teatro

INDEX

Prefácio
Cena. Personagem. Drama
Nota bibliográfica

A BOBA

Primeira insónia
Segunda insónia
Terceira insónia
Despertador

 

MARIA ESTELA GUEDES
A Boba

Colecção Teatro no Cordel, nº 4
Apenas Livros Lda, Lisboa, 2006

Segunda insónia

Miguéis -

“Bem sabeis, Senhor, o que rezam as Tábuas da Lei: ‘Não matarás, não cobiçarás a mulher do teu filho...’ Mas vós sois um danado de um mentiroso! À Igreja dizeis que sim a tudo, e pelas costas só fazeis o que vos dá na realíssima gana! Porque a D. Inês de Crasto é bela, com aqueles olhos de esperança e os dentes todos ainda... E o donaire das ancas? Mirai-me, Senhor, aquele rabo, sempre a acenar debaixo das tranças!

Ah, danado, danado sejais, Senhor D. Afonso, que fodeis a todas menos a ela. Por isso, tal é a raiva que lhe tendes, que ameaçais matá-la por intrigas com Castela. Que Castela, Senhor? Mas que Castela, Alfonsito? A dama é galega, da família. É de uma prima que vosso filho Pedro recebe cada vez mais filhos. Para quê torná-la mais família ainda, chamando-a para madrinha de D. Luís, vosso defunto neto? O amor não entreva com laços de sangue, nem com figuras, basta olhardes para mim para verdes claramente que o amor é cego, fero, injusto, cruel e traiçoeiro. Assim a mim palpais agora o cu, e me acusais de só beliscardes osso, mas já outrora me gabastes a magreza e a boca escancarada me enchíeis de beijos e carne assada dos javardos que caçais por aí!

Que o Demo vos leve para as profundas dos Infernos! Para mim éreis cego e agora, a ela, a vêdes, e já da minha feiura vos cansastes.  

Ignez, a ígnea, a cordeira, dizeis, como se fôsseis poeta como António Cândido Franco, ou como o vosso pai, o senhor rei D. Dinis. Ignez, Ignez de Crasto!, clamais por aí, que eu bem vos oiço, cheio de ardores do cio e do ciúme, bem ciente de que a dama nem é de Crasto nem de Cristo, sim de D. Pedro, o vosso filho. E ela que não se digna sequer olhar para vós, ó corno fedorento! Tem lá em casa peça mais fresca com que que trrriiincar os dentes. E quereis matá-la por isso? Por mim, matai-a, de que esperais, safado de um asno? Cágado trôpego, seu jarreta careca, que já não pode com a espada! Matai-a, que mal vem daí ao mundo?

Cacarecos, estirlito de pau, nem munheca sevia. Acabai-lhe com a raça, mai-la raça inteira dos Crastos, e como os Crastos são vossos parentes, continuai, continuai, ceifai também na vossa família. Acabai com as gentes todas de Portugal e da Galiza, bicho sebento, mas não digais que a galega vos traz guerra com Castela, porque isso é uma peta! As guerras com Castela travai-las todos os dias por outras razões, de família e desfastio, não por causa da dama que se deita com vosso filho, e vós queríeis era que se deitasse ali, na vossa cama...”
(Maria Estela Guedes)

(Abre os braços, desculpando)

É o terceiro autor, nos arquivos secretos do TriploV, a atirar com as culpas para cima de D. Afonso IV. D. Afonso IV teria mandado assassinar a dama galega, por ciúme do filho. Como ouvistes, Maria Estela Guedes acha que sim, que Afonso IV estava apaixonado por D. Inês, mas que ela não lhe ligava nenhuma.

Agustina, a cronista… A cronista Agustina Bessa Luís também adverte que isso pode ter acontecido, o que causaria uma reviravolta na História.

E já em 1956, Gondin da Fonseca proclamava que toda a tragédia se deveu a paixões e ciúmes entre pai e filho. O pai é que se tinha embeiçado por D. Inês, D. Pedro só dormia com ela para cegar o pai de raiva. Um brilharete de psicanálise em que D. Pedro sofria de complexo de Édipo, agravado com sadismo e necrofilia. Pois sofria, sofria disso tudo e de canibalismo ainda por cima, mas por minha culpa, eu é que…

(Faz um gesto vago e vai postar-se sobre a tecla do CTRL)

A História, diz Agustina, a cronista, é uma ficção controlada. E eu que o diga, eu que o bobe. Controla quem pode. Controla quem tem poder para que se divulgue e publique só isto ou aquilo. Controla quem manda escrever cartas fundadoras, séculos depois da falsa data de redacção. Controla quem manda forjar falsas declarações de casamento, controla quem manda assentar falsos registos de baptizado, controla quem falsifica dados biográficos, controla quem inventa macroscincos, unicórnios e sereias.

Controla-se para quê? Para mandar, está visto. Para legitimar filhos, para dar direito de partilha a este ou àquele. Para disfarçar mazelas, para avisar os parceiros. Controla-se para fazer currículo. Controla-se para ganhar, controla-se para perder o inimigo. Controla-se para revelar e para esconder.

Ah, não, não sabem nada de mim… Se soubessem, outro galo cantaria. É que por detrás da morte dela estou eu… Não, senhores, não, não foi por politiquices que a degolaram. A minha Inês querida morreu por paixão.

Se soubésseis quem eu sou, se soubésseis… Não sabeis e não quereis saber, preferis o descanso da ignorância, mas eu vou contar tudo! EU SOU A CAUSA DA TRAGÉDIA, FUI EU QUEM TRAMOU TUDO!

(Pausa)

Sabei então que eu, Maria Miguéis anã, boba de corte que fui, e boba que continuo a ser, agora republicana, durmo num caixote do lixo informático, em que ratos vêm mesterricar! Sim, mas tratei por tu os príncipes, e até por primo o Bom Primo Francisco I…

Bom primo Afonso IV… Anda cá, então tu, ó desmiolado, mandaste degolar o teu irmão bastardo? Argumentando que ele padecia de deficiências vergonhosas? Ora, ora, ora…

(Canta)

Dois nões como dois anães,
dois sins como dois toliões,
dois cões como dois regães,
são iguais entre si;
os anões e os gigantes
é que são todos diferantes…

E fizeste a vida negra a teu pai, D. Dinis. Afonso, nem pareces filho da Rainha Santa. Porque é que não aprendeste com ela? Ela perseguiu os bastardos? Ela fez guerra ao marido, como tu, que a ele, teu próprio pai, perseguiste toda a vida?

Põe os olhos na tua mãe, Afonsito, põe nela os olhos e aprende: não trazia ela as concubinas para casa, não cuidava delas e dos filhos, cheia de misericórdia e diplomacia? Mandou ela matar as amantes do marido, como fez a tua filha em Castela, essa que Luís de Camões subtraiu ao anonimato, n’ “Os Lusíadas”?

Entrava a fermosíssima Maria
Polos paternais paços sublimados,
Lindo o gesto, mas fora de alegria,
E seus olhos em lágrimas banhados.
Os cabelos angélicos trazia
Pelos ebúrneos ombros espalhados.
Diante do pai ledo, que a agasalha,
Estas palavras tais, chorando, espalha:

Oh, Afonso, querido pai, chega-te para cá,
quero contar-te um segredo: sabes
o que na corte se comenta?
Que tu gostas mais de mim
do que pode divulgar a imprensa…

(Muda o tom de voz)

Não, a tua mãe, D. Isabel, protegeu os bastardos e as mães dos teus irmãos bastardos. Não é realmente uma santa? E tu? Ainda hás-de ir parar aos caldeirões de Pêro Botelho! Sempre a persegui-los, invejoso, não fosse tirarem-te o trono de debaixo do cu. E não o mereceria algum deles mais do que tu?

Desgraçado, é só de sangue a cama em que te deitas. A do teu filho, então, a mais do sangue, ainda tem mijo, suor e trampa. Édipo enviesado, meu cobarde! Não tiveste colhões para cravar o punhal no peito do teu filho, tiveste de mandar os esbirros feri-lo, matando a minha Inês de Castro!

Fi de puta ruim, que não sabias quem eu era, mamarracho! Tu não viste que o teu filho deixou D. Inês desprotegida, a casa de portas escancaradas, para que os teus assassinos a apanhassem?

Bruto, tão brutinho, este D. Afonso IV… Uma vez agrediu o príncipe D. Pedro, ainda criança. Por nada, foi um ataque de raiva, o puto tinha ido ao pote da marmelada. Deu-lhe um pontapé no rabo, o rapaz foi projectado contra a parede, espirrou-lhe logo o sangue do nariz. A pobre mãe, D. Beatriz, minha senhora, ficou petrificada.

(Pausa)

Ora porra, Afonso! Essas coisas não se fazem! Caraças, os irmãos bastardos são para tratar bem. Não é de boa política mandar bengalas para a fogueira, ficando depois sem lobby debaixo das calças.

E ao teu filho pregaste as mesmas partidas. Sempre a rainha a separar-vos, para não vos comerdes vivos! Tanto atormentaste o rapaz, em tanta guerra vos arrancastes os cabelos, que ficou gago. De noite, com os pesadelos, D. Pedro mijava na cama, e uivava como um lobo desmamado: “Ahuuuuu! Ahuuuuuu! Ahuuuu!”

(Canta com voz operática:)

«Aves sinistras
Aqui piaram
Lobos uivaram,
O chão tremeu.
Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores:
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.»
(Bocage)

Britiande, Outono de 2006
estela@triplov.com
Página principal - Mapa - Cibercultura - Naturalismo - Teatro - Maria Estela Guedes
.