TEATRO

 
Farsa de Inês Pereira
GIL VICENTE
 

Aqui vem a Mãe com certas moças e mancebos pera fazerem a festa, e diz uma delas, per nome Luzia:

Luz. Inês, por teu bem te seja! Oh! que esposo e que alegria!

INÊS
Venhas embora, Luzia, E cedo t'eu assi veja.

MÃE
Ora vae tu ali, Inês, E bailareis três por três.

FERNANDO
Tu connosco, Luzia, aqui, E a desposada ali, Ora vede qual direis.

Cantam todos a cantiga que se segue:

«Mal herida va la garça Enamorada, Sola va y gritos dava. A las orillas de um rio La garça tenia el nido; Ballestero la ha herido En el alma; Sola va y gritos dava.»

E, acabando de cantar e bailar diz Fernando:

FERNANDO
Ora, senhores honrados, Ficai com vossa mercê, E nosso Senhor vos dê Com que vivais descansados. Isto foi assi agora, Mas melhor será outr'hora. Perdoai pelo presente: Foi pouco e de boa mente. Com vossa mercê, Senhora...

Luz. Ficai com Deus, desposados, Com prazer e com saúde, E sempre Ele vos ajude Com que sejais bem logrados.

MÃE
Ficai com Deus, filha minha, Não virei cá tão asinha. A minha bênção hajais. Esta casa em que ficais Vos dou, e vou-me à casinha.

Senhor filho e senhor meu, Pois que já Inês é vossa, Vossa mulher e esposa, Encomendo-vo-la eu. E, pois que des que naceu A outrem não conheceu, Senão a vós, por senhor Que lhe tenhais muito amor Que amado sejais no céu.

Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro. E senta-se Inês Pereira a lavrar e canta esta cantiga:

INÊS
Si no os huviera mirado No penara, Pero tampoco os mirara. O Escudeiro, vendo cantar Inês Pereira, mui agastado lhe diz:

ESCUDEIRO
Vós cantais, Inês Pereira? Em vodas m'andáveis vós? Juro ao corpo de Deus Que esta seja a derradeira! Se vos eu vejo cantar Eu vos farei assoviar..

INÊS
Bofé, senhor meu marido, Se vós disso sois servido, Bem o posso eu escusar.

ESCUDEIRO
Mas é bem que o escuseis, E outras cousas que não digo!

INÊS
Porque bradais vós comigo?

ESCUDEIRO
Será bem que vos caleis. E mais, sereis avisada Que não me respondais nada, Em que ponha fogo a tudo, Porque o homem sesudo Traz a mulher sopeada.

Vós não haveis de falar Com homem nem mulher que seja; Nem somente ir à igreja Não vos quero eu leixar Já vos preguei as janelas, Por que não vos ponhais nelas. Estareis aqui encerrada Nesta casa, tão fechada Como freira d'Oudivelas.

INÊS
Que pecado foi o meu? Porque me dais tal prisão?

ESCUDEIRO
Vós buscastes discrição, Que culpa vos tenho eu? Pode ser maior aviso, Maior discrição e siso Que guardar o meu tisouro? Não sois vós, mulher meu ouro? Que mal faço em guardar isso?

Vós não haveis de mandar Em casa somente um pêlo. Se eu disser: - isto é novelo - Havei-lo de confirmar E mais quando eu vier De fora, haveis de tremer; E cousa que vós digais Não vos há-de valer mais Que aquilo que eu quiser.

(para o criado)

Moço, às Partes d'Além Me vou fazer cavaleiro.

MOÇO
(Se vós tivésseis dinheiro Não seria senão bem...)

ESCUDEIRO
Tu hás-de ficar aqui. Olha, por amor de mi, O que faz tua senhora: Fechá-la-ás sempre de fora.

(para Inês)

Vós lavrai, ficai per i.

MOÇO
Co dinheiro que leixais Não comerei eu galinhas...

ESCUDEIRO
Vae-te tu por essas vinhas, Que diabo queres mais?

MOÇO
Olhai, olhai, como rima! E depois de ida a vindima?

ESCUDEIRO
Apanha desse rabisco.

MOÇO
Pesar ora de São Pisco! Convidarei minha prima...

E o rabisco acabado, Ir me-ei espojar às eiras?

ESCUDEIRO
Vai-te per essas figueiras, E farta-te, desmazelado!

MOÇO
Assi?

ESCUDEIRO
Pois que cuidavas? E depois virão as favas. Conheces túbaras da terra?

MOÇO
I-vos vós, embora, à guerra, Que eu vos guardarei oitavas...

Ido o Escudeiro, diz o Moço:

MOÇO
Senhora, o que ele mandou Não posso menos fazer.

INÊS
Pois que te dá de comer Faze o que t'encomendou.

MOÇO
Vós fartai-vos de lavrar Eu me vou desenfadar Com essas moças lá fora: Vós perdoai-me, senhora, Porque vos hei-de fechar.

Aqui fica Inês Pereira só, fechada, lavrando e cantando esta cantiga:

INÊS
«Quem bem tem e mal escolhe Por mal que lhe venha não s'anoje.» Renego da discrição Comendo ò demo o aviso, Que sempre cuidei que nisso Estava a boa condição. Cuidei que fossem cavaleiros Fidalgos e escudeiros, Não cheios de desvarios, E em suas casas macios, E na guerra lastimeiros.

Vede que cavalarias, Vede que já mouros mata Quem sua mulher maltrata Sem lhe dar de paz um dia! Sempre eu ouvi dizer Que o homem que isto fizer Nunca mata drago em vale Nem mouro que chamem Ale: E assi deve de ser.

Juro em todo meu sentido Que se solteira me vejo, Assi como eu desejo, Que eu saiba escolher marido, À boa fé, sem mau engano, Pacífico todo o ano, E que ande a meu mandar Havia m'eu de vingar Deste mal e deste dano!

 
Farsa de Inês Pereira
 
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