teatro

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Prefácio
Cena. Personagem. Drama
Nota bibliográfica

A BOBA

Primeira insónia
Segunda insónia
Terceira insónia
Despertador

 

MARIA ESTELA GUEDES
A Boba

Colecção Teatro no Cordel, nº 4
Apenas Livros Lda, Lisboa, 2006

Despertador

Miguéis:

Gosto deste rei louco, inocente e brutal. […]
- Senhor, agradeço-te a minha morte. E ofereço-te a morte de D. Inês. Isto era preciso, para que o teu amor se salvasse.
- Muito bem, responde o rei. – Arranquem-lhe o coração pelas costas e tragam-mo..”
(Herberto Helder)

(Pausa)

Um desatino, volta e meia enganava-se, não distinguia qual delas estava na cama. Tantas vezes se abraçou a mim a chamar-me Inês! Uma noite, estava eu deitada com D. Constança, atirou-se a ela a chamar-lhe Miguéis.

Uma cegueira, ele era cego, não percebia as diferenças. Verdade se diga que as noites se punham muito escuras no paço, ainda não havia luz eléctrica.

Foi por isto que Fiama Hasse Pais Brandão escreveu a peça de teatro “Noites de Inês-Constança”. Inês e Constança são uma só, D. Pedro nunca sabe com qual delas está. Como se dissesse:

 - De noite, todas as gatas são pardas.

Para os homens, claro.

E até de dia.

Depois da morte de D. Beatriz, D. Pedro não quis mais mulheres na sua cama. Nem a mim! Trasladou Inês para Alcobaça, casou com ela depois de morta, e ficou-se por ali. Fiel como um cão, mas mais capado que o Afonso Madeira.

(Canta)

Vamos à feira, vamos à feira
Cordeirinha comprar!
Olha os tomates de cá,
Dlim-dlão!
Olha os tomates de lá
Dlão-dlim!
Olha o coelho, olha os miúdos
Plim-plão!
Ai, coração, coração
Que me gustas temperado
Com alho, salsa e limão!

(Pausa)

D. Diogo Lopes Pacheco tanto que avisou:

- D. Pedro, D. Inês corre perigo de morte! Olhai que está para amanhã!

Mas eu tinha-lhe dito:

- Deixai-o matar a galega, assim ficais com razão para vos queixardes das atribulações em que vos põe o vosso pai! Agi com sabedoria, e ainda lhe dá um flato que ele cai da cadeira! E subis vós ao trono.

Foi por isso que D. Pedro saiu para a caça e deixou D. Inês sem protecção.

(Pausa)

De madrugada, acorda-nos o tropel dos cavalos. D. Inês pega em mim ao colo para irmos ver à janela. No pátio, lá estavam os assassinos.

Nem rei, nem Diogo Lopes Pacheco, nem Álvaro Gonçalves, nem Pêro Coelho. Isso foi o que eu disse depois a D. Pedro, quando me perguntou quem tinha morto D. Inês. Escolhi os homens mais nobres e honrados da corte. Todos fingiram acreditar, porque lhes convinha.

(Pausa)

D. Afonso IV mandou mercenários, de rosto coberto. Levaram-na de rastos para cima da cama, ela gritava pelos filhos, gritava por mim:

 – Miguéis! Miguéis! Acode que me matam sem porquê!

E eu acorri, mas que podia fazer? Só chegava às pernas dos bandidos.

(Pausa)

Corri o país todo com el-rei, ele não parava em lado nenhum. Estávamos então no paço de Santarém. Aconselhei-o a marcar a execução para a hora de almoço. Víamos assim o que se passava na praça do pelourinho e todos os que estavam na praça nos podiam ver a nós, enquanto comíamos.

Atrasava-se a execução, e o almoço também. Por isso eu disse:

- Tenho fome!

El-rei chegou-se à janela e gritou para fora:

- Preparai-nos esse coelho, que temos fome!

(Pausa)

Pêro Coelho, de mãos atadas atrás das costas, respondeu ao rei:

- Vós sois à fé perjuro, algoz e carniceiro dos homens!

- Muito bem, respondeu o rei. – Arrancai-lhe o coração pelas costas e trazei-mo…

Assim foi feito. E lho trouxeram, num prato. E el-rei pegou nele com as duas mãos e trincou o coração de Pêro Coelho.

- E agora, recomendou o rei: – Arrancai o coração de Álvaro Gonçalves, mas pelo peito. E queimai os corpos.

E assim foi feito.

(A Miguéis sobe os degraus do teclado e desaparece no recycle bin)

Britiande, Outono de 2006
estela@triplov.com
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