As fronteiras culturais e civilizacionais eram constantemente renegociadas no quadro dinâmico da vida em Angola nesse tempo. Essa renegociação passava também pela definição de identidades que aumentava ou diminuía o espaço de manobra para cada um dos actores ou dos grupos em causa. Devemo-nos interrogar hoje, por exemplo, sobre aqueles que aparecem nomeados como portugueses no livro. Contrariamente ao que pensaria uma criança, isso não era unívoco. A própria linguagem de Cadornega oscila, nesse aspecto, entre o mais estreito e o mais lato significado antropológico de português (Venâncio, 1993: 26-27; 1992: 86).
Em certa passagem fala-nos de “um português natural da ilha de São Tomé por nome Pascoal Rodrigues Quemba”, que fora “escrivão do quilombo de Casangi” (1972, III: 177). Quer dizer que os portugueses não eram só os reinóis, podiam ser nascidos nas colónias e ter ao longo delas espalhado sua vida e carreira. Não tinham, mesmo, de ser brancos.
No Combe, freguesia que ficava entre Luanda e Golungo, segundo ele havia “fregueses brancos, pardos e pretos, que vestem à portuguesa, com inumerável gentio, assim de gente forra como de escravaria de homens brancos e dos mais, vivendo todos ali catholicamente” (1972, III: 50). O “gentio de gente forra” é uma categoria híbrida, que pode incluir “os mais” que, para além dos “homens brancos”, possuem “escravaria” – como se passava no Reino do Congo. Estes “mais” podiam pertencer aos “fregueses [...] pardos e pretos” que “vestem à portuguesa”. Se os “fregueses” lá moravam “com inumerável gentio”, isto quer dizer então que alguns desses “mais” não eram “gentios”, mas “portugueses”. Quer dizer ainda que, apesar da multifacetada origem étnico-racial, os “mais” e os “gentios” tinham em comum o facto de partilharem algumas das tradições religiosas e sociais trazidas pelos portugueses, o que os tornava mais próximos (“vivendo todos ali catholicamente”), mas substituía a dicotomia «cristão» / «gentio» pela dicotomia “português” / “gentio”, ambos passando a ser cristãos.
No Dande, por sua vez, moravam alguns “outenta casais de gente portuguesa, filhos os mais deles da mesma terra”, não se especificando a cor da pele. Nessa passagem, pelo decorrer da frase parece que são todos portugueses, dado que tomam partido, quando há guerra, pelo rei de Portugal e lutam ao lado das tropas portuguesas ou integrados nelas. É uma das acepções que se confirmam ao longo da obra. Tal filiação processava-se também em sentido contrário, por exemplo no reino do Congo (António, 1990: 41).
Em outra passagem, Cadornega desloca “do gentio destes reinos” o que se apoia no poder colonial português. Trata-se de uma identificação estratégica, definindo-se a identidade pelo inimigo comum. Simétrica quanto à identificação, estratégica também, foi a identificação do nacionalismo angolano entre os anos 40 e 80 do século XX. No século XVII, os que lutassem pelos portugueses ou com os portugueses podiam vir a ser considerados portugueses em certas passagens da obra; no século XX, os que lutassem contra a autoridade portuguesa podiam vir a ser considerados angolanos, ainda que descendessem de portugueses ou fossem mesmo nascidos em Portugal. Isso abriu caminho a que fossem considerados portugueses, não só homens brancos nem só reinóis (“soldados vindos de Portugal a quem na Índia chamam reinóis”, 1972, III: 377), mas também “pardos e pretos” e “gentios”. No século XX abriu caminho à integração de portugueses no nacionalismo e na identidade angolanos.
Outra acepção para “portugueses” incluía, no século XVII, muitos dos que viviam em territórios sob administração tradicional. Os Dembos tinham nas suas terras muita “gente portuguesa, fazendo negócio de peças, marfim e panaria”. Vários deles, antes dos holandeses, abrigavam “outenta pessoas portuguesas”, que negociavam até aos domínios do Jaga Cassange segundo o autor (1972, III: 206, 217). Esta “gente”, que vivia em territórios controlados pelos “gentios”, incluía os que moravam “com mulheres e família e outros bolantes” (1972, III: 205-206). Os volantes podiam não ser brancos, mas pombeiros das casas comerciais de Luanda que eram muitas vezes “pardos” e algumas outras “negros”. Em qualquer dos casos, a sua deambulação ia amassando nas palavras estórias e provérbios ouvidos em lugares diferentes e ditos por pessoas de múltiplas origens. As “mulheres e família” incluíam seguramente não-brancas as quais, apesar de serem dali, eram consideradas portuguesas. Dessas mulheres para seus filhos passava ao mesmo tempo uma cultura banto e traços, pelo menos, da cultura do marido. Quanto a esses, não volantes, muitos vinham mais tarde para a cidade colonial com as mulheres e família. Nas primeiras décadas do século XVII, segundo Cadornega, fazia-se muito negócio indo para o interior do Congo até ao “pumbo de Ocanga”, que ficava a norte do rio Zaire. Daí vieram “muitas casas ricas” e muitos dos portugueses de Luanda, com suas famílias mistas e seus hábitos misturados. Eles associavam então os dois tipos de mistura cultural existentes na altura: o da cidade colonial e o da cidade tradicional. Todos eram “portugueses”...
Nestes últimos exemplos, a extensão do conceito de “português” é mais abrangente, não implicando uma definição por confronto e para o confronto, mas uma inclusão menos definida e menos comprometida. É claro que o grau de comprometimento mudava conforme as circunstâncias políticas, tornando-se mais elástico nos lugares em que os portugueses tinham menos poder. Não deixava de haver aí um sentido estratégico. Mas manifestava-se também uma circunstância cultural interessante que era a de, nesses lugares, previsivelmente, os “portugueses” terem muitas vezes mais de “africanos” do que de reinóis. Os “filhos da terra”, que são em geral incluídos entre os portugueses, podem praticamente só falar uma língua banto e não o português (1972, III: 267). Tal facto remete-nos para a apropriação mútua das culturas, quer do lado banto, que se apropria de partes do legado ocidental, quer do lado português, que se apropria de partes do legado banto. |