MARIA ESTELA GUEDES
A Boba Colecção Teatro no Cordel, nº 4 Apenas Livros Lda, Lisboa, 2006 |
Segunda insónia |
Miguéis -
(Abre os braços, desculpando) É o terceiro autor, nos arquivos secretos do TriploV, a atirar com as culpas para cima de D. Afonso IV. D. Afonso IV teria mandado assassinar a dama galega, por ciúme do filho. Como ouvistes, Maria Estela Guedes acha que sim, que Afonso IV estava apaixonado por D. Inês, mas que ela não lhe ligava nenhuma. Agustina, a cronista… A cronista Agustina Bessa Luís também adverte que isso pode ter acontecido, o que causaria uma reviravolta na História. E já em 1956, Gondin da Fonseca proclamava que toda a tragédia se deveu a paixões e ciúmes entre pai e filho. O pai é que se tinha embeiçado por D. Inês, D. Pedro só dormia com ela para cegar o pai de raiva. Um brilharete de psicanálise em que D. Pedro sofria de complexo de Édipo, agravado com sadismo e necrofilia. Pois sofria, sofria disso tudo e de canibalismo ainda por cima, mas por minha culpa, eu é que… (Faz um gesto vago e vai postar-se sobre a tecla do CTRL) A História, diz Agustina, a cronista, é uma ficção controlada. E eu que o diga, eu que o bobe. Controla quem pode. Controla quem tem poder para que se divulgue e publique só isto ou aquilo. Controla quem manda escrever cartas fundadoras, séculos depois da falsa data de redacção. Controla quem manda forjar falsas declarações de casamento, controla quem manda assentar falsos registos de baptizado, controla quem falsifica dados biográficos, controla quem inventa macroscincos, unicórnios e sereias. Controla-se para quê? Para mandar, está visto. Para legitimar filhos, para dar direito de partilha a este ou àquele. Para disfarçar mazelas, para avisar os parceiros. Controla-se para fazer currículo. Controla-se para ganhar, controla-se para perder o inimigo. Controla-se para revelar e para esconder. Ah, não, não sabem nada de mim… Se soubessem, outro galo cantaria. É que por detrás da morte dela estou eu… Não, senhores, não, não foi por politiquices que a degolaram. A minha Inês querida morreu por paixão. Se soubésseis quem eu sou, se soubésseis… Não sabeis e não quereis saber, preferis o descanso da ignorância, mas eu vou contar tudo! EU SOU A CAUSA DA TRAGÉDIA, FUI EU QUEM TRAMOU TUDO! (Pausa) Sabei então que eu, Maria Miguéis anã, boba de corte que fui, e boba que continuo a ser, agora republicana, durmo num caixote do lixo informático, em que ratos vêm mesterricar! Sim, mas tratei por tu os príncipes, e até por primo o Bom Primo Francisco I… Bom primo Afonso IV… Anda cá, então tu, ó desmiolado, mandaste degolar o teu irmão bastardo? Argumentando que ele padecia de deficiências vergonhosas? Ora, ora, ora… (Canta) Dois nões como dois anães, E fizeste a vida negra a teu pai, D. Dinis. Afonso, nem pareces filho da Rainha Santa. Porque é que não aprendeste com ela? Ela perseguiu os bastardos? Ela fez guerra ao marido, como tu, que a ele, teu próprio pai, perseguiste toda a vida? Põe os olhos na tua mãe, Afonsito, põe nela os olhos e aprende: não trazia ela as concubinas para casa, não cuidava delas e dos filhos, cheia de misericórdia e diplomacia? Mandou ela matar as amantes do marido, como fez a tua filha em Castela, essa que Luís de Camões subtraiu ao anonimato, n’ “Os Lusíadas”?
(Muda o tom de voz) Não, a tua mãe, D. Isabel, protegeu os bastardos e as mães dos teus irmãos bastardos. Não é realmente uma santa? E tu? Ainda hás-de ir parar aos caldeirões de Pêro Botelho! Sempre a persegui-los, invejoso, não fosse tirarem-te o trono de debaixo do cu. E não o mereceria algum deles mais do que tu? Desgraçado, é só de sangue a cama em que te deitas. A do teu filho, então, a mais do sangue, ainda tem mijo, suor e trampa. Édipo enviesado, meu cobarde! Não tiveste colhões para cravar o punhal no peito do teu filho, tiveste de mandar os esbirros feri-lo, matando a minha Inês de Castro! Fi de puta ruim, que não sabias quem eu era, mamarracho! Tu não viste que o teu filho deixou D. Inês desprotegida, a casa de portas escancaradas, para que os teus assassinos a apanhassem? Bruto, tão brutinho, este D. Afonso IV… Uma vez agrediu o príncipe D. Pedro, ainda criança. Por nada, foi um ataque de raiva, o puto tinha ido ao pote da marmelada. Deu-lhe um pontapé no rabo, o rapaz foi projectado contra a parede, espirrou-lhe logo o sangue do nariz. A pobre mãe, D. Beatriz, minha senhora, ficou petrificada. (Pausa) Ora porra, Afonso! Essas coisas não se fazem! Caraças, os irmãos bastardos são para tratar bem. Não é de boa política mandar bengalas para a fogueira, ficando depois sem lobby debaixo das calças. E ao teu filho pregaste as mesmas partidas. Sempre a rainha a separar-vos, para não vos comerdes vivos! Tanto atormentaste o rapaz, em tanta guerra vos arrancastes os cabelos, que ficou gago. De noite, com os pesadelos, D. Pedro mijava na cama, e uivava como um lobo desmamado: “Ahuuuuu! Ahuuuuuu! Ahuuuu!” (Canta com voz operática:)
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Britiande, Outono de 2006 estela@triplov.com |
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