A Miguéis sai do recycle bin, desce pelas escadas constituídas pelo teclado, e cai:
MIGUÉIS
Porra! Porrinha! Porrice! Isto começa mesmo bem!
(Endireita-se, solene, e vai sentar-se na tecla do CTRL. Depois requebra-se, lírica, para declamar):
“Eu era moça, menina,
per nome Dona Inês
de Crasto, e de tal doutrina
e vertudes, qu'era dina
de meu mal ser o revés.
Vivia sem me lembrar
que paixam podia dar
nem dá-la ninguém a mim:
foi-m'o príncepe olhar,
por seu nojo e minha fim.”
(Garcia de Resende)
(Faz uma careta e uma cabriola e depois fica séria)
Eu era moça e menina?
Pois, pois, e bem pequenina…
E também fui de meu mal
Digna de ser o revés…
(Espreguiça-se, dispõe-se ao trabalho)
De que gostais mais?
De prosa ou verso?
De História ou de história nenhuma?
Da história contada de trás para diante
Ou de diante para trás?
Posso começar pela peste negra…
Posso atacar já pela cabeça cortada
Da moça e menina
Que não é a “Menina e Moça”…
Nem uma coisa nem outra?
Quereis que me vá embora?
Isso, senhoras, meninos e meninas,
Gentis cavalheiros,
Era o que mais faltava!
Não vou, não vou, não vou!
Não quereis a Inês Pires para nada?
Preferis a Castro?
Mas isso é o mesmo que detestar fígado
E não deixar uma isca no prato!
(Humilde)
Se me deixardes,
Se baixardes a grimpa,
Se concederdes em descer do pedestal
Para ouvir uma anormal,
Conto-vos a história minha…
Vá, sou para aqui um pêssego de Natal,
Uma batata encolhida,
Quase preciso de escada
Para me sentar no penico;
Quando me chego aos balcões
Sou tão baixinha que não vejo cisco,
Mesmo bem empoleirada nos tacões;
Quando se enche o lagar,
Com malvasia fina
E outra mourisca, a uva bem preta,
Pelo tempo da vindima,
Aí, sim, como alcanço a lagareta,
Provo o mosto que fumega,
Em borbulhões…
(Pausa)
Como ela gostava de vindimar,
A minha querida Inês!
Lá nos vinhedos da Atouguia
Enquanto D. Pedro se entretinha
A excitar touros ferozes
E a saltar-lhes para a espinha.
Enquanto isso, querida Inês,
Agachavas-te para cortar os cachos
E lambias os dedos gostosos.
Também eu vindimei, mas direitinha.
Vantagens de ser anã:
Não preciso de me agachar
Para ir directa à uva fina.
(Pausa)
E a vós, ó multidão,
Dou-vos por onde, por onde?
Dou-vos pela cintura, meninas,
Senhoras, meninos
E cavalheiros…
Nem com andas me elevais à vossa altura,
Em matéria de cultura,
Não me exaltais à vossa sapiência,
Porém, senhoras, cavalheiros e meninas,
Eu tenho pernas, braços e maminhas,
E pelo meio uns buracos…
Um a que chamam passarinha,
Outro a que chamam olho, olho do…, olho do…
O olho do sirtato!
Como vós tendes, ora contai:
Um, dois, três, quatro…
E até esta cabeça, senhores,
Que tantas vezes D. Pedro e D. Afonso, seu pai,
Afagaram para me acalmar, ralhando:
- Miguéis, Miguéis,
Tem juízo nessa cabecinha!
Chegava-lhes às partes baixas
Que outra maior altura
Em espírito não tinham
Só curavam de dançar, e foder e assassinar…
E emborrachar-se
Quando noite e medo vinham…
Sou anã, chego tão-só às vossas perninhas…
E não vos regalais com isso?
Não é por vos chegar à foz e aos baixios
Que deixo de ter alma,
Nem por isso deixo de ser sujeito do que digo
E por tudo isto, como os outros anormais,
Também tenho direito à História.
E mais, mal vós sabeis
Que por causa minha
Recebeu morte
D. Inês de Castro.
(Cantarola; depois faz que ouve alguém perguntar-lhe o nome e responde)
Eu era moça e menina…
Eu era moça e menina…
Ai era, era… Lari, lá-laró
Menina e moça, oh! oh…
Hãã? Hãã?
Per nome? Maria Miguéis anã!... |