Três
objectivos presidiram à viagem, implicados na exposição CulturaNatura:
assegurar colaborações, fazer investigação para o livro acerca do bloco de
cobre, e sentir o Brasil. Sentir, para a autora, é um instrumento de
conhecimento, como para outros o é o microscópio ou uma análise ao sangue.
O JARDIM DO ÉDEN
No caso do bloco de cobre, é necessário saber que ele centra o debate em
torno da inseparabilidade NaturaCultura: sendo o paradigma das Ciências o
natural e o das Letras o humano ou cultural, de que meios dispõe cada um
deles para à partida identificar o seu objecto de conhecimento como natura
ou cultura?
Embora ao longo dos textos os naturalistas digam que o cobre é nativo,
virgem ou criado da natureza, essa virgindade não é imediatamente
apreensível pelos sentidos; não sabemos em que critérios científicos se
apoiavam os naturalistas do século XVIII para afirmarem, na sequência da
análise química, que a porção analisada não era produto de fusão; hoje, os
cientistas declaram que para distinguir o cobre natural do artificial a
análise química é irrelevante, só a análise estrutural fornece tais dados.
A autora reuniu uma série de textos (2), incluído o mais forte - a inscrição
do bloco - de que agora só se mostra a parte que ainda não têm os que
trabalham o tema, textos esses cuja estrutura, em termos de obra literária
colectiva, chama a atenção para o facto de tudo o que lhe diz respeito ser
falso. A máscara começaria então pelo estado do bloco, esparrado, como se
diz numa das descrições. Sem parra, porque antes de esparrado a usava,
perdida de há muito a virgindade, há muito cometido o pecado original.
Central também ao debate é a necessidade de o Homem sentir que no seu
planeta há espaços radicalmente diversos para habitar, o sagrado/natural e o
cultural/profano, o que levanta o problema de desvalorização da obra humana,
e mesmo de recusa em aceitar que o Homem também é um criador. A Natureza
continua a ser o sacrário de um Criador que nem Letras nem Ciências admitem
que possa ter sofrido acção humana, sob pena de sacrilégio, o que leva a
reconhecer que a condição do homem face à Natureza continua a ser a do
expulso do Paraíso.
A ciência ainda não apresentou os resultados da análise estrutural do cobre;
quando apresentar, pode ser que se verifique estar errada a análise
literária, por o cobre ser 97% virgem, exceptuada apenas aquela parte que
sofreu fusão superficial (3). Pode ser erro afirmar que ele passou pela Casa
de Fundição, digo Moeda, quanto mais não seja naqueles 3% que usavam parra.
O eixo do debate permanecerá correcto: nem Ciências nem Letras têm meios
para à partida distinguirem a cultura da natura, o erro da fraude, a verdade
da mentira, o falso do verdadeiro: a massa de cobre tem vindo, desde há
duzentos anos, a ser identificada como cobre nativo, por um processo de
crença, apenas porque tem uma inscrição a dizer Cuprum nativum minerae ferri
mixtum. É por um processo de crença que, face às características do discurso
científico, todos, excepto a autora, as consideram erros, de ortografia,
tipográficos ou outros. Donde se conclui que pensamos segundo círculos
fechados ideológicos, segundo religiões, ou nem sequer pensamos,
limitamo-nos a seguir os ditames deste ou daquele consenso, o que nos
protege dentro do círculo do poder instituído. Não somos livres para encarar
sem preconceitos o objecto do nosso conhecimento, o conhecimento já de si só
se concebe se assentar em qualquer pré-conceito. |
(1) Este texto é inédito, foi apenas distribuído como relatório, na altura, às instituições e pessoas envolvidas no projecto da exposição CulturaNatura, que me levou ao Brasil.
(2) Esses textos são a bibliografia do trabalho "Martinho de Mello e Castro e as riquezas naturais", em linha no TriploV (Alquimias, Pedra de Cobre). Publicado também em "Discursos e Práticas Alquímicas - II", Hugin Editores, Lisboa, 2002.
(3) A Ciência, contra o prometido, nunca chegou a apresentar esses resultados. |