TEATRO

 
Farsa de Inês Pereira
GIL VICENTE
 

Finge-se que Inês Pereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta esta cantiga:

Canta Inês:

Quien con veros pena y muere Que hará quando no os viere?

(Falando)

INÊS
Renego deste lavrar E do primeiro que o usou; Ó diabo que o eu dou, Que tão mau é d'aturar. Oh Jesu! que enfadamento, E que raiva, e que tormento, Que cegueira, e que canseira! Eu hei-de buscar maneira D'algum outro aviamento.

Coitada, assi hei-de estar Encerrada nesta casa Como panela sem asa, Que sempre está num lugar? E assi hão-de ser logrados Dous dias amargurados, Que eu possa durar viva? E assim hei-de estar cativa Em poder de desfiados?

Antes o darei ao Diabo Que lavrar mais nem pontada. Já tenho a vida cansada De fazer sempre dum cabo. Todas folgam, e eu não, Todas vêm e todas vão Onde querem, senão eu. Hui! e que pecado é o meu, Ou que dor de coração?

Esta vida he mais que morta. Sam eu coruja ou corujo, Ou sam algum caramujo Que não sai senão à porta? E quando me dão algum dia Licença, como a bugia, Que possa estar à janela, É já mais que a Madanela Quando achou a aleluía.

Vem a Mãe, e não na achando lavrando, diz:

MÃE
Logo eu adivinhei Lá na missa onde eu estava, Como a minha Inês lavrava A tarefa que lhe eu dei... Acaba esse travesseiro! Hui! Nasceu-te algum unheiro? Ou cuidas que é dia santo? INÊS Praza a Deos que algum quebranto? Me tire do cativeiro.

MÃE
Toda tu estás aquela! Choram-te os filhos por pão?

INÊS
Prouvesse a Deus! Que já é razão De eu não estar tão singela.

MÃE
Olhade ali o mau pesar... Como queres tu casar Com fama de preguiçosa?

INÊS
Mas eu, mãe, sam aguçosa E vós dais-vos de vagar.

MÃE
Ora espera assi, vejamos.

INÊS
Quem já visse esse prazer!

MÃE
Cal'-te, que poderá ser Que «ame a Páscoa vêm os Ramos». Não te apresses tu, Inês. «Maior é o ano que o mês»: Quando te não precatares, Virão maridos a pares, E filhos de três em três.

INÊS
Quero-m'ora alevantar. Folgo mais de falar nisso, Assi me dê Deos o paraíso, Mil vezes que não lavrar Isto não sei que me faz

MÃE
Aqui vem Lianor Vaz.

INÊS
E ela vem-se benzendo...

 
Farsa de Inês Pereira
Entra Lianor Vaz>>>>>>>>>
 
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