A “FLORA PORTUGUESA” DE GONÇALO SAMPAIO,
CASO EXEMPLAR DE SUBVERSÃO
Maria Estela Guedes

INDEX

1. Epígrafe
2
. Introdução ao problema
3. A epígrafe de Pires de Lima
4. Tipos de subversão e instituições subvertidas
5. Conclusões
6. Bibliografia

ANEXOS
(apenas para versão online)

IMAGENS DA "FLORA PORTUGUESA"
Frontispício da 2ª edição
Página 263
Primeira página do índice "Nomes populares das plantas"
Primeira página do "Índice dos nomes latinos"
Primeira página da errata

3. A Epígrafe de Pires de Lima

Leu-a, Zé Augusto? Não é retórica da minha parte, é parte do corpus que vamos analisar. Nela, sim, há retórica. Tomando como referência o que acerca do código diz Caprettini – e a palavra “código” provém de “codex”, o tronco da árvore com o qual se faziam as tabuinhas em que se escrevia (num colóquio sobre jardins, com a participação de dois graduados Jardineiros, fica bem remeter para a Floresta o assunto semiótico em debate) – tomando Caprettini em consideração, a ortografia errada constitui um código porque não implica mentira. Porém, à justificação de Pires de Lima para o uso de acentos gráficos no latim, já a explicação de Caprettini não se aplica: uma vez que é mentira a razão invocada, essa razão está fora do código. Não faz parte dele ensinar os estudantes, e neste caso eles estariam a ser desensinados.

Uma retorcidíssima retórica, a do prefaciador da “Flora”, que não visa convencer ninguém, apenas avisar uns e atirar poeira para os olhos de outros. Repare-se em que Américo Pires de Lima faz três declarações que contradizem os seus próprios actos na edição da “Flora” que dirigiu:

  a) declara que generaliza a prática de pôr acentos nas palavras do latim, na “Flora Portuguesa”;

b) que o faz, seguindo a regra de acentuação das palavras portuguesas;

c) e que essa prática se tornou de uso corrente.

Sendo portuguesas as regras do latim, este é ostensivamente declarado macarrónico – exemplo que costumo trazer à baila, nestas circunstâncias paródicas, é a “Macarrónea Latino-Portuguesa”, vulgarmente conhecida como "Palito Métrico". Obra dos universitários de Coimbra, ela é o paradigma da literatura híbrida em Portugal, a que miscigena línguas. Os franceses pronunciam o latim à francesa, de acordo. Mas é disso que se trata na “Flora Portuguesa”? Não é disso que se prata, primo. Secundo, os franceses pronunciam o latim à francesa, mas escrevem-no sem acentos gráficos. Tive a sorte de trabalhar pessoalmente com um ornitólogo francês, muito conhecido, padre René de Naurois, que me habituou a uma estranha fonética dos nomes latinos das aves, mas que nos livros, salvo alguma excepção de código, grafava correctamente as palavras.

Insisto, entretanto, em que não se trata, na declaração de Pires de Lima, de pronunciar o latim à maneira portuguesa, sim de aplicar ao latim a “regra de acentuação portuguesa”.

Uma coisa são as regras de acentuação e outra coisa são os acentos gráficos. Quanto a estes caracteres, Gonçalo Sampaio e Pires de Lima usam sobretudo o acento agudo; pouco, o grave; revelam faltar ao código um carácter, o til; aparece o trema; e o acento circunflexo é frequente.

O Zé Augusto, quando passa às freiras textos em latim, com acentos gráficos, para elas saberem como devem pronunciar, está a usar sinais do código de acentuação do português, mas não o nosso código de acentuação. Sabe como os padres pronunciam o latim, na missa, e então coloca os acentos de forma a levar as freiras a pronunciarem bem o latim, de acordo, evidentemente, com as regras do latim eclesiástico. Caso contrário, o latim seria mais baixo que as profundas dos Infernos. Basta atentar em que a maioria dos nomes de plantas, na “Flora”, são esdrúxulos – Ranúnculus, Helléborus, Brássica, Henríquesi -, para verificarmos que essas regras não são as do português. Seguindo a regra de que na nossa língua, havendo dois terços de palavras graves, e verificando-se a tendência para acentuar na penúltima sílaba, aquelas palavras deviam pronunciar-se, sem acentos gráficos, Ranuncúlus, Hellebórus, Brassíca e Henriquési.

Donde, não podemos dizer que há verdade ou mentira numa palavra incorrectamente acentuada, mas já podemos afirmar que Pires de Lima não diz a verdade, ao garantir que os nomes latinos da “Flora” obedecem às regras de acentuação do Português.

Segunda declaração falsa é a de que Américo Pires de Lima tenha generalizado na “Flora Portuguesa” a prática de pôr acentos gráficos em todas as palavras latinas. Temos na obra duplos e triplos como Asplénium e Asplenium, hispánica, hispânica e hispanica, Sálix e Salix, Arenária e Arenaria, Henriquesi e Henríquesi, etc.. Diria que uns 60 a 70% das palavras em latim levam acento, portanto no resto, que é muito ainda, não houve generalização. Não vale a pena perguntar que norma de pronúncia do latim se adoptou, se a kikerista (a que pronuncia "Ciceron" como "Kíkeron"), se a eclesiástica (a que pronuncia "Agnus" como "Anhus"), pois já está esclarecido que, não a praticando, Américo Pires de Lima declarou ter aplicado ao latim a regra de acentuação do português.

Pergunta o Zé Augusto se a língua híbrida ou macarrónica se tornou de facto, como afirma Pires de Lima, de uso corrente em ciência. Claro que não. O que aparece de vez em quando, como fenómeno pontual, é o uso dessa categoria de subversões num código que também comporta, como já referi, erros aparatosos de geografia, de biologia das espécies e de biografia dos autores.

E tanto não é corrente, nem Pires de Lima generaliza, que as partes da “Flora Portuguesa” da sua responsabilidade, os dois índices, um pela ordem alfabética dos nomes vernáculos (têm à frente os científicos, em latim), outro pela ordem alfabética dos nomes latinos, estão ambos redigidos em latim clássico, sem qualquer acento gráfico, como seria de esperar de professores catedráticos.

 

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Última Actualização:
16-Jun-2006






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