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FRANCISCO SOARES

“Tirar Doutrina”: Cruzamentos Narrativos de Cadornega

INDEX

Contextos
(In)definições
A língua: Intenção estética, oralidade e originalidade
Intenção estética
Oralidade
Estórias cruzadas
Recursos de conexão
BIBLIOGRAFIA

Estórias cruzadas

Quando, no excerto que nos serviu de epígrafe, Cadornega tira doutrina recordando que o peixe grande come o pequeno, está a cruzar referências com intuito estratégico, pois a lição ensina a obedecer aos poderosos e a sua moral política é marcadamente conservadora. Quando se conta o caso de um lagarto do Tombo, há também comentários moralizantes que visam confirmar as posições estratégicas: o capitão vai matar o lagarto “como quem estava obrigado em razão do seu cargo a compor e aquietar as cousas da sua jurisdição” (1972, III: 62). Pelos mesmos motivos é claro que estava obrigado a asfixiar revoltas e agitações dos seus avassalados. Ainda na mesma estória, o cronista envia uma espécie de recado para dentro, em nome do respeito pela hierarquia: “vendo não havia de ter respeito a ser seu capitão mor, que como esta casta [dos crocodilos] não milita debaixo de bandeira, não sabe ter cortesia devida aos oficiais maiores” (1972, III: 63). A crítica, nesta passagem, não é aos “negros” mas aos que não respeitam hierarquias e esses aparecem dos dois lados da barricada (vassalos e não-vassalos). Noutro momento, pouco mais adiante, um filho resgata um pai ao ventre de um “lagarto” e é fortemente elogiado por isso, com novos recados para dentro: “que não era daqueles que pretendem herdar morgados nem heranças” (1972, III: 71). Também aqui o visado não é “negro”, mas um determinado tipo de imoralidade.

A disputa por um lugar estratégico torna-se mais subtil em estória s em que a feitiçaria acaba por desempenhar um papel menos negativo. Não há dúvida de que a feitiçaria representava, para o velho colono, a mais evidente face do demónio. A demonização é comum nas variadas culturas submetidas à pressão ou à ocupação colonial europeia, mas o Diabo de Cadornega não era só livresco. Era vivo, tinha rostos concretos e ferozes, além disso locais, operava extraordinários prodígios e, dado que lutávamos com ele, era também mais próximo (v. por ex. 1972, III: 77-78). Essa vivacidade, alicerçada numa intensa e duradoura permanência local, trazia rostos diferentes, próprios, ao Diabo – não só exotismos estilizados.

O animal biblicamente associado ao demónio (a serpente) está presente, claro, embora com tal grandura e disformidade que assusta, engrandecendo os que o enfrentam. Moralmente é um diabo típico: bicho astucioso e mau que “enganou a nossos primeiros Pais, em o Paraíso terreal” (1972, III: 79), como diz numa expressão onde ecoa a medievalidade peninsular ibérica. Mas ali a serpente é maior e perigosa. Por isso mais diabólica também.

Há depois animais novos, ou que só ali o autor terá conhecido ao vivo, que são também diabolizados (Parreira, 2003). O tigre é um deles. Numa das estórias é o próprio Diabo disfarçado (1972, III: 144-146), pois um tigre não podia aparecer onde apareceu só por si. A luta contra o demónio, como se vê por aí, era mesmo física. Não podendo matá-lo na sua essência iam-no matando, para sobreviverem, nas suas aparições. Como se eliminando os sinais eliminassem a profecia.

O mais comum dos rostos do demónio é no entanto, a maioria das vezes, o “lagarto”, ou seja, o crocodilo ou jacaré, bicho que ameaçava ou mesmo impedia o comércio ao longo dos rios, comendo qualquer espécie de gente sem o menor pudor. Odiado por todos, desde os escravos aos senhores, o papel fica-lhe mesmo bem, torna-se consensual. O consenso é mesmo geral, visto que todos são vítimas e apesar das conotações entre o feiticeiro e o lagarto. Cadornega mostra repulsa, rancor e temor quando fala no lagarto e tais sentimentos acredito que fossem comuns a todas as pessoas que viviam ali. Não basta afirmarmos que eram comuns, é preciso dizer que por serem comuns é que o estoriador associava o feiticeiro ao lagarto, para associar o inimigo da religião aos sentimentos de medo, repulsa e rancor. Ao estabelecer uma hierarquia no reino animal, ele coloca portanto o crocodilo na base da pirâmide: o mais violento, o menos inteligente e o mais sanguinário. Apesar de não lhe reconhecer inteligência, Cadornega percebe que o “alcaide das sacas” é “manhoso”, tal como a cobra do paraíso. Nas suas diatribes contra o animismo chega a associar o lagarto, a feitiçaria e a língua na qual ela se exercia. Aliás, os rituais animistas são directamente associados ao Diabo (v. por ex. 1972, III: 75-76), numa atitude característica da fusão de colonialismo e conversão. A página 65, ao referir uma mulemba no Penedo do Bruto, diz que “os gentios” nela têm “grande erronia [...] por antigamente se fazerem ali muitas feitiçarias e sacrifícios ao Diabo e a seus ídolos e vir-lhe, conforme dizem, a falar-lhes”, fazendo-lhes oráculos na sua língua (1972, III: 66).

Portanto, não há dúvidas sobre a diabolização da feitiçaria, da língua e dos animais dali. Também não há dúvidas quanto a associação de animais diabolizados a forças locais insubmissas, em liça contra os “portugueses”. Pelo que é mais surpreendente ainda, um verdadeiro milagre, que a feitiçaria se ponha ao serviço de Deus. Mas a negociação subtil de que fazem uso muitos narradores tradicionais podia alterar o lugar que lhes estava reservado à partida.

Numa das estórias, um “negro” fala com o “lagarto, fiado em suas ruins habilidades e encantos [...] pela sua língua da terra” e o “feroz lagarto” obedece-lhe: “Foi cousa que espantou e admirou a muitos que o viram, obedecer aquele lagarto aos esconjuros diabólicos daquele negro”. Cadornega afiança a verdade do caso e a geral admiração confirma-a. A conotação entre a “língua da terra”, o “negro” e o jacaré é evidente, colocando o “negro” no lado mau da estória. Mas também reconhece o poder que lhe dá o ser dali, pois até consegue fazer com que os terríveis animais lhe obedeçam. Isso torna mais curioso ainda o contexto imediato, visto que os “esconjuros diabólicos” eram para salvar um escravo do padre João da Costa (1972, III: 129-130) e tudo se passou num lugar “a que chamam da Misericórdia, por estar perto desta Santa Caza” (1972, III: 129). Em outras palavras, o demónio esteve ao serviço da Igreja e por interposição misericordiosa tal serviço era tacitamente aceite, a eficácia legitimando a prática proibida. Isto melhora a posição das tradições locais e dos seus representantes na arquitectura simbólica do curto episódio.

Num caso contado logo em seguida (1972, III: 131-132) ensaiou-se uma cooperação sui generis e, sem dúvida, avant la lettre. Um “negro de fama” consegue, pelas “suas cerimónias e conjuros”, que o corpo de uma escrava seja devolvido depois de morta pelo jacaré, “ou outro revestido na sua pele” (o diabo, claro). O interessante é que a “senhora” (católica) da escrava, a quem era muito afeiçoada, queria que lhe fizessem esse milagre para poder, ao menos, dar-lhe “sepultura eclesiástica”. A feitiçaria serve, por momentos, um desígnio cristão...

Ainda uma outra vez ela será justa, quando um prisioneiro negro se transforma em leão para caçar animais com que matar a fome à comitiva que o leva preso. Propôs-se fazer isso e honrou o compromisso. Esse, então, não era “manhoso”, mas o salvador dos seus algozes.