A “FLORA PORTUGUESA” DE GONÇALO SAMPAIO,
CASO EXEMPLAR DE SUBVERSÃO
Maria Estela Guedes

INDEX

1. Epígrafe
2
. Introdução ao problema
3. A epígrafe de Pires de Lima
4. Tipos de subversão e instituições subvertidas
5. Conclusões
6. Bibliografia

ANEXOS
(apenas para versão online)

IMAGENS DA "FLORA PORTUGUESA"
Frontispício da 2ª edição
Página 263
Primeira página do índice "Nomes populares das plantas"
Primeira página do "Índice dos nomes latinos"
Primeira página da errata

4. Tipos de subversão e instituições subvertidas

Caprettini considera instituições certos códigos, por exemplo o das boas maneiras, os protocolos de tratamento dos destinatários das cartas, e outros, por implicarem convenções sociais. O facto é mais compreensível ao incluir nessa categoria o código jurídico. Para nós, esta visão do código tem a vantagem de podermos considerar instituição, como o Código Penal, o Código Internacional de Nomenclatura – existem vários, entre eles o de Nomenclatura Botânica, invocado por Pires de Lima na epígrafe à “Flora Portuguesa”. O seu mecanismo é idêntico ao de um código penal: estipula o que se deve e o que não se deve fazer. Em casos de litígio, que são muitos, por exemplo para alterar a ortografia de um nome, o proponente da mudança e os defensores da manutenção carreiam enorme quantidade de argumentos que vêm a constituir um memorial da espécie. Essa literatura é publicada no Bulletinof the International Society of Botanical Nomenclature, aberto à discussão dos botânicos, e, depois, um júri decide sobre o assunto.

O tribunal do código de nomenclatura não condena a multa nem a prisão os prevaricadores, mas os naturalistas, nos artigos que vão escrevendo, encarregam-se de atirar para a berma da estrada os colegas que atropelam as regras de trânsito.

Por conseguinte, os códigos são instituições, valem para grupos de pessoas que se regem por eles, e de facto endender-se-ia mal a polifonia da ciência, o seu carácter dialogante, se dada subversão fosse usada só por um autor, pois então estaríamos face a um estilo ou a negligência. A incompetência não pode ser encarada, pois lidamos com autores consagrados, com número vasto de textos publicados, e é necessário observar que a posição de um botânico ou de um zoólogo é internacional, por ser internacional a sua área de trabalho. Ao contrário do que afirma Gonçalo Sampaio, no título “Flora Portuguesa”, as plantas que ocorrem em Portugal não são portuguesas. Dada espécie, vamos supor o Hibiscus rosa-sinensis, tem uma área de distribuição trans-continental, o que não se compadece com fronteiras nacionais. Os cientistas que se ocupam dela, nos vários países, têm de se ler e citar uns aos outros, para actualizar e discutir informação, o que não acontece com as pessoas das Letras, como o Zé Augusto muito bem sabe. O naturalista incompetente seria irradiado da academia antes de fazer currículo, e antes portanto de se sentar no anfiteatro internacional.

Vejamos quais os tipos de subversão desencadeados pelos erros de ortografia patentes na “Flora Portuguesa” e noutros trabalhos do insigne botânico Gonçalo Sampaio, e o que atingem.

a. Subversão linguística .

O Zé Augusto falou-me do estratagema de pôr acentos em textos em latim, e em inglês, para ajudar à prosódia. Esses textos com acentos não se destinam a publicação. Ou destinam? Só servem para a oralidade. Os catálogos florísticos e faunísticos destinam-se em primeiro lugar à leitura e à escrita e têm circuito internacional. Publicar textos com a ortografia deliberadamente errada é uma subversão linguística, um atentado à convenção do bem escrever.  

b. Subversão do Código Internacional de Nomenclatura Botânica .

Citado por Pires de Lima, para sabermos que Gonçalo Sampaio o conhecia - todos os naturalistas conhecem e têm na estante os códigos de nomenclatura das suas áreas - o International Code of Botanical Nomenclature adopta o latim clássico nos nomes científicos. Proíbe também que a nomenclatura seja alterada. Os nomes científicos não podem sofrer deturpações, sob pena de a comunidade internacional não saber de que espécie está o naturalista a falar. Já anotei que as alterações nomenclaturais passam por processos morosos, que exigem publicação de argumentos a favor e contra, na revista da Sociedade Internacional de Nomenclatura, e um júri que delibere sobre a questão, de modo a que a resolução passe a funcionar como lei.

Em suma, o uso de acentos gráficos no latim é uma subversão do International Code of Botanical Nomenclature.  

c. Subversão das regras de citação .

Ignoro se o código de citação está publicado, tal como o código das boas maneiras, que ensina a cumprimentar apertando a mão, ou dando dois ou três beijos, e não, por exemplo, a dar um pontapé no destinatário do cumprimento. Nós sabemos, por intuição, hábito, ou por leis naturais, que, quando citamos, o devemos fazer fielmente. Não podemos adulterar as citações, responsabilizando por erros os autores da descrição. As espécies têm uma descrição original, publicada. Faz parte da descrição o nome da espécie, constituído em geral por dois nomes latinos, o primeiro um substantivo, e o segundo um adjectivo, seguidos do nome do autor e da data de descrição. Por exemplo: Onomis hispanica Lin.fil. (1781). Quando, na "Flora Portuguesa" ou nas "Novas adições e correcções á Flora Portuguesa", e são as "Novas adições" que a partir de agora passo a citar, Gonçalo Sampaio redige o nome pondo acento agudo em "hispánica", está a subverter as regras de citação, adulterando o nome atribuído à espécie pelo filho de Lineu.

d. Subversão do sistema de normalidade própria .

Poderíamos aceitar, em teoria, como instrumento de trabalho, um código heterodoxo, que seguisse a directriz de Américo Pires de Lima: um latim cujas palavras recebessem acentos gráficos, e que obedecesse às regras de acentuação do Português. Seria um "latínis macarrónicus", de cariz literário, com a sua graça. Já vimos porém que o latim de Gonçalo Sampaio não obedece às regras do Português, e nem sequer recebe todos os acentos gráficos do Português. Falta-lhe o til. Acontece que a subversão da normalidade própria, mesmo sendo heterodoxa essa norma, é mais ampla, e já sei que o Zé Augusto se interroga sobre a palavra "normalidade" - sim, estou a pensar no trabalho que ambos fizemos sobre teratologia, a ciência que estuda casos anómalos da anatomia das plantas e animais, "A Norma e o Monstro". E não, o Pires de Lima que nos forneceu a imagem do pénis bífido para esse trabalho não é Américo Pires de Lima. No entanto, como os Pires de Lima são do Porto, devem pertencer todos à mesma família. Algo que citamos de Barbosa Sueiro sobre a norma, nesse trabalho em linha no TriploV, diz que ela, a bela Norma, só existe nos tratados de anatomia.

Certo, mas insisto: existe uma norma na anormalidade da acentuação do latim, que também ela é subvertida. Caso contrário, nem a acentuação de Gonçalo Sampaio, nem os argumentos de Pires de Lima, nem o meu artigo, teriam bases de sustentação, e eles estão sustentados. O meu artigo, sustenta-o meia centena de trabalhos anteriores sobre o mesmo assunto, o silêncio da comunidade científica, e a vossa atenção. A Pires de Lima e a Gonçalo Sampaio, além do INIC – Instituto Nacional de Investigação Científica, uma instituição governamental -, sustenta-os a élite científica passada, presente e futura, não só portuguesa, como internacional.

Gonçalo Sampaio tem artigos publicados com latim escorreito, de resto o latim foi usado outrora como língua da ciência, não se restringe à nomenclatura. Ele sabe latim, lê-o e transcreve descrições em latim, quando precisa de volver aos caracteres do tipo, isto é, quando discute a identificação de dada planta. Então relê a descrição original dos exemplares que serviram para o estabelecimento da nova espécie, e a esse exemplar, ou ao modelo que ele constitui, chama-se "tipo". O tipo de Carex Goodenovii Gay, citado na primeira página das "Novas adições", apresenta estes caracteres: "..., cui habitu proxima, praecipue differt rhizomate sine stolonibus, foliis ligulatis, et bractea infima in base vaginante". Como o excerto não apresenta nenhum estratagema que ensine os estudantes a bem pronunciarem o latim, eis o motivo por que li à portuguesa, humilde discípula que sou dos naturalistas.

É assim que, num mesmo texto, Gonçalo Sampaio acumula o latim clássico ao macarrónico. Se usasse só o macarrónico, a sua norma, mesmo heterodoxa, não seria subvertida. Como a variabilidade dos tipos e dos caracteres é muito grande, temos de mencionar a subversão do código próprio.

Já vimos que o mesmo nome pode grafar-se de diferentes modos, na mesma ficha de espécie, e acrescento que diferentes regras determinam a acentuação de termos de estrutura idêntica: helvéticus e hispánicus, mas lusitanicus, ou Lythrum nummulariaefólium, mas já não tem acento Peplis nummulariaefolia, etc..

Entrando agora no jardim da "Norma e do Monstro", há subversões mais fortes da norma heterodoxa de Gonçalo Sampaio. É o caso de palavras com dois acentos gráficos iguais, ou de palavras com acento anterior à antepenúltima sílaba. Estando a discutir estratagemas de um pedagogo, latinista e folclorista, habituado a fazer notações musicais - não o disse de entrada, mas Gonçalo Sampaio, que conheceis de outiva, por haver instituições cujo nome o relembra, nasceu aqui na região de Guimarães, na Póvoa de Lanhoso -, vejamos então se os estudantes de Gonçalo Sampaio terão conseguido aprender a pronunciar os nomes: Stipa gígantéa, Cerástium púmílum, Lythrum thymifólía, ou Lythrum bíbracteatum. "Bíbracteatum" é uma palavra de cinco sílabas, com acento na primeira. As esdrúxulas, que já de si são bastante esdrúxulas, e só entraram na nossa língua no Renascimento, por artes dos humanistas, vão-se conseguindo pronunciar, embora a tendência popular seja a de lhes reduzir sílabas para que passem a graves, como explicam as autoras da gramática consultada para rever estes assuntos, Pilar Vásquez Cuesta e Maria Albertina Mendes da Luz. O mesmo não digo dos nomes que acabei de ler, impronunciáveis. A estas palavras, cujos caracteres escapam à prosódia normal, vamos chamar teratologias verbais. Tão anómalas como o pénis bífido do Pires de Lima anatomista, ou como os mamíferos de longos e espessos pêlos, com numerosos cornos, de que fala Charles Darwin, na recente edição de "A origem das espécies" (pág. 26), estas palavras subvertem a norma de Gonçalo Sampaio, que já sabíamos ser uma norma heterodoxa, com exibição de desvios monstruosos dos tipos morfológicos parentais.

e. Subversão da instituição escolar.

Será preciso defender a teoria de que o latim macarrónico, usado em obras académicas, e com o fim explícito de ensinar os estudantes, é uma subversão dasnormas do ensino? A nossa missão é ensinar. O latim macarrónico, salvo na sua versão literária, em obras como " O Palito métrico", é anti-pedagógico. Aliás, toda esta questão é absurda e teratológica, uma vez que se discute um assunto que ultrapassa as margens da fabulosa flora portuguesa, para entrar no âmbito da tão moderna globalização – refiro-me à transnacionalidade dos vegetais e não ao catálogo de plantas de Gonçalo Sampaio.

E tudo, por absurdo que pareça, é excessivamente normal, se entrarmos dentro do código clandestino da ciência.

 

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Última Actualização:
18-Jun-2006







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