A Senhora Albina, menos dada ao episódico e mais prolixa em articulações com outra profundidade, comentava o poder de forma semelhante. Não era analfabeta, mas lia com dificuldade, razão maior, acrescentava, para um elogio permanente à importância dos livros. Era natural de Amares, lá para cima de Braga. Recordava o torrão natal com muita alegria, como se lhe riam os olhos quando falava do filho e dos netos. Nunca falou do marido: seria mãe solteira? À volta dela, sempre havia sussurros do género, sem ninguém desvendar o mistério.
Fisicamente, o que mais ressaltavam eram os óculos, porque uma das hastes, partida, era substituída por um elástico preto de rolinho, esta costureira-a-dias, que vinha à quinta-feira, dividia-se entre a mão na agulha e o braço no ar, para endireitar os aros, a vaguearem de cima para baixo. Esteiro da família, onde a nora tinha um lugar secundário, retratava muito bem o quotidiano difícil nas “ilhas” portuenses, entre a pobreza, o alcoolismo e a doença. Tinha uma maneira de falar enchida por uma imaginação imensa. Imaginação que parecia estar a léguas da realidade que vivia. Desdobrava-a entre o conto e a opinião, onde não evidenciava receios, quando procurava acesso à linguagem erudita. Aplicava palavras muito deturpadas, como deturpados eram ainda alguns dos termos profissionais na sua boca: dos tafetases aos piês de pula e ao crepão (dito com pronúncia de Campanhã). Um exemplo ficava para quem a conhecia - dizia “pincho” (salto na fala nortenha) em vez de “pinça” para adelgaçar a saia.
Com pretensões de acesso a um tipo de erudição que lhe escapava, socorria-se ainda de expressões e frases em latim, mais ou menos macarrónico. Tal era o à vontade, tanta era a desenvoltura desse classicismo, que havia até quem alvitrasse que tanto conhecimento só poderia ter sido conseguido junto de um padre - de quem teria tido o filho? interrogava-se a má-língua. Igual firmeza e segurança rodeavam as previsões climáticas: começava por molhar o indicador na saliva e depois, com o dedo procurava a orientação do vento, no final discorria sobre a chuva possível ou a praia impossível no dia seguinte. Empolgava ainda mais, a dar lições de numerologia e cabala, quando extasiava, a dizer que o número de Hitler como militar já estava previsto na Bíblia, mais especificamente no Apocalipse.
Evidentemente que estes espaços e tempos eram governados pela religião: missa ao domingo e dias santos, quando nunca se trabalhava; novenas, da novena de Natal à novena do Sagrado Coração de Jesus, da novena ao Santo António à novena ao Santo Expedito. O terço quotidiano, especialmente no mês de Maio. O baptismo e o casamento na igreja. A desobriga pela Páscoa. Muitas promessas: a São Bento da Porta Aberta (uma dúzia de cravos, por exemplo) e à Senhora da Abadia.
Evidentemente que estes espaços e tempos eram orquestrados por outras e variadas crenças, com pavores, encarados com tanta seriedade quanto a ideia de Deus e de pecado. Todavia era o mau-olhado que primava. Além disso, havia finalmente um clima de respeito em volta de dois maiores: Alexandrina, a Santinha de Balasar e o endireita de Famalicão. Finalmente, O Livro de São Cipriano superava, entre alfabetizados e analfabetos. O que quer dizer que não era preciso tê-lo lido, para o citar a torto e a direito. Completando o quadro, muitas bruxas e muitas bruxices, entes imaginários ou reais, a povoarem as noites e os dias minhotos, como quando a carreira parou em Nine e o condutor disse – “Pr’o bruxo”, saindo mais de meia “caminheta” porta fora…
«Reais, imaginárias ou simbólicas, as bruxas povoam as vivências culturais no Ocidente. Conforme as épocas e as circunstâncias, cá as temos a ressuscitarem intensidades, em pesadelos ou fugas oníricas, das crianças aos adultos. Na literatura e no quotidiano. Nos campos e nas cidades.
Seja porque o discurso lhes consignou saberes e poderes, importa perceber de que modo estas interrogações se articulam: o saber (conhecimento) da bruxa gera o fazer (práticas), de que resulta poder (efeitos surpreendentes)? Ou, antes, o saber (conhecimento) é um poder (capacidade excepcional) que lhe permite fazer (transformar)? Seja porque a memória das comunidades as guarda num lugar, entre a atracção e o pavor, a curiosidade e a proibição, importa identificar como se ouviu falar e se fala delas, como se visiona o seu poder (capacidade bem sucedida) ou, preferencialmente, os seus poderes (resultados transformadores excepcionais) concretos, bem como os contra poderes associados. Seja porque há quem se considere bruxa e seja entendida como tal, importa perceber sob que forma este atributo é assumido, vivido, explorado, da sessão entre amigos, mais ou menos intimista, ao negócio montado, com publicidade.» (1)
A par de um imenso respeito pelo catolicismo, por bruxas e feiticeiras, as conversas da Sra. Albina enalteciam, com frequência, toda uma panóplia de técnicas de curar tradicionais, rodeadas de um misto de bem-estar e de terror. Ao mesmo tempo que se benzia para falar do poder das almas e do poder dos curandeiros, revelava o mesmo respeito sacralizado, durante as explanações muito elaboradas que fazia sobre ervas e chases. Nesses momentos, e com um certo ar enfeitiçado, lá voava ela até às Terras de Bouro ou do Gerês, para citar raízes, folhas e frutos, e curativos, dos xaropes bem cheirosos aos banhos de magia.
Entre os escritores, tinha um fraquinho por Francisco de Sá de Miranda, que outrora viera trovar para o Neiva. Enaltecia-o muito, a falar dos laranjais de Amares, onde a firmeza nas cores e a firmeza da prodigalidade lhe evocavam o celebrado:
«Homem d’um só parecer,
D’um só rosto e d’ua fé.
D’antes quebrar que volver,
Outra cousa pode ser,
Mas de Corte homem não é.» (2)
Ao proceder assim tão repetidamente, enquanto equiparava novidades a expressões demoníacas, sempre me pareceu que transpunha, para estes versos, uma carga emotiva de denúncia, por causa de um certo mal-estar na sociedade urbana.
Devo à Senhora Maria e à Senhora Albina ter sido despertada para aquele espaço e tempo, incluindo prenúncios de desajustes posteriores, quando hoje, passados cinquenta anos, o Minho apresenta contornos, resultantes de sucessivos surtos migratórios e de exigências da Comunidade Europeia. Para adensar o tema, retomarei umas ideias, que estas duas mulheres me fizeram sentir e pensar, talvez como ninguém:
«As inovações, sejam elas conceptuais ou tecnológicas, sempre se deparam com diferentes resistências, ocorrendo segundo um processo que nunca foi contínuo, nem linear, havendo a destacar a oposição oferecida por duas concepções fundadoras: o mito da harmonia cósmica impondo o ritmo natural e a hierarquia cultural marcando o rito religioso. Na verdade, essas resistências estiveram especialmente ligadas à lógica do ritmo natural e à lógica do rito religioso. A experiência da sequência do dia e da noite obrigava a um tempo disciplinado pelo calendário solar. A vivência da continuidade religiosa obrigava a um tempo disciplinado pelo calendário litúrgico.
Ambas as situações estavam disseminadas em ambientes marcados por relações de forte proximidade, do parentesco à convivialidade. As regulações em uso estavam profundamente arreigadas na mentalidade vigente, deixando muito pouco espaço para a inovação e para a diferença de forma. A emergência de uma nova proposta não parecia socialmente possível, nem desejável ou aceitável. Assim sendo, a ocupação quotidiana fazia sintonia com a “ordem natural” e a “ordem cultural”: aquilo que as fases da lua ou as estações ditavam; aquilo que os provérbios, não sem ambiguidades, consagravam, e as gerações iam mantendo, apesar de tudo.»(3)
Na generalidade a prática dos saberes-fazeres tradicionais está ligada a concepções do mundo e a medidas de espaços e de tempos que se mantiveram, apesar das formas de viver-formas de fazer-formas de saber que emergiram com a Modernidade e que se converteram em dominantes nas sociedades industrializadas e nos signos pós-modernos.
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