VII Colóquio Internacional
"Discursos e Práticas Alquímicas"
LAMEGO - SALÃO NOBRE DA CÂMARA MUNICIPAL
22-24 de Junho de 2007

Ana Luísa Janeira
Mutações dos saberes no feminino

INDEX

Nota prévia
Mutações em espaços e tempos femininos...
A Senhora Maria
A Senhora Albina
Novas formas de acordes concertados...
BIBLIOGRAFIA

Novas formas de acordes concertados e de ruídos desconcertados no espaço e no tempo, dentro do paradigma global (1)

Concretizando ideias para um pensamento conjunto, com vista a perceber melhor o chão e os ares actuais à escala mundial, são de relevar momentos da História, com estes exemplos filosóficos e científicos:

«Pitágoras definiu sequências e ritmos musicais ligados aos números. Euclides criou uma geometria baseada no ponto e na linha. Portugueses e espanhóis estriaram os mares com coordenadas e paralelos. Renascentistas e flamengos chegaram à perspectiva por vias diferentes e complementares.

Newton considerava o espaço e o tempo absolutos. Kant dizia que eram princípios a priori dos sentidos, onde tudo aquilo que ocorria dentro e fora do sujeito era formalizado. Em quaisquer dos casos, predominava uma ontologia vertical, centralizada, com linearidades e hierarquias, bem definidas e fixas.

Depois, veio Foucault e equacionou magistralmente as marcas do panoptismo, numa dominância ocular de visibilidades desvendadas. Com ele e a partir dele, Deleuze e Derrida retomaram Bergson ou Leibniz, criando um pensamento pós-moderno forte. René Thom e Jean Petitot ajudaram com novas matemáticas, enquanto John Cage ia deslumbrando no mesmo tom. Tschumi levantou o Parc de La Villette segundo algumas dessas pistas, o MoMA consagrou o Desconstrutivismo em 1988 e Emanuel Pimenta continua a musicar e arquitectar, indo mais longe nas tecnologias informáticas, como pretende para o Museu do Design do Tempo, previsto para Trancoso.

De facto, nos últimos anos, despontaram emergências que permitem afirmar como o espaço e o tempo estão a ser pensados segundo irrupções, sinuosidades e oscilações, com nomadismos e sentidos múltiplos. Sem topologias geométricas e sem cronologias lineares. Com simulacros e tentativas de coexistência entre paradigmas, inclusive». (2)

Como aconteceu com o fecho de outros séculos, grávidos do século seguinte, é indiscutível que a configuração actual passou a ser penetrada por algumas mudanças, desde os finais do século passado: o badalado Windows95 não se chamou assim, seguramente, por acaso.

Em Filosofia e no que respeita o espaço e o tempo em particular, a pós - modernidade tem-se traduzido em reflexões e questionamentos favoráveis à hibridação e à mutação entre conceitos e substancialidades, numa mestiçagem que acompanha e tem impacto noutras expressões da realidade, como acontece com os interstícios das formas em arquitectura e na desconexão procurada pela narrativa literária.

Assim sendo, há uma tendência para abandonar a linearidade e a centralidade que a tradição ontológica dominante impunha ao longo da modernidade, por força de um racionalismo e de um idealismo larvares, contrapondo-lhe a sinuosidade que distorce a ordem das coexistências e a ordem das sucessões, para retomar expressões queridas a Leibniz.

Simultaneamente, os desvios espaciais e as descontinuidades temporais são valorizadas, numa tentativa de alvejar as diferenças entre instantes e lugares, concebidos enquanto transversalidades, sem hierarquias.

Evidentemente que este processo de mudança paradigmática não é indiferente a novos modelos ocorridos no modo como o conhecimento passou a construir-se por influência do hipertexto, substrato de links em aberto, nunca fechados e saltitantes. A prática induzida pela rede está a determinar uma configuração de redes para o nosso pensar, como para o nosso estar-no-mundo. Aspecto que tem de ser devidamente colocado, porquanto permite avaliar melhor o impacto da tecnologia na constituição dos paradigmas actuais.

Como consequência, o surto inovador actua a vários níveis, a ponto da oposição singular-plural se desvanecer, quer como ponto único, diferente de outros pontos, quer como momento único, diferente de outros momentos. Nesta perspectiva, o que há são lugares e acontecimentos... Diga-se, pois, que o estatuto do singular passou a ser tomado, ainda mais, como uma abstracção.

«A utilização de tecnologias informáticas avançadas permitirá, cada vez mais, um suplemento de significação, pois promoverá a recombinação de posições temporais, enquanto repartições do tempo. Os processos relacionais tocarão o aleatório, por vezes. O cruzamento de dados factuais e de estímulos alimentará metáforas transformadoras, numa interactividade entre o sujeito e o objecto, mas superará sempre o entrevisto, por via de uma série de imprevistos.

A problematização em torno das imagens contemporâneas da representação, de acordo com o pensamento inovador de filósofos significativos como Gilles Deleuze e Jacques Derrida (3), favorece a articulação de ideias e de percepções reorientadas para texturas de infinitas repartições, com desvios e novas relações.

A proposta de uma topologia afastada de uma ontologia com eixos geométricos, no primeiro, e devendo ser concebida como “receptáculo” de propriedades cambiantes, no segundo, traz para os jardins um dimensionamento de abertura e de instabilidade, na antítese da tradicional ideia de um fechamento e de uma estabilidade construtiva. Com fluxos e deformações. Sem pontos estáticos.

A explosão generalizada em torno de um centro fixo, no contexto problematizado do tradicional logocentrismo europeu, dinamiza uma miríade de combinatórias para estímulos vários. Desde que actue a inserção de uma tónica desconstrutivista a atingir o presente e o ponto, o que surgirá, de facto, é um misto de imponderáveis e de prospectivas intervindo nas redes e nas cadeias significantes.

A reversibilidade entre meios e objectos, a favorecer estados mistos e misturas consecutivas, estabelece enredos ramificantes que servem para concretizar caminhos rizomáticos, onde o fruidor expõe a capacidade de ser interceptado pela sensualidade receptiva e encontra um meio propício para a inter-actividade, disseminada na mistura: complexidade e contradição.

O paradoxal incentiva um inconformismo votado ao futuro.

Cooperar com a realidade, porque se quer alterá-la.

Assumir uma sensação de precariedade, onde o que vai desaparecer é valorizado, na sua limitação no tempo, e faz sentido.

Expor menos objectos do que processos.

Com a expansão do procedimento, o imaginário formal do utente permanente ou do visitante fortuito será servido por mais factores metafóricos, sobrepostos à mutabilidade do vegetal. Nada de fixo nem de constante. Mas a alteração e a variabilidade. Oscilações. Elipses. Reordenações. Exponencial.

Mais fluxos do que lugares. Melhor ainda, fluxos globais de signos, de sensações e de pessoas.

Onde a inteligibilidade global resultará da aliança com as diferenças, como a sensibilidade global precisará de usufruir, entre os sentidos e os diversos conteúdos ou as diversas formas.» (4)

A constelação epistémica pósmoderna demonstra como as ciências – da Antropologia à Psicologia e à Sociologia – concorrem para uma visão mais rica e complexa do feminino.

Na verdade, situado num quadro de pensamento que recusa dicotomias extremadas e reconhecendo como a realidade humana apresenta uma configuração enriquecida por fluidos, o pensamento mais inovador defende não serem as características específicas do masculino e do feminino identificáveis, pura e simplesmente, com os dois géneros associados aos órgãos genitais.

Aspecto que representa a presença impactante das ideias anteriores, porquanto a fluidez entre potência e acto por via da virtualidade, traz essas consequências para este particular, enquanto as relações entre as ciências, as artes e as técnicas – representativas dos avanços e ambiguidades inerentes à implantação inovadora do paradigma – concorrem para uma globalização a evidenciar a tensão e o encontro das culturas.

Além disso, os efeitos são múltiplos, incluindo áreas particulares onde se foi associando a preparação das mulheres para determinados sectores no mundo da formação superior e no exercício profissional. Há dificuldades que continuam, por certo, mas será muito pouco provável ou quase impossível o tipo de barreiras encontradas por Branca Edmée Marques (1899-1986), primeira professora catedrática de ciências:

«- convite do Prof. Achilles Machado – não duvidando da sua preparação científica insistiu muito se se sentiria preparada para manter a disciplinas na aulas (1924)

- licenciatura (1925)

- casamento com o Prof. António Sousa Torres, só aceitou casar na condição do noivo a deixar ir para Paris

- ida para Paris, por exigência do marido foi acompanhada pela Mãe de origem alentejana (1931)

- bolseira do Instituto de Alta Cultura, integrada na equipa da Madame Curie (doutoramento - 1935)

- criação do Laboratório de Radioquímica na FCUL (1938-1939)

- coordenadora do Centro de Estudos de Radioquímica (1953)

- primeiro - equipa feminina – Dras. Regina Grade, Ivone de Barros, Alice Maia Magalhães, Catarina Peralta

- depois - equipa masculina – Profs. César Viana, Renato Leal e Carlos Ferreira de Miranda; coube a este último, o «delfim», aquando do regresso de Paris, iniciar a área de Química na Universidade de Évora.

- múltiplos desenhos e projectos visando beneficiar as instalações da investigação

- concurso para Prof. Catedrática - não passa, cega de um olho no próprio dia (1954)

catedrática finalmente (1966)

- a «”Dona” [e não a Professora como lhe seria devido] Branca morreu», ainda diziam alguns pelos corredores da FCUL (1986)» (5)

Como as universidades portuguesas começaram a aproximação ao modelo europeu só em 1995, grandes diferenças separam a situação actual dos modelos vigentes em épocas anteriores: o modelo napoleónico, mantido até 1911, quando só havia uma única universidade, a Universidade de Coimbrã, e as duas politécnicas, a Escola Politécnica de Lisboa e a Academia Politécnica do Porto, cabendo à Academia das Ciências de Lisboa comandar as pesquisas; o modelo germânico, introduzido em 1911, o qual impunha três vertentes: ensino, investigação e serviço à comunidade; o modelo salazarista, iniciado em 1926, e que permaneceu centrado na uniformidade entre as escolas, o fechamento ao estrangeiro, e as desvalorização das aulas práticas (6).

Como o mundo do trabalho continua em mudança, também aqui a mulher terá de intervir de outra maneira. Tome-se, a título de exemplo, o preconceito que considerava o Serviço Social como uma profissão para mulheres. O facto decorria da actividade ser integrada num horizonte de caridade e de amor ao próximo. Mistura de freira com enfermeira e professora, no paradigma tradicional, a assistente social actuaria como elemento facilitador entre os cidadão e os seus direitos assistenciais, ou o bem-estar do operário face ao poder dos patrões, pelo que o conceito de mediadora lhe caberia a matar.

Acontece, porém, que a situação mudou. E mudou, por factores vários, incluindo a tendência globalizante. « Neste sentido, o Serviço Social ao ter como objecto as relações humanas, quer sejam do sujeito: consigo próprio, com aqueles que o rodeiam ao nível das redes primárias, ou ainda das redes secundárias, ou globais, age como um todo que é, em cada momento. Esta totalidade de cada ser humano, sempre em construção, é o singular com o qual trabalha. Há assim, uma visão holística de um todo, o singular, que nunca se capta, mas que tem de estar presente numa perspectiva dialéctica entre os sujeitos que agem mutuamente para mudanças positivas em ordem à reconstrução permanente do ser relacional que vive e se satisfaz num mundo de relações. Este ser, que se pretende actuante nas múltiplas relações, em ordem ao seu equilíbrio, bio-psico-social, é objecto de intervenções atomizadas, parcelares, consoante cada momento e necessidade. Ao atomizarem-se as “ajudas” focalizam-se particularidades temporais, que não podem abstrair-se do singular/todo. A abstracção do singular/todo é um risco cujas consequências atingem sobretudo o sujeito, mas também a profissão.» (7)

Como consequência, as perspectivas alteraram-se frontalmente e não há mais sentido para clichés sociais daquele tipo, pois «interessa pensar o contemporâneo, sempre em mudança, em fragmentação resultante da especialização cada vez maior das ciências sociais e humanas e sobretudo das interferências local/global. Se olharmos o singular como o ser humano relacional, as múltiplas relações que o habitam, informam, formam e fazem agir são resultado de uma rede complexa de construção e desconstrução de relações com diferentes sentidos, mas todas elas constitutivas de experiências acumuladas, seleccionadas permanecendo o que cada sujeito interiorizou como seu, único.» (8)

Passe-se agora para as margens da Literatura, onde durante muitos anos só foi outorgada à mulher uma fatia delimitada por diários intimistas e dotes epistolares. Acontece, porém, que também aqui a situação mudou. E mudou, por factores vários, incluindo a tendência globalizante. Na verdade, o feminino encontrou um lugar singular numa escrita que acolheu e potencializou a sua singularidade através do corpo, dos afectos e do sexo.

«Conforme se sabe, as grandes transformações e a possibilidade das informações, praticamente, em todo o planeta estarem disponíveis em frações de segundos, via os novos meios de comunicação, dos mais simples aos mais sofisticados, além de uma espécie de “nomadismo” vem tomando conta das pessoas de um modo geral. Ou seja, as pessoas do planeta nunca se deslocaram tanto, em todos os níveis, tudo isso, fora outros fatores, trouxeram uma grande problemática : a homogeneidade. O mundo nunca pareceu tão igual, tão repetitivo e tal fato ocorre em diversos graus.

Já é de senso comum que as diferenças regionais tendem a desaparecer, mesmo em países cuja extensão geográfica seja grande. Artesanatos regionais, comidas típicas locais, hotéis que eram caracterizados por elementos da região, tendem a desaparecer, dando lugar ao “inautêntico”. No caso de países, que de certa forma, são mais porosos às invasões imperialistas, a situação é um tanto mais grave. Enfim, a diferença que, na verdade, possibilita o singular, tende à extinção. A singularidade nos parece quase impossível. Tudo nunca esteve tão igual e tão repetitivo.

A literatura e as artes em geral, por mais que possuam uma certa “autonomia” em relação às outras áreas não fogem a tal esquema, a nosso ver, bastante perverso, visto que num primeiro momento traz uma verdadeira impotência diante de um quadro quase aterrorizante. Parece-nos, inclusive, que a imitação e a repetição de fórmulas são procedimentos usados até as últimas conseqüências. Se uma determinada fórmula literária faz sucesso, logo, em seguida, ou temos a continuação da obra em outras no mesmo estilo ou temos, inclusive, ‘autores’ que copiam a fórmula, sem o menor compromisso com aquilo que estejam fazendo.

Na mídia em geral, revistas e magazines de grande circulação, jornais impressos, jornais televisivos, novelas, programas de rádio e televisão, o problema é mais grave: fórmulas e mais fórmulas são descaradamente repetidas, caso dêem certo.

Particularmente, no caso da literatura, a ausência do singular parece-nos um tanto mais grave se partirmos do pressuposto, nada inovador, diga-se de passagem, que a literatura deveria ser a primeira, ou pelos menos, uma das primeiras a representar o singular. No entanto, o que ocorre? Em princípio, a área da literatura, tanto como as outras, é notadamente contaminada pela fórmulas desgastadas e ordinárias, como prova a venda de milhões de livros seriados ou não, cujo valor intrinsecamente literário é questionável para não dizer que, de acordo com os paradigmas atuais da crítica literária, não possuem valor artístico nenhum.

Entretanto, como é sabido, já foi pensado, por muitos estudiosos das mais variadas áreas que num mundo que tende para o igual em todos os setores praticamente, a necessidade da singularidade nunca se fez tão necessária, ou pelo menos, e o que nos parece melhor: a busca pela singularidade, pela diferença, nunca foi tão palpável, o que, objetivamente pode ser notado na moda, por exemplo, os pequenos grupos que procuram se vestir de forma diferenciada e em tantos outros setores, conforme se sabe.

Ironicamente, declara Deleuze: “Será possível felicitar-nos pela progressão quantitativa do livro e pelo aumento da tiragem: os jovens escritores serão moldados num espaço literário que não lhes deixará a possibilidade de criar. (...) O que se imita é já sempre uma cópia. Os imitadores imitam-se entre si, de onde sua força de propagação, e a impressão de que fazem melhor que o modelo, pois conhecem a maneira ou a solução.” (9).

De acordo com Blanchot (10) desde o Renascimento e até o Romantismo, na verdade, houve um grande esforço para se reduzir a arte ao famoso gênio, “a poesia ao subjetivo, e dar a entender que aquilo que o poeta exprime é ele mesmo, sua mais genuína intimidade, a profundidade escondida de sua pessoa, seu ‘Eu’ longínquo, informulado, informulável.” (11) Logo, ainda na esteira de Blanchot, o pintor se realizaria em sua pintura assim como o romancista, por exemplo, encarnaria, por intermédio de suas personagens, uma determinada visão na qual se revelaria e, desta forma, a essência criadora em que a razão seria um traço desconhecido. Entretanto, eis a grande questão, proposta pelo próprio Blanchot: “Mas será mesmo assim?” (12)

O famoso ‘gênio criador’ do Romantismo consegue ou conseguiu singularidades? Será que estamos condenados a um mundo igual e repetitivo como se a maldição da visão cíclica do tempo fosse verdadeira para tudo? Será que tudo vai e vem no pior sentido do conceito? Uma repetição monótona sem diferenças? O Eterno Retorno com previsibilidades?

Sabemos que o quadro não é nada animador. E é nesse quadro, aparentemente, desolador que é preciso pensarmos em novos caminhos, em novas possiblidades em todas as áreas, inclusive, na Literatura, visto que a Literatura não é ciência e nem pode ter a pretensão para tal, mas isso não é um impedimento, pelo contrário, e tal postura, sabemos, não é nada inovadora, que tipo de Literatura pode vencer os obstáculos, pelos menos em princípio, para se recolocar enquanto um instrumento, ou proporcionar novas formas de se pensar, refletir os novos desafios que se colocam diante de nós?

Temos e devemos levar em consideração que as novas gerações nunca mais lerão (a literatura impressa) como antes. Novos modelos, de alguma forma, trazem novos modelos de recepção. Novos ‘gêneros’ de leitura, no amplo sentido da palavra, se interpõem, logo, o grande desafio da Literatura, tanto quanto de outras áreas, é pensar, agudamente, em novos ‘gêneros’ .» (13)

Pensamento que sendo deslocado para o pensar do feminino, só lhe dará mais argumentos para exigir singularidades diferenciais, a desenvolver e a propor, num mundo que precisa de assumir a tolerância e o respeito pela diversidade.

«Na cidade actual, reflexo de cúmulos anteriores, coexistem várias espacio-temporalidades e memórias difusas, onde irrompem intervenções recentes: do bairro, à praça e ao complexo habitacional. A tendência geral evidencia maiores ou menores mesclas de funcionalismo e de organicidade, enquanto razões economicistas provocam uma habitabilidade questionável.

Daí que aumentem as situações, a requerer a argúcia da reflexão profunda de Martin Heidegger em torno do Construir, Habitar, Pensar, seja a capacidade de denunciar como o modo-de-construir condiciona o modo-de-habitar. Aspecto a relevar a responsabilidade das infra-estruturas no quotidiano personalizado, porquanto o conceito da construção não equivale ao conceito de habitação, e a diferença estimula grandes-nadas com reptos no modo-de-pensar.

A característica da permanência, associada ao peso da estrutura urbana e da arquitectura, não pode iludir a existência de crises e de mudanças, com múltiplas camadas materializadas, descontinuidades que obrigam a proteger o património memorial, dentro de uma paisagem harmónica, incluindo as novidades e as ousadias arquitectónicas.

A importância deste elemento estruturante é de tal modo elevada que muita da insegurança urbana resulta de medos ambientados por um esquecimento generalizado. Na verdade, grande quantidade de problemas das sociedades contemporâneas resulta de malhas urbanas sem enraizamento.» (14)

«Como consequência, nas metrópoles modernas, alguns factores de desenraizamento resultam de não sabermos a história do chão da nossa rua, ou dos monumentos alcançados pela janela do carro quando vamos para o trabalho. Ou ainda a origem de certa toponímia e a personalidade representada na estátua de um largo. Como a tradição de um restaurante e o cheiro de uma árvore, durante um passeio dominical. A integração de cada um na memória da sua urbanidade merece esforço e requer treino, mas só assim ampliará a sensação real de pertença e de cidadania, bem como a abertura ao novo, aquando de visita a uma outra cidade.

A par disso, o contexto de globalização torna premente uma boa articulação com a realidade local, pelo que os espaços exteriores e interiores têm um papel comparticipado na forma como é assumido o estar - no - mundo, pelo viés da identidade.» (15)

E onde a ligação feminino-memória representará, deseja-se, um lugar insubstituível.

A intervenção da Filosofia das Ciências, neste texto, actuou em favor de duas instâncias reflexivas principais: qualquer mudança gera indiscutivelmente ganhos e perdas, sendo difícil, quase impossível, a comensurabilidade entre paradigmas; qualquer pacote tecnológico de vulto comporta um determinado estilo de vida, como o discurso histórico mostra e demonstra.

Sendo assim e para concluir, impõe-se a premência de um maior debate púbico e de uma maior consciência para o sucesso da inovação; como, se impõe, finalmente, a importância do poder local agir na mobilização geral, em favor do paradigma global, por sua natureza inexorável, mas que só terá resultados afirmativos, quando for assumido pela sociedade portuguesa, com as suas mulheres e os seus homens, em prol da cidadania individual e da responsabilidade colectiva.

Notas

(1) Esta parte da conferência será ilustrada com textos com elaboração em curso, assumidos no contexto de um work in progress.

(2) Ana Luísa Janeira - Jardins entre natura, cultura e utopia, no prelo, elaborado no âmbito do Projecto internacional Co nstruire de la ville, conquérir de l’espace: comment une société pense son avenir, coordenado por Isabel Marcos.

(3) Fábio Duarte - Arquitectura e Tecnologias de Informação da Revolução Industrial à Revolução Digital. São Paulo: AnnaBlume, 1999, 179-185.

(4) Ana Luísa Janeira - Jardins entre natura, cultura e utopia, no prelo , elaborado no âmbito do Projecto internacional Co nstruire de la ville, conquérir de l ’ espace: comment une société pense son avenir, coordenado por Isabel Marcos.

(5) Aspectos retirados da introdução à Entrevista com a Professora Doutora Branca Edmée Marques, Professora Jubilada da Faculdade de Ciências de Lisboa, a que estiveram também presentes a sua afilhada e a Dra. Maria Regina Sales Grade, a qual se realizou na casa da Professora Branca, no dia 24 de Janeiro de 1983, sendo orientada e gravada por Ana Luísa Janeira.

(6) Ver Ana Luísa Janeira - Inovação-Tradição-Globalização - Da lei entre o saber e o poder. In Ana Luísa Janeira (coord.cient.); Manuela Ferreira (col. especial.); Margarida Pino (col. especial.) ''Da Química e Da Lei. Escola Politécnica de Lisboa e Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (1837-1997)'', Lisboa, Departamento de Química da Faculdade de Ciências de Lisboa, 2005, 2-35.

(7) Texto de Aida Ferreira enquadrado no Projecto Paradigmas de hoje para amanhã, coordenado por Ana Luísa Janeira.

(8) Texto de Aida Ferreira enquadrado no Projecto Paradigmas de hoje para amanhã, coordenado por Ana Luísa Janeira.

(9) Gilles Deleuze - Pourparlers. Paris, Les Éditions de Minuit, 1990,175. No original: “On pourra se féliciter de la progression quantitative du livre et de l’augmentantation des tiragens: les jeunes écrivains se trouveront moulés dans un espace littéraire qui ne leur laissera pas la possibilité de créer. (...) Ce qu’on imite, c’est déjá et toujours une copie. Les imitateurs s’imitent entre eux, d’où leur force de propagation, et l’impression qu’ils font mieux que lê modele, puisqu’ils la manière ou la solution.”.

(10) Maurice Blanchot - O livro por vir. São Paulo, Martins Fontes, 2005, 42.

(11) Idem, 42.

(12) Idem, 43.

(13) Texto de Ana Haddad enquadrado no Projecto Paradigmas de hoje para amanhã, coordenado por Ana Luísa Janeira.

(14) Ana Luísa Janeira – Topologias da Memória, Projecto Marcas das ciências e das técnicas pelas ruas de Lisboa, coordenado por Ana Luísa Janeira.

(15) Ana Luísa Janeira (coord. cient.) Marcas das Ciências e das técnicas pelas ruas de Lisboa. Como exemplo e tendo os percursos pedestres um atractivo interessante hoje em dia, pelo misto de exercício e de prazer, convém aproveitar esta disponibilidade e amplificá-la, de molde a serem utilizados num espírito de achamento, acompanhado pelo reconhecimento de aproximações entre o nacional e o internacional. Assim, o projecto em causa visa fornecer instrumentos que ajudem a bons hábitos de descoberta e a momentos de bem-estar, fornecendo pistas para sentir o pulsar dos bairros históricos lisboetas, num melhor e mais perdurante aproveitamento científico e técnico, e, por isso mesmo, também cultural. É sua finalidade preparar produtos informáticos que fornecerão informações históricas e actuais, para mostrar como certos percursos pelas ruas do centro lisboeta facultam o contacto com marcas científicas e técnicas que merecem ser conhecidas, pelo papel que representam na malha urbana e pela consciência de cidadania para que concorrem, a nível da Europa e do Mundo.

Professora Associada com Agregação em Filosofia das Ciências do Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa .

Co-fundadora, primeira coordenadora e actualmente investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL)

Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha CabralCalçada Bento da Rocha Cabral, 141250-047 Lisboa

janeira@fc.ul.pt, aljaneira@sapo.pt

 
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