A linguagem deste meio cruzado é um dos canais mais intensos e voláteis de miscigenação. Esse facto social ganha relevância estética a partir de Cadornega, pois na sua História, muitas vezes, a miscigenação pela escrita consegue efeito estético. Podemos portanto falar numa intenção estética a partir de expressões do próprio autor, que nos ajudam a perceber a consciência que ele tinha da obra e a voz que nela dava ao português local. Não nos esqueçamos de que ele pretende ser o cronista de Angola e a crónica nessa época mantinha um prestígio e uma exigência literárias maiores que as de hoje. Por esse motivo também, é pertinente estudar a crónica do autor numa perspectiva retórica e literária.
Um dos tópicos evidentes da crónica de Cadornega, também conhecido nas literaturas europeias da sua época, é o das coisas grandes e admiráveis – grandezas, heroísmos, magnificências e até enormidades (estando a estas reservada muitas vezes a função de anormalizar e diabolizar os animais e mesmo pessoas, conforme lembra Parreira [2003]). O nosso autor escreve, por exemplo: “[…]para acabarmos com a grandeza e magnificência deste Colégio, diremos como até os negros, forros e escravos de seu domínio têm a sua confraria [... ]” (1972, III: 15). Não interessa propriamente falar aqui nas confrarias e nas suas funções, mas observar um tópico de grandeza e magnificência, no caso definidas pela integração da confraria dos “negros, forros e escravos”. Se ignorarmos por momentos o aspecto antropológico, local, esse tópico de magnificência e grandeza, na literatura europeia, domina as personagens épicas. A sua presença aqui mostra-nos que um dos modelos da História é a epopeia. Por isso é que ela cita várias vezes outras epopeias, porque o género faz parte do seu modelo estético.
Associada à grandeza e à epopeia está a exaltação da força, do tamanho, da incrível diferença, enfim, de coisas dali que provocam espanto e satisfariam o exotismo de muitos leitores europeus do século XVII. Os rios, que desempenham um papel referencial na geografia de Cadornega, servem tal exaltação. O Cuanza é maior (e mais estranho) do que “Nilo, Ganges, Tigre e Eufrates” (1972, III: 116; lembremo-nos de que nessa altura ainda não se conhecia o rio Nilo em toda a sua extensão). Para além do Cuanza, o Lucala também merece estória s, “[…] porque digamos também delas [das águas do Lucala] algumas cousas dignas de admiração” (1972, III: 129-130).
Os rios são engrandecidos pelas estória s e pelos animais que neles andam, como “lagartos” e hipopótamos. Adriano Parreira observa com justeza a conotação entre esses animais, o negro (principalmente o não-cristão) e a água doce para os homens que vinham do mar. Mas também aqui há razões de efeito estético, pois para que se aquilate da grandeza do herói se agiganta o vilão. Por esse motivo estético também, alguns crocodilos atingem “vinte e quatro pés de comprido e a grossura como de uma pipa” (outra imagem vinda do comércio; 1972, III: 63). O hipopótamo, assegura o cronista que algum havia que, mesmo “numa nau da Índia, a há-de meter ao fundo feita em pedaços” por sua “grandura” e peso (1972, III: 69). Noutra passagem, a uma fêmea dessa raça nem quatro balas, nem “um cento de tiros” lhe conseguiam furar a pele (1972, III: 85-88). “Sem o ser de fermosura” a grandeza torna-se monstruosidade (1972, III: 68), “disformidade” agigantando casos “de grande admiração e lástima” (1972, III: 70), em que hipopótamo e jacaré cooperam para a mesma desgraça (1972, III: 70-72), ou entram em luta os “monstros”, ou simplesmente os animais selvagens, na concorrência épica da grandeza e do poderio (v. por ex. 1972, III: 79, 90). Sem deixarem de ser antropológica e ideologicamente comprometidas essas operações artísticas, esta epopeia caminhava também, pelas maravilhas e sustos do exotismo, num sentido cada vez mais barroco e paradoxal de espanto perante o monstruoso e de esteticização dos perigos.
A intenção estética é perceptível ainda quando se comparam os cenários das narrativas com os de obras modelares. Por exemplo, numa passagem em que os soldados conversam para passar o tempo, o autor lembra um episódio d’Os Lusíadas em que se passava o mesmo. Na estória exemplar, contada a pp. 62-63 (do mesmo volume III), as referências literárias são ao “cavaleiro andante” e a Jasão, na “Ilha de Colcos em busca do velocino de Ouro”. Mais adiante, remete-nos para o milagre de D. Fuas Roupinho (1972, III: 144). Obviamente, há muitas outras, mas estas referências mostram bem o quanto Cadornega tinha a intenção de dialogar com obras épicas e mitos conhecidos na cultura literária europeia.
As comparações (a figura da comparação e as alusões a culturas literárias) não satisfazem apenas um apelo exótico e egótico dos leitores do Reino, apelo que se reproduz também nas gravuras e explica por que motivo a pintura e em certos momentos a escultura são mais exactas na descrição do negro (no caso da escultura quando se fixa num circuito privado como o do baptistério de Santa Maria Maior, no qual D. António Manuel, enviado do rei do Congo, é retratado com intenso realismo e humanismo, por sinal o que falta nas gravuras e nas descrições literatizantes como percebeu António Parreira, 2003: 64-67). As comparações em Cadornega desempenham também um papel especificamente artístico, pois servem para juntar ou separar partes ou episódios, são figuras (tropos) de passagem, como se o seu efeito estético fosse de alguma forma equivalente ao seu efeito antropológico. Há frases de especial efeito poético ligando ou separando partes da História. Escolho aleatoriamente este exemplo: “[… ] e porque estão combatendo as águas do rio Cuanza, quebrando suas ondas em as penedias e rochedos como sentidas de lhe tardarem tanto com a sua descrição; paremos por ora um pouco com as mais grandezas que em si encerra esta nossa vila” (1972, III: 137). Estas águas doces eram no entanto vivas e íntimas, não eram rejeitadas nem deformadas aqui por diabolização, suscitavam outrossim, na função de musas, a pena do cronista.
Um bocado mais acima há outra passagem: “[…] e para que entrechaçando vamos em esta descrição algumas cousas extravagantes e de admiração”. Por aí se liga este chamamento da musa ao exotismo, religando portanto a leitura cultural e a mais estritamente estética. Um bocado mais à frente, outra passagem inclui uma citação erudita em relação à qual o espaço em que se vive é desterritorializado: “[…] e já que chegamos com esta nossa história a tão distante paragem, iremos delineando e não pintando, como o fez o inviado do irmão do sereníssimo Rei da Gram Bretanha, o senhor Duque de Yorca [...]” (1972, III: 178). A desterritorialização aponta um modelo estético europeu que tem consequências, pelo exotismo em que deixa as fontes locais, ao nível da definição contrastante do “negro” (tão ambígua, afinal, como a definição do “português”). Mas assinala, mais uma vez, ao público europeu que também conhece a mesma estória (do “Duque de Yorca”), a intenção estética do livro. Uma intenção que, realizada como foi, traz à obra a justificação de primeiro livro da literatura angolana.
Um aspecto interessante a confrontar com outras crónicas da época é precisamente o de o velho capitão ter tentado escrever uma obra de esmero literário com uma linguagem que não era nada canónica. O interesse não está propriamente na causa: essa podia, de facto, relacionar-se com a fraca influência do cânone sobre ele, apesar de tudo não muito culto, ou com a simples incapacidade de escrever já de outra maneira. O que nos interessa é que ele faz literatura com o português falado ali. E é nessa medida que podemos ver na História General das Guerras Angolanas uma das matrizes da literatura angolana posterior. Mesmo que ela não tivesse nunca sido lida, essas páginas realizam um tipo de exercício poético reiterado cada vez mais a partir de então: confrontar modelos literários globais e oralidades locais, numa escrita cujo cânone reside em variantes locais e ágrafas de uma língua escrita. A relação tensa e diversificada com as fontes orais na obra dá-nos a dimensão das implicações inesperadas (e portanto inovadoras) desse passo decisivo. |