marcas incontroláveis. Nessa altura,
o princípio da semelhança permitia uma estrutura cognitiva entre
idênticos: justaposição de simpatias e antipatias, proximidades
topológicas, parentescos nos efeitos.
O jogo gnosiológico começa a abrir-se: o ouvir e o ler,
pertencentes a uma configuração de natureza empírica, vão permitir,
através de uma organização menos intimista, discursos envolvendo
uma fonte de conhecimentos baseada no olhar e ver. Apesar de
terem em comum o facto de estarem associados ao empírico, o
ouvir-ler pressupõe uma receptividade dogmatizada em face das
autoridades, incluindo a tradição clássica, ao passo que o olhar-ver
comporta uma percepção imediata do mundo sensível. Embora
diferentes, porquanto este último faz actuar canais cognitivos
orientados para a realidade exterior e envolvente, ambos fazem
parte do mesmo sistema, pois são regulados por princípios
aproximados e implicam-se mutuamente, como termos da relação
espontânea, imediata, sensorial e perceptiva.
Com as Descobertas, surgiu o primeiro grande confronto com as
geografias longínquas, os povos misteriosos, os costumes estranhos,
as faunas exóticas e as floras desmesuradas. Insuspeitadas
sensações e secretas vivências que o próprio poder político
aproveita e maneja com acerto, como quando Dom Manuel
maravilha a Europa, mandando animais, nunca vistos, na sua
célebre Embaixada ao Papa. O vivido provoca uma disponibilidade
completamente i(nova)dora, onde se nega o ensinado ou aprendido
nos livros, por estarem os olhos a descobrir, sem rodeios, o outro e o
diferente: "E digam lá os sábios da Escritura que segredos são estes
da Natura» !!! Navegantes, naturalistas, missionários, viajantes e
feitores questionam manuais e autor(idad)es, com base no que vêem: «0 saber de experiência feito». Experiência, anote-se. Quase nunca
ou raríssima experimentação. Quando voltam ao país de origem, os
portugueses não tentam, ou se tentam desesperam, combater o
poder instituído e o saber universitário, em prol da mudança. A
Reforma Pombalina só virá muito tarde e a más horas (1772). Isso
não significa que não passe por aqui, indiscutivelmente, o maior e
mais surpreendente contributo ibérico, no sentido de criar condições
necessárias à emergência das ciências modernas, por meio de gestos
contra o saber livresco.
Depois, outros começam a manifestar interesse pela obra
cartesiana, mais pela Meta física do que pela Física: a evidência,
sustentada por regras, serve para apoiar demonstrações dedutivas
válidas; a dúvida metódica é vencida pela intuição clara e distinta, o
e-video. Logo, é preciso saber distinguir e descriminar. Se essa
manifestação significa um repúdio do aristotelismo, mundo sensual,
quotidiano e de qualidades ocultas, não deixa de vir mesclada com
muitos equívocos e hesitações, a tal ponto que continua a cohabitar
com teses do pensamento adversário, mesmo sem dar conta das
distâncias.
Paralelamente, começam a aparecer prenúncios do desejo de
nomear e ordenar através de quadros, visando uma realidade capaz
de ser descrita, figurada e comparada. A urgência de encontrar
nome adequado para os seres vivos, a necessidade de identificar as
propriedades curativas dos medicamentos, o imperativo de perceber
como é o mundo natural, quotidiano ou exótico, supõem um olhar
atento e prevenido, ou seja, o ver. A situação é sentida como nova.
Alguns principiam a dar-se conta de quanto esta atitude exige
mecanismos de mudança. Vão socorrer-se das assembleias
académicas como espaços propícios a saberes norteados, não pela
capacidade especulativa de cada um, como acontecia desde os
Antigos, mas nas potencialidades da razão, como é próprio dos
Modernos. Neste sentido, o «olhar orientado» vai distanciar-se do
«simples olhar», pois passa a reunir categorias de representação
do visível, onde o movimento opera segundo um pensamento
propenso para a observação e dirigido para as «semio-logias». O
que requer actividades imperativamente sistemáticas, encenadas
por teatros anatómicos, precisando de bom equipamento. Não se
suponha, porém, que esta intenção de disponibilidade equivale a
qualquer tipo de observação tecnicamente controlada, mas mais a
um simples contentar-se com uma atitude propensa ao olhar,
contentar-se com o que se olha, já por si, uma novidade.
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